Descrição de chapéu A mulher da casa abandonada

Podcast A Mulher da Casa Abandonada busca respostas em cenário de crimes nos EUA

Terceiro episódio da série vai a Gaithersburg e conversa com a principal testemunha das acusações contra Margarida Bonetti

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São Paulo

No terceiro episódio de A Mulher da Casa Abandonada, podcast da Folha que investiga o passado de crimes por trás de uma mansão degradada em São Paulo, o repórter Chico Felitti vai à pacata cidade de Gaithersburg, cenário dos crimes de que Margarida Bonetti foi acusada nos EUA.

Por duas décadas, uma empregada doméstica levada por Margarida e seu marido, Renê Bonetti, para o país viveu sob condições análogas à escravidão. Uma investigação do FBI apontou que ela não ganhava salário e era agredida.

A casa em que tudo isso aconteceu ainda está lá, mas há um manto de silêncio cobrindo os vizinhos. Até que uma moradora da mesma rua decide falar: a vizinha que ajudou a brasileira explorada a fugir da casa de Margarida e a buscar ajuda.

O terceiro episódio do podcast já está disponível de graça nas principais plataformas de áudio, como Spotify, Apple Podcasts e Deezer. A transcrição do roteiro está disponível no fim deste texto. Todas as quartas-feiras, às 7h, um novo episódