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Suely Araújo

Semântica petroleira

Presidente da Petrobras quer abandonar combustíveis fósseis cavando mais fundo

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Suely Araújo

Especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, foi presidente do Ibama (2016-2018)

Imagine se em fevereiro do ano passado Vladimir Putin tivesse feito o seguinte discurso: "O mundo deseja viver em paz, e a paz mundial nas próximas décadas é inevitável. Mas também é fato que as armas ainda existirão por muito tempo entre os seres humanos. Por isso mesmo, estou hoje iniciando a invasão da Ucrânia. E vou fazê-lo com mísseis nucleares, para garantir uma transição mais rápida a um mundo sem guerra".

Troque "armas" por "petróleo", "paz" por "segurança climática" e "mísseis nucleares" por "aceleração da produção" e você terá a essência da argumentação do presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, em artigo nesta Folha ("Petrobras tem compromisso com a transição energética", 2/3). Por baixo de uma fina camada de alinhamento com o discurso pró-clima do novo governo Lula, Prates está na realidade defendendo que o país invista mais em combustível fóssil.

O presidente da Petrobras, Jean Paul Prates - Mauro Pimentel/AFP

Para além da lógica torta, a missiva do presidente da Petrobras sobre transição energética tem dois problemas fundamentais. Um é uma leitura de buffet dos cenários de transição da IEA (Agência Internacional de Energia), na qual Prates põe no prato a picanha e a batata frita e deixa os brócolis e o rabanete. O outro é a aparente (e preocupante) determinação da estatal de cavar poços em áreas ambientalmente sensíveis, como a margem equatorial —onde o Ibama já negou licença para a exploração de blocos da foz do rio Amazonas, que abriga um ecossistema recifal ainda largamente desconhecido.

Em maio de 2021, a IEA publicou um relatório assustador sobre o panorama energético mundial e a possibilidade de o planeta atingir o objetivo do Acordo de Parislimitar o aquecimento global em 1,5ºC em relação à era pré-industrial neste século, zerando emissões líquidas de gases de efeito estufa (o chamado "net zero")— até 2050. Prates aponta corretamente que, no cenário de "net zero" da agência, o mundo ainda terá demanda por cerca de 20 milhões de barris de petróleo (24 milhões, mais exatamente) por dia. Só se esquece de dizer que, de acordo com esse mesmo cenário, nenhum novo campo de petróleo ou gás poderia ser aprovado após 2021 para que a humanidade tenha chance de zerar emissões líquidas em 2050. Em nenhum lugar do mundo: o alerta vale para o óleo de folhelho dos EUA, para o Ártico russo e para as novas fronteiras do Brasil.

Disso decorre o outro problema fundamental da visão da Petrobras: a obsessão com a margem equatorial. Em 2018, o Ibama negou licença para cinco blocos de exploração daquela bacia sedimentar à petroleira francesa Total por não conseguir demonstrar que seria capaz de impedir que, em caso de acidente, um vazamento de óleo chegasse à costa da Guiana e de outros países. A Petrobras assumiu o controle de vários blocos na região no governo Bolsonaro e colocou a exploração na região como prioridade máxima.

A bola da vez é o chamado Bloco 59, que pertencia à BP e cujo licenciamento é dado pela empresa como virtualmente certo. A Petrobras tem jogado com todas as suas cartas para que essa licença seja emitida brevemente pelo Ibama.

Para além do risco climático inaceitável —a julgar pelos cenários da IEA— de abrir mais uma fronteira de petróleo, licenciar blocos de exploração na margem equatorial sem uma avaliação ambiental da área sedimentar prévia traz risco imediato ao ecossistema marinho e à população que tira dos manguezais do norte da América do Sul o seu sustento. Mais do que ninguém, a Petrobras deveria temer aquelas águas, pois já teve um navio-sonda arrastado pela mesma correnteza forte.

É louvável que a companhia esteja, enfim (com anos de atraso em relação a concorrentes globais), olhando para fontes renováveis e para uma transição, mas convém lembrar ao presidente que zerar emissões diretas da produção de combustíveis fósseis é bem diferente de zerar emissões líquidas pela queima desses combustíveis. Estas só serão reduzidas se a estatal brasileira e todas as outras empresas do setor deixarem o petróleo onde deve ficar: no subsolo.

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