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Geni Núñez

Descolonizando os afetos

Imposição da cultura monogâmica fez parte do projeto de poder dos invasores

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Geni Núñez

Ativista indígena, escritora e psicóloga, é mestre em psicologia social e doutora no no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (UFSC); membro da Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos/as (Abipsi)

Nos últimos tempos tem havido um aumento das discussões sobre monogamia e não monogamia, em disputas que são perpassadas por uma grande diversidade de posicionamentos, opiniões e (pre)conceitos. Meu intuito é contribuir para o debate, apresentando um pouco de minha pesquisa sobre o tema.

Essa discussão não é recente, ainda que sua maior visibilidade o seja. Aqui em nosso território, os primeiros registros históricos que temos sobre monogamia e não monogamia (ainda que não exatamente nestes termos), estão presentes nas cartas jesuíticas.

De acordo com a historiadora Vânia Moreira, a imposição da monogamia se tornou uma grande obsessão dos missionários, uma vez que sem ela não seria possível o batismo —e, sem este, todo o sucesso da obra missionária estaria comprometido.

Para os colonizadores, nossos ancestrais eram seres "sem fé, sem lei, sem rei" (Pero de Magalhães, 1573). Isso porque, desde sua autorreferência, compreendiam que apenas sua fé era verdadeira, apenas suas leis econômicas e morais eram justas, que apenas seus marcos temporais deveriam ser seguidos. Munidos dessa certeza de que haveria apenas um único caminho, verdade e forma de viver, passaram a combater, em nome do bem e do amor, toda a diversidade de modos de existência indígena.

Em minha pesquisa, constatei que o primeiro uso do termo adultério é de ordem espiritual, ou seja, aqueles povos que adoravam outros deuses eram vistos como adúlteros, como pecadores que "provocavam ciúme" em seu deus. A diretriz era "você só consegue provar que realmente ama e adora a seu deus se não amar outros deuses ao mesmo tempo". Mais, se combater e tentar destruir os deuses "falsos".

Não à toa, o racismo religioso se funda na catequização. O projeto civilizatório associava evolução e desenvolvimento à adesão ao cristianismo e à monogamia e atribuía a não monogamia e outras formas de espiritualidade o atraso, a imaturidade, a falta de desenvolvimento.

Para os missionários, a monogamia era um sacramento, algo sagrado e inquebrável, uma vez que sendo também um laço com Deus não poderia ser dissolvida em hipótese alguma. Esse fundamento é chamado de "indissolubilidade do vínculo" e é a base da monogamia cristã.

Tanto por isso, apenas na Constituição de 1988 que o divórcio foi regularizado, pois se entendia que, se o casamento pudesse ser interrompido, a monogamia perderia seu sacramento.

Nossos povos não lidavam (e não lidam) com o tempo dessa forma, o que provocava um grande choque nos missionários.

O padre Diogo Ferrer, em uma carta de 1633, registra seu espanto ao ver que "os guaranis vivem junto quanto tempo querem, não praticam a perpetuidade do matrimônio". Os mesmos padres inventaram o pecado do nomadismo, pois acreditavam não ser possível catequizar/domesticar um povo em movimento. Talvez essa seja a principal dissidência entre monogamia e não monogamia na perspectiva indígena.

Não é sobre a imposição de um outro modelo, é um convite a acolhermos as mudanças, as transformações do que sentimos, sem que haja um marco temporal controlando e punindo esses fluxos.

Nossos povos nunca tiveram essa alta autoestima de acreditar que apenas nossos deuses eram verdadeiros. Não nos ameaça o que outras pessoas cultuam, não nos sentimos "desrespeitados" com o que outra pessoa faz de sua própria sexualidade ou fé. É por isso que não saímos tentando converter todo o planeta a nossa visão.

A não monogamia indígena rejeita todas as monoculturas que não admitem a possibilidade de concomitância, pois não vemos a terra, os rios, as matas e tampouco as pessoas como propriedades, como posses, mas como parte de quem somos, reafirmando o direito originário de toda existência à própria liberdade.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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