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Paulo Sérgio Pinheiro e Fabio Magalhães

Severo Gomes e a luta contra o genocídio dos yanomamis

Em 1990, senador já alertava para 'conivência' com crimes praticados na região

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Paulo Sérgio Pinheiro

Professor titular de ciência política da USP, foi coordenador da Comissão Nacional da Verdade (2013) e ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos (2001-02, governo FHC)

Fabio Magalhães

Presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta

A visita icônica do presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos yanomamis e sua denúncia do genocídio desse povo traz à lembrança a luta militante do senador Severo Gomes (1924-1992). A Comissão Pró-Yanomami (CCPY), sob a liderança da fotógrafa Claudia Andujar e do antropólogo Bruce Albert, junto com a União das Nações Indígenas (UNI), organizou a Assembleia Permanente Yanomami no sopé da Serra dos Ventos (Watoriki), em março de 1986 —o que seria o primeiro encontro de Severo com a etnia. Ele já havia apresentado no Senado, em dezembro de 1985, projeto de lei propondo a criação do Parque Yanomami, elaborado pela CCPY.

Tendo como intérprete Davi Kopenawa, xamã e líder dos yanomamis, com quem atuaria sempre, Severo ouviu depoimentos e expôs sua visão crítica: "As leis mais antigas do Brasil, e as leis de hoje também, dizem que as terras dos índios são dos índios e os brancos não podem entrar nelas nem ficar donos dessas terras. No entanto, essas leis estão sendo desobedecidas. Os juízes julgam de acordo com os interesses dos fazendeiros ou dos garimpeiros, não de acordo com a lei. E a polícia, que foi feita para combater o crime, acabava ela mesma praticando o crime na defesa desses interesses ilegais".

O senador Severo Gomes (1924-1992) com yanomamis em 1986; à esquerda dele, Davi Kopenawa
O senador Severo Gomes (1924-1992) com yanomamis em 1986; à esquerda dele, Davi Kopenawa - Divulgação

Para a defesa dos direitos inerentes à cidadania, Severo promoveu em janeiro de 1989 a criação da Ação pela Cidadania, na sede da OAB em São Paulo, com a participação de entidades como CNBB, OAB, ABI, SBPC, Comissão Teotônio Vilela, CTV, universidades, centrais sindicais, o então senador Fernando Henrique Cardoso 0e vários parlamentares.

Organizou visita à terra yanomami, em junho do mesmo ano, com comitiva de 20 pessoas, entre as quais a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, o artista plástico Glauco Pinto de Moraes, Eduardo Suplicy e vários procuradores da República —em sua nova função de defensores dos direitos indígenas, introduzida no art. 232 da Constituição de 1988. Na visita, foi constatado "o drama daquela nação indígena, condenada por conta da omissão governamental e da implementação de uma política anacrônica de ocupação da região ao genocídio primário".


O governo Collor se inicia em março de 1990. Em abril, a Ação pela Cidadania, com Severo, pede a anulação dos decretos do governo Sarney que criam "ilhas" no território yanomami, sublinhando a necessidade urgente da retirada dos milhares de garimpeiros que ocupam suas terras. Em setembro, Severo investe contra a divisão pelo governo do território yanomami e "a conivência com o genocídio que vem sendo praticado contra essa população". Em outubro, Severo e Davi Kopenawa participam do Tribunal Lélio Basso, em Paris, e denunciam o genocídio em marcha.

Em abril de 1991, sob forte pressão internacional contra o genocídio dos povos da floresta amazônica, o presidente Collor revoga os decretos que criavam o "arquipélago yanomami" e lança o Projeto de Saúde Yanomami, em colaboração com a CCPY e outras ONGs. Efetua-se a retirada dos garimpeiros para que se efetive a demarcação do território, cuja homologação é assinada por Collor pouco antes da Rio-92.

Severo não pôde comemorar. Em 12 de outubro de 1992, morre em um acidente de helicóptero. Davi Kopenawa declarou: "Morreu um dos poucos amigos que tivemos. Estamos muito zangados". Em língua yanomami, isso significa tristes ou sem consolo.

Hoje, 31 anos depois, há 20 mil garimpeiros explorando ouro nas terras yanomamis. As palavras de Severo Gomes proferidas em Paapiú (RR) e publicadas nesta Folha ("Paapiú —Campo de Extermínio", 18/6/89), permanecem tristemente atuais. Na ocasião, o senador comparou o que assistia nas terras yanomamis com a guerra do Vietnã: "De cinco em cinco minutos um avião pousa e decola. Os helicópteros rondam sobre o pano de fundo da selva —300 gramas de ouro por hora de voo. Dali sai uma riqueza de difícil mensuração e que segue pelos descaminhos da fronteira, deixando atrás a morte da natureza e dos homens".

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