Se uma mulher violentada sexualmente praticar o aborto após a 22ª semana de gestação, estará sujeita a uma pena maior do que a de seu estuprador —é o que prevê, na contramão do caminho tomado por países democráticos e civilizados, o projeto de lei 1.904/24, que agora tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados.
Em uma espécie de ofensiva reacionária, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa aprovou, na quarta (12), proposta para inserir na Constituição as normas de criminalização de porte e posse de drogas que hoje fazem a lei brasileira anacrônica e ineficaz.
As duas pautas decerto envolvem questões morais e de segurança que preocupam grande parte da sociedade. Elas avançam no Parlamento, porém, sem discussão sólida de mérito de política pública, à base apenas de ideologia e oportunismo político —e omissão pusilânime das forças em tese contrárias.
Atropela-se, de saída, a mais básica lógica legislativa. Não há nenhum sentido, como sustentou na quinta (13) o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em atribuir urgência ao texto sobre aborto, que demanda reflexão e terá consequências de longo prazo. Tampouco tem cabimento cimentar no texto constitucional um tema de lei ordinária.
No entender desta Folha, porém, o erro fundamental está em tratar aborto e drogas sob o prisma da criminalização, não da saúde pública —no sentido contrário ao indicado por estudos e evidências no Brasil e no mundo.
No caso da interrupção da gravidez, o efeito prático e cruel do texto será marginalizar quem procura pelo procedimento tardiamente, particularmente crianças.
Segundo dados de 2022, meninas de até 13 anos são vítimas em 61,4% dos casos de estupro notificados no país —e em quase dois terços elas são violentadas por familiares, o que dificulta diagnosticar a gestação antes da 22ª semana.
O texto impensado ainda pode afetar procedimentos realizados por risco à vida da mulher ou anencefalia do feto, hipóteses também permitidas atualmente.
Quanto às drogas, as regras em vigor desde 2006 —que parlamentares à direita querem pôr na Carta— mostraram-se desastrosas, sem fixar distinção clara entre traficantes e usuários. A consequência foi escalada do encarceramento que, em vez de reduzir a circulação de entorpecentes, forneceu mão de obra para facções criminosas.
Este jornal defende a legalização do aborto, de drogas leves e da eutanásia, com base no princípio da autonomia individual, cujos limites devem ser os direitos dos demais. Avanços nessa direção certamente serão graduais —o que não se deve admitir são retrocessos.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.