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Yavuz Baydar

Erdogan deve ganhar e afundar os adversários (menos um)

Espectro de colapso econômico é ameaça aos objetivos de avanço autocrático

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Yavuz Baidar

Editor-chefe da Free Turkish Press (FTP), é autor do livro "Die Hoffnung stirbt am Bosporus" ("A Esperança Morre no Bósforo"), da Droemer Verlag

Ondas de choque a ser seguidas por um trauma prolongado e depressão em massa. Uma grande desilusão aguarda a oposição turca, após uma noite eleitoral turbulenta. Mais uma derrota em massa... E, com certeza, veremos consequências de longo alcance em termos de política doméstica e internacional.

Após mais uma vitória em seu reinado —49.62% dos votos no primeiro e a maioria das cadeiras no Parlamento—, que já dura duas décadas, o presidente Recep Tayyip Erdogan parece continuar no seu caminho para transformar a Turquia em um país ainda mais a ser controlado por um governo de um homem só, desafiando a lógica sociopolítica e derrotando uma oposição que peca pelo entusiasmo e confiança excessivos.

Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia que disputa a reeleição - Adem Altan / AFP - AFP

O eleitorado turco de fato o escolheu mais uma vez, não obstante a crise econômica que ele criou; fingindo ignorar a corrupção que corrói a alma da sociedade e o gigantesco terremoto que expôs as falhas profundas de seu governo.

Agora, nos "dias seguintes", contra o pano de fundo de algumas complexidades das eleições, sabemos o que a maioria quer ver na Turquia em seu centenário e mais além: uma República com tons mais fortes de islamismo e nacionalismo, afastando-se da esfera do secularismo. Um país onde a extrema direita aventureira parece preparada para dominar seu caminho futuro.

É evidente que o voto dado nos ofereceu pistas palpáveis sobre o rumo que a transformação do país está seguindo. A extrema direita está ainda mais presente que antes em todo o espectro político do Parlamento.

É surpreendente a nitidez com que as coisas mudaram da noite para o dia. Antes das eleições, a euforia entre os setores oposicionistas, especialmente os da esquerda, era estonteante. No dia anterior ao primeiro turno, tudo parecia apontar para uma vitória fácil —se você fosse "tolo" o bastante para escolher acreditar nos teóricos de uma vitória oposicionista.

Tão grande era a confiança que aqueles que haviam "ousado" expressar dúvidas críticas sobre o potencial do campo pró-Erdogan e o controle deste sobre as instituições do Estado e a mídia eram criticados, minimizados e até mesmo atacados nas redes sociais. O realismo e o ceticismo haviam se tornado tabus, impossibilitando um debate sensato.

Em vez disso, vinda dos setores da academia e do jornalismo que apoiam a oposição, uma enxurrada de artigos quase científicos foi publicada dentro e fora do país expondo por que Erdogan estaria "acabado", não teria "outra escolha senão deixar o poder" e possivelmente até mesmo o país.

O excesso de confiança injustificada nos setores ocidentais e urbanos do país e entre os curdos foi fenomenal –um estudo de caso para cientistas sociais. O pior foi como partes insatisfeitas do eleitorado –um misto de pessoas seculares, orientadas ao Ocidente, urbanas, mulheres, jovens e curdos—enxergaram tudo isso.

Meses de uma retórica forte elevaram suas expectativas para as nuvens. Não é difícil imaginar o tamanho da queda no dia seguinte.

O canditado de centro-esquerda à Presidência da Turquia, Kemal Kilicdaroglu, discursa em Bursa diante de cartazes do atual presidente Recep Tayyip Erdogan - Murad Sezer - 11.mai.23/Reuters - REUTERS

Mas agora a noção de uma era de "presidência vitalícia" de Erdogan está ganhando contornos de realidade, indicando frustração e raiva voltadas contra Kemal Kilicdaroglu (o candidato oposicionista de centro-esquerda, de 74 anos e origem alevita), e a depressão em massa, baseada no sentimento de vitimação sob um governo majoritário agressivo, intolerante e que possivelmente ainda dure décadas.

No outro campo, que injetou mais nacionalismo no corpo político, o sentimento de vitória pode lembrar um momento Hannah Arendt: massas negras preferindo a sublimação de um patriarca e unidade cega em torno de uma causa sagrada. Erdogan alcançou o status de um messias, recebendo lealdade inabalável, a despeito dos terremotos financeiros e geográficos.

Será que ele vencerá no segundo turno deste domingo (28)? Novamente, não obstante a euforia forçada e retomada entre os mesmos círculos oposicionistas, é quase certo que sim —e possivelmente até de lavada. Para empregar uma analogia do futebol: estamos no 88º minuto da partida, e o time de Erdogan está ganhando por 6 a 0. A única esperança para o time de Kilicdaroglu é, bem, um milagre.

Há vários razões que explicam o que pode ser visto como uma vitória garantida para o líder autoritário turco: alguns eleitores que votaram em Kilicdaroglu podem não ir às urnas neste domingo (28) –por pura complacência. Outros podem somar-se aos defensores de Erdogan pensando na estabilidade, já que ele vai controlar o Parlamento.

Fato igualmente importante, todos os partidos do bloco oposicionista, à exceção do principal partido de oposição secular-centrista, o CHP, vão certamente se desanimar com a força de Erdogan e não farão campanha real por seu candidato, Kilicdaroglu, no segundo turno. Porque o importante para eles era entrar para o Parlamento —e conseguiram, graças a um acordo generoso fechado com o candidato.

O fato de um partido minúsculo, quase inexistente, o GP, liderado por Ahmet Davutoglu, ter eleito dez deputados, apesar de receber mais ou menos 0,1% dos votos, é um exemplo de como as coisas foram mal calculadas. Para cinco daqueles seis partidos, o importante era conseguir o maior número possível de cadeiras através de um "acordo" de aliança fechado com Kilicdaroglu graças à sua boa vontade (ingenuidade). Há pouca ou nenhuma esperança para ele de que esses partidos se engajem em apoiá-lo no segundo turno; afinal, já alcançaram sua meta. Não surpreende que o CHP tenha perdido tantos assentos em comparação ao período anterior.

Erdogan conquistou uma maioria clara no Parlamento, obtendo 322 cadeiras de um total de 600. Com a ascensão da extrema direita em seu apoio, ele enfraqueceu o CHP e o bloco curdo. A participação mais baixa dos eleitores nas províncias de maioria curda (cerca de 13) também revelou um cansaço notável nesse segmento da população.

Erdogan encurralou o flanco nacionalista da aliança oposicionista, IYIP, e deixou seus eleitores confusos e consternados. O autocrata reafirmou sua liderança na política de identidade. É muito provável que os eleitores do campo anti-Erdogan se sintam tão desanimados que nem sequer compareçam para votar.

É desnecessário dizer que, no "dia seguinte", o pessimismo e o desespero foram muito profundos entre meus amigos, colegas e conhecidos.

Francamente, sinto muito menos pena de alguns de meus colegas que, em lugar de procurar e denunciar "todas as facetas possíveis da verdade", apontando criticamente para os pontos fracos da oposição democrática e as armadilhas montadas pelo regime de Erdogan, optaram por ser líderes de torcida de uma campanha —e nada mais. Eles optaram por ignorar por completo todos os avisos vindos de círculos críticos e indivíduos céticos (como eu). Sua arrogância foi tão grande que alguns dos colegas que pensam como eu ou membros de think tanks do cenário internacional chegaram a ser tachados de "orientalistas" (!).

Mas tenho profunda pena dos outros, especialmente da jovem geração urbana turca, cujo futuro está sendo devorado pelas doutrinações do islamismo e do nacionalismo. Também estou profundamente entristecido pelos amigos que, com sonhos eternos, investiram suas esperanças numa alternativa que agora sentem que os iludiu.

E sinto tristeza profunda por meus amigos, como Osman Kavala, largados para apodrecer em prisões simplesmente por serem eles próprios: por discordarem democraticamente de Erdogan e os modos como ele agarra o poder em suas mãos de ferro.

Prevejo um êxodo intensificado de uma elite qualificada e desiludida que vai deixar a Turquia de modo definitivo.

As objeções ao resultado poderão continuar por algum tempo, mas, dado que Erdogan controla a maior parte do Conselho Eleitoral Supremo (YSK), é possível que se dissipem cedo ou tarde.

A partir do momento em que o YSK anunciar o resultado final, e se os aliados da Turquia e a União Europeia reconhecerem sua vitória, Erdogan terá pela frente a perspectiva de uma presidência vitalícia. E terá uma licença renovada para transformar a Turquia em uma autocracia de linha-dura, afastando-se de sua natureza secular e praticamente substituindo a República fundada por Ataturk por uma não democracia total, isso em seu centenário.

Mas será que a partida acabou? Quase, mas não completamente.

Erdogan pode ter atropelado os sonhos de um futuro um tanto democrático, mas seu adversário real está à espreita: o espectro de um colapso econômico. O presidente pode ter derrotado ou mutilado a oposição política –uma tarefa fácil para ele--, mas agora enfrenta um desafio sólido.

O líder turco reduziu o poder de compra, aleijou a moeda em pedacinhos, se orgulha de uma inflação galopante e um erário vazio. Uma avalanche se aproxima na forma de escombros econômicos, ameaçando soterrar a sociedade não informada.

Erdogan provavelmente vencerá neste domingo (28), interpretando o resultado da eleição como carta branca renovada para seguir transformando a Turquia numa autocracia implacável, de linha-dura. Mas, se não conseguir administrar a crise aguda, o país vai se encaminhar para um desastre. É possível que ele não saiba como lidar com isso.

E todos os indícios são de que um roteiro estilo venezuelano de miséria e turbulência social está sendo formado. Em outras palavras, as coisas terão que piorar muitíssimo antes de darem uma virada. É isso que, para o campo anti-Erdogan, converte o centenário da Turquia em motivo de luto, não de celebração. Sim, podemos ouvir muito sobre 2023 como sendo a data em que o legado do fundador Kemal Ataturk está sendo colocado num caixão.

Tradução de Clara Allain

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