Diretas Já, caras-pintadas: leitoras relembram participação em atos pela democracia

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Americana (SP)

Os recentes atos e manifestos a favor da democracia no Brasil levaram um grupo de leitoras da Folha a rememorar o passado e repensar o futuro.

Elas relembraram suas participações em manifestações anteriores, como o movimento das Diretas Já e os protestos pelo impeachment do então presidente Fernando Collor, e projetaram o que esperam para o país após as já históricas eleições de outubro.

Fotografia colorida mostra jovens vestidos de preto e com rostos pintados de verde amarelo, conhecidos como os caras-pintadas, durante manifestação pelo impeachment do presidente Fernando Collor, em São Paulo
Jovens com rostos pintados de verde amarelo, conhecidos como os caras-pintadas, durante manifestação pelo impeachment do presidente Fernando Collor, em São Paulo - Eder Chiodetto - 18.set.1992/Folhapress

"Nunca pensei que teríamos que voltar a defender a democracia", disse Katia Pessanha, 63, de Curitiba (PR).

As mulheres fazem parte do Projeto Leitoras, uma iniciativa da Folha para se aproximar do público feminino por meio de grupos de discussão, conversas com jornalistas e outras iniciativas.

Leia a seguir os relatos.

Contra o "falso político do bem"

Fui com meu marido na manifestação dos caras-pintadas no gramado em frente ao Congresso Nacional, em Brasília. Fiquei impressionada com a quantidade de pessoas que, assim como nós, sonhavam com um mundo melhor, com mais oportunidades.

Vista aérea de manifestação pelo impeachment de Fernando Collor de Mello em frente ao Congresso Nacional, em Brasília (DF) - Márcio Arruda - 29.set.1992/Folhapress

Nós acreditávamos que o Brasil seria mais igualitário, mais humano e por isso não queríamos o Collor pois ele representava o "falso político do bem". A gente queria um representante no Planalto que falasse a nossa língua, que entendesse nossas necessidades e, principalmente, que olhasse para os menos favorecidos.

Hoje tenho dois netinhos e tudo que desejei para nossos filhos desejo agora para eles. Não quero esse Brasil que oprime e desemprega, quero um Brasil de oportunidades, emprego, renda, educação e saúde para todos e todas.

Denise Brandt, 58, artista plástica e empresária (São Paulo, SP)

Chamada na direção

- O diretor quer falar com você.

Eu tinha avisado meu chefe que dia 25 de janeiro iria ao comício pelas Diretas na capital e temi o pior. Eram tempos militares e a oposição ao governo era algo secreto e proibido, e eu trabalhava em uma multinacional.

- Você está indo mesmo pra São Paulo hoje, lá no negócio das Diretas?

- Vou.

Ele estendeu sua mão:

- Então, por favor, nos represente!

Vista aérea do primeiro comício pelas eleições diretas para presidente da República, na praça da Sé, em São Paulo (SP), que reuniu mais de 300 mil pessoas - Gil Passarelli - 15.jan.1984/Folhapress

A praça da Sé estava apinhada de gente que não se dispersou nem mesmo quando a chuva mansa começou a cair. Parecíamos formar um oceano de pessoas unidas pela água e que sequer abriam seus guarda-chuvas para não atrapalhar a visão do palco onde discursos inspiradores se sucediam. Sim, eram tempos duros, mas também seriam tempos inesquecíveis que revelariam o melhor de cada um de nós.

Kátia Pessanha, 63, escritora (Curitiba, PR)

Primeira eleição –minha e do meu pai

Me lembro do ano da eleição de Collor. A primeira para mim. E a primeira para o meu pai. Era muito estranho pensar isso, que eu e meu pai votamos para presidente juntos pela primeira vez. Meu direito ao voto, antes dos 18 anos, fora garantido na recente Constituição de 1988.

Me recordo dos efeitos da inflação naquele período. O salário entrava e naquele mesmo dia, fazíamos uma peregrinação por supermercados para garantir a "compra do mês". Se fizéssemos a compra no dia seguinte, menos itens seriam comprados, isso era garantido.

Atendente remarca preços em produtos de supermercado - Paulo Giandalia - 1992/Folhapress

Morando em Presidente Prudente (SP) e frequentando círculos pouco politizados, conservadores e religiosos –e não tinha internet, lembram?–, apenas me dei conta do movimento dos caras-pintadas pelo Jornal Nacional. As pessoas em Presidente Prudente não foram às ruas. Os estudantes não se mobilizaram. Não houve comício nas praças nem nas faculdades; as igrejas se calaram.

Hoje, para não repetir o passado, faço questão que meus filhos participem de manifestações e marchem comigo e com quem mais quiser se mobilizar. É um momento único estar ladeado por pessoas que você nem conhece, mas que sabem, que naquele momento, dia, hora, somos um organismo. Todas as vozes, todos os braços erguidos, um só.

Lília Sendin, 50, funcionária pública, Rio de Janeiro (RJ)

Lendo o Pasquim às escondidas

Como não lembrar a multidão reunida na manifestação pelas Diretas Já no dia 25 de janeiro de 1984, lotando a praça da Sé e as ruas adjacentes. O comício congregava várias lideranças políticas importantes, representantes da sociedade civil, intelectuais e artistas, todos dividindo o palanque e o discurso pela liberdade de expressão através do voto livre.

O grito "diretas já" e a multidão cantando eram de arrepiar, de chorar de emoção, um momento tão esperado que marcava o fim dos tempos difíceis e sombrios da ditadura.

