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Ademar Borges e João Gabriel Madeira Pontes

Concessão de graça a Daniel Silveira atenta contra a democracia

Cabe ao STF impedir que ato de Bolsonaro sirva como instrumento de projeto de poder autoritário

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Ademar Borges

Doutor em direito público (Uerj), é professor de direito constitucional do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa)

João Gabriel Madeira Pontes

Doutorando e mestre em direito público (Uerj)

A democracia brasileira continua sob forte ataque. As urnas —eletrônicas, auditáveis e confiáveis— cumpriram a importante missão de retirar Jair Bolsonaro da Presidência da República, mas isso não significa que possamos respirar aliviados. Desde o fatídico dia 8 de janeiro, em que assistimos atônitos à destruição das sedes dos três Poderes em Brasília, vêm surgindo indícios cada vez mais fortes da conivência ou da participação ativa de atores políticos, de agentes de segurança pública e de membros das Forças Armadas nos atentados ao nosso regime democrático.

Uma dessas figuras já é bem conhecida do grande público. Apoiador de primeira hora de Jair Bolsonaro, o ex-deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal, ainda no ano passado, por incitação à abolição violenta do Estado democrático de Direito e por coação no curso do processo. Porém, o então presidente lhe concedeu graça e perdoou a sua pena, na tentativa de mantê-lo fora da cadeia e apto a disputar as eleições. Depois de ter sido declarado inelegível pela Justiça Eleitoral, Silveira foi novamente preso no início deste ano, agora por ter violado as regras de uso da tornozeleira eletrônica e a proibição de utilizar redes sociais.

O ex-deputado Daniel Silveira ao lado do então presidente Jair Bolsonaro (PL) - Mauro Pimentel - 2.out.22/AFP - AFP

Após meses longe do radar da opinião pública, o tema retorna à ordem do dia com força total. Isso porque o STF marcou para esta quarta (3) o julgamento das ações que questionam a constitucionalidade do decreto presidencial que concedeu a graça ao ex-deputado. Com isso, a corte tem a oportunidade de solucionar a controvérsia de uma vez por todas, fixando precedente relevante sobre a matéria.

Ao perdoar Daniel Silveira, Jair Bolsonaro queria encurralar o Supremo Tribunal Federal, que, com todas as suas limitações, vinha servindo como importante trincheira na contenção dos arroubos autoritários cometidos pelo então presidente e seus correligionários. Não à toa, até hoje o STF é a instituição brasileira que mais sofre com ameaças ao seu funcionamento e à integridade física dos seus ministros. Basta nos lembrarmos que, de todos os prédios públicos depredados em 8 de janeiro, a sede da corte foi a mais vilipendiada.

Na época da concessão da graça a Daniel Silveira, o decreto presidencial foi intensamente celebrado pelos eleitores de Bolsonaro, que o enxergaram como um suposto ato de defesa da liberdade de expressão e da imunidade material do então parlamentar. Em contrapartida, setores comprometidos com a tutela da democracia viram no decreto um ensaio geral para o golpe. Silveira não fora condenado por um crime de opinião, mas sim por atentar contra o livre funcionamento do Estado democrático de Direito, de modo que, ao lhe conceder a graça, Bolsonaro deixava ainda mais clara a sua intenção de desacreditar o Judiciário e de desafiar o resultado das eleições de 2022, caso derrotado.

Contudo, mesmo entre juristas de credencial democrática, ganhou força o argumento de que, embora imoral, a decisão do ex-presidente não poderia ser revertida pelo STF. Isso porque, na opinião desses especialistas, a concessão de graça é ato administrativo dotado de alto grau de discricionariedade, que encontra limites apenas no texto expresso do art. 5º, XLIII, da Constituição, segundo o qual são "insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos". Como Daniel Silveira não havia cometido nenhum desses delitos, a graça concedida por Bolsonaro seria supostamente válida.

Tal interpretação, todavia, ignora que a Constituição de 1988 é o fruto mais bem acabado da luta pelo fim do autoritarismo e pela defesa intransigente do regime democrático. A nossa Constituição adota um paradigma "militante" de democracia, que não admite a concessão de graça ou indulto a quem conspira a favor de rupturas violentas da ordem constitucional. O conceito de democracia militante já é tradicional na história das ideias políticas e se fundamenta na premissa de que, diante de ataques à sua própria existência, os regimes democráticos têm legitimidade para lançar mão de medidas restritivas aos direitos fundamentais de agentes autoritários —inclusive as de natureza penal, como se verificou no caso de Daniel Silveira.

Nesse sentido, a interpretação favorável à validade do decreto de Bolsonaro, que parte de uma leitura descontextualizada da Constituição de 1988 e de suas normas, não passa de um contrassenso. É que a sua aplicação prática conduz à neutralização dos mecanismos de autodefesa da democracia brasileira e, no limite, chancela futuros atentados ao funcionamento das instituições. Afinal, se Bolsonaro pôde indultar os graves crimes cometidos por Daniel Silveira contra o Estado democrático de Direito, o que impede qualquer presidente igualmente autoritário de facilitar a vida de quem tente, com uso de violência ou grave ameaça, fechar o STF ou dissolver o Congresso? Adotar esse entendimento é cair na armadilha preparada pelo autoritarismo que, no final das contas, também se beneficia da complacência e da ingenuidade de democratas bem-intencionados.

Interpretar adequadamente o texto constitucional pressupõe, antes de tudo, não se afastar dos seus principais compromissos. No caso da nossa Constituição —que, segundo Ulysses Guimarães, tem "ódio e nojo" da ditadura—, isso significa aplicar os seus institutos à luz da necessidade de se proteger a democracia de ataques e graves ameaças. Cabe assim ao tribunal, no seu papel de guardião das regras do jogo democrático, reagir à altura e impedir que a graça possa servir como instrumento de um projeto de poder abertamente autoritário.

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