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Gonzalo Vecina Neto e Walter Cintra Ferreira Junior

A medicina e o corporativismo

Interesses de classe não podem prevalecer sobre o bem-estar do paciente

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Gonzalo Vecina Neto

Médico sanitarista, é professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Eaesp/FGV

Walter Cintra Ferreira Junior

Médico sanitarista, é professor da Eaesp/FGV

O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) publicou em sua rede social nota de repúdio à fala do médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, um dos autores deste artigo, no Jornal da Cultura (TV Cultura) no dia 4 de janeiro. Na ocasião, defendi a retomada do programa Mais Médicos e critiquei a Lei do Ato Médico, que impede que outros profissionais de saúde realizem ações que ampliariam o acesso de pacientes à atenção básica no SUS. Face à desproporcional reação do Cremesp, entendemos trazer esses pontos para o debate civilizado.

A assistência à saúde se realiza pelas ações de diferentes profissionais. O médico é um deles —não é o mais importante nem o único. Na verdade, a boa prática recomenda que o cuidado seja executado por equipe de técnicos atuando em conjunto.

Médico cubano do programa Mais Médicos é vaiado por manifestantes ligados ao Sindicato dos Médicos do Ceará, em Fortaleza, em 2013 - Jarbas Oliveira - 26.ago.13/Folhapress

O médico faz parte de uma corporação que tem buscado preservar seu espaço de atuação. Os conselhos profissionais são parte do aparelho de Estado e devem proteger o cidadão dos atos praticados pelos seus profissionais. Nos últimos anos, temos visto as direções dessas autarquias deixarem de lado a missão principal e assumirem posições corporativistas.

A Lei do Ato Médico, promulgada em 2013, é um marco do corporativismo: coloca o interesse da categoria acima do bem-estar do paciente para garantir exclusividade aos médicos de indicar tratamentos e decidir o que os outros profissionais devem fazer acessoriamente.

Essa posição ultrapassada deve ser combatida e trazida à luz da boa prática e da evidência científica, onde todos os profissionais têm os seus espaços de atuação —em alguns pontos, inclusive, podem se sobrepor, mas são parte de uma mesma linha de cuidado, garantindo qualidade e segurança ao paciente.

Para melhorar a assistência é possível aumentar o campo de atuação de outros profissionais de saúde. Por exemplo, o enfermeiro tem conhecimento para diagnosticar e tratar afecções simples do aparelho gênito urinário, o que traria maior agilidade e acesso à assistência, deixando ao médico casos mais complexos e resistentes —mas essa é uma ação vetada pela Lei do Ato Médico.

A fixação de profissionais de saúde, em particular o médico, em locais de difícil acesso ou distante dos grandes centros, continua sendo um desafio para o SUS. O programa Mais Médicos disponibilizou mais de 15 mil médicos, e o impacto foi imediato, trazendo acesso a milhões de brasileiros que estavam desassistidos de qualquer atenção. Os conselhos de medicina foram contra o Mais Médicos. Mais uma vez prevaleceu o interesse corporativista sobre o bem-estar do paciente. Corporativismo que protagonizou manifestações xenofóbicas e racistas contra médicos estrangeiros.

O momento é de reconstrução do país, de recuperar a civilidade e de recolocar o cidadão no centro das políticas públicas. O SUS, a sua organização e as suas ações precisam ser repensados para atender as necessidades da população brasileira. Redefinir os papeis dos profissionais de saúde para que sejam aproveitados em seu pleno potencial assistencial, principalmente em locais com vazios de cobertura.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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