A cantora Fafá de Belém participa de comício pelas eleições direitas, na praça da Sé, em São Paulo - Antonio Carlos Piccino - 25.jan.1984 / Agência O Globo

Na minha juventude, o que nos animava eram as músicas dos nossos compositores brasileiros: Chico, Geraldo Vandré, Caetano, Gil, Nara Leão –e, quando possível, ler o Pasquim às escondidas. Nosso desafio era conseguir espaços protegidos, semiclandestinos para discutir e compartilhar os ideais democráticos e buscar apoio para os políticos que poderiam fazer a diferença.

A Diretas Já marcou minha juventude, minha geração e nos encheu de esperança.

Triste ver o Brasil hoje aprisionado nas mãos de "homens públicos" eleitos pelo voto popular, mas totalmente descompromissados com os anseios da população! Viva a democracia.

Rita de Cássia Bonança, psicanalista (Campinas, SP)


Em 1983, eu estava no 3º ano da faculdade de engenharia civil. A faculdade não possuía histórico de lutas; a direção não permitia atos e manifestações em suas dependências. Como filha de ex-preso politico, eu agia de forma tímida, mas votar para presidente era um desejo que foi crescendo.

No ano seguinte, 1984, vinte anos após a ditadura militar, fui sozinha ao comício pelas Diretas no Anhangabaú. De repente, me vi no meio daquela multidão que ali se formou. Como foi lindo! Maravilhoso! Uma sensação inexplicável.

Depois, vieram as frustrações: a emenda não passou; Tancredo Neves foi eleito indiretamente, morreu sem assumir; tivemos Sarney e depois o povo elegeu Collor. Como doeu!

Quando, em 2002, elegemos Lula presidente, que sensação de vingança boa senti. Demorou muito para o povo perceber que o destino do Brasil enfim estava em suas mãos. Vejo que parece ainda não ter aprendido, mas tenho esperanças agora em 2022, de novo!

Odete dos Santos, 63, servidora pública e mãe do Ricardo (São Paulo, SP)

"Desesperar Jamais"

Eu trabalhava em um banco público numa época em que não existiam caixas eletrônicos nem sistemas integrados. Tudo era off-line.

Quando o primeiro presidente eleito pelo povo após a ditadura militar lançou o famigerado Plano Collor –aquele que confiscou o dinheiro da população–, ficamos todos esgotados, estressados e pelas tampas com a direção do banco. Passado um ano e meio, alguns de nós trabalhávamos com uma fita preta presa ao crachá, em sinal de protesto.

Quando chegou o dia da tão esperada liberação do dinheiro bloqueado, em 1990, a presidência do banco ordenou que se comprassem grandes rolos de tecido verde e amarelo. As agências deveriam colocá-los nas fachadas, simbolizando a adesão incondicional ao governo, que havia pedido à população que saísse às ruas vestindo as cores nacionais.

Uma das gerentes foi embora antes de nós e, ao sairmos, não resistimos: puxamos aqueles estandartes para o chão e jogamos no lixo. Para nós, não era possível usar as cores da bandeira para apoiar aquele crápula. Quando ele foi "impichado", assistimos a sessão da Câmara juntos, após o expediente da agência. Comemoramos juntos.

Isso nos dá perspectiva. Mesmo que ele tenha sido eleito novamente senador pelo seu estado, mesmo que o banco público tenha ido parar nas mãos de um assediador, um dia as coisas melhoram.

Em um só dia, o povo vai às urnas e muda o jogo. Esse dia chegará, está logo ali. Democracia dá trabalho, mas vale a pena.

Como diria Ivan Lins: "Desesperar jamais, aprendemos muito nesses anos/ Afinal de contas, não tem cabimento/ Entregar o jogo no primeiro tempo".

Maysa de Souza Villas Boas Francisco, 64, aposentada (São Paulo, SP)

As únicas caras-pintadas da cidade

Na época das Diretas Já, eu tinha 10 anos e morava em Ibertioga, uma pequena cidade do interior de Minas. No Cruzeiro, um morro alto que tem por lá, uma enorme antena trazia o único sinal que chegava: o da Vênus Platinada, a Rede Globo.

Os adultos entendiam que ter eleições diretas era algo importante e todo mundo torcia que para que, finalmente, pudéssemos ir às urnas escolher quem nos representaria. Foi muito frustrante quando não deu certo. Mais tristes ficamos quando Tancredo Neves, um político que adorávamos, morreu. Tancredo é de São João Del Rey, cidade próxima de onde eu vivia. Foi como se tivesse morrido um parente.

Eu não pude votar nas eleições de 1989 porque tinha 15 anos. Mas Collor nunca me enganou, e eu teria votado em Lula. Talvez por isso, em 1992, eu tenha sido uma das poucas caras-pintadas na minha cidadezinha. Eu e um grupo de amigas e amigos estávamos lá, naquele pedacinho de mundo, gritando "fora Collor" ou algo assim.

Hoje eu procuro sempre participar das principais manifestações a favor da democracia. Confesso que mais assino cartas e abaixo-assinados do que vou para a rua. Mas acredito que a luta vale. Sinto imensa tristeza ao ver pessoas que enfrentaram mais de perto ameaças democráticas no passado tendo que viver esse pesadelo de novo. A calmaria passou e precisamos voltar para as ruas. Seguimos.

Adriana Ibiti, 46, jornalista (Resende, RJ)


Veja frases das leitoras

Não quero esse Brasil que oprime e desemprega, quero um Brasil de oportunidades, emprego, renda, educação e saúde para todos e todas

Denise Brandt

58, artista plástica e empresária (São Paulo, SP)

Sim, eram tempos duros, mas também seriam tempos inesquecíveis que revelariam o melhor de cada um de nós

Kátia Pessanha

63, escritora (Curitiba, PR)

Era muito estranho pensar isso, que eu e meu pai votamos para presidente juntos pela primeira vez

Lília Sendin

50, funcionária pública, Rio de Janeiro (RJ)

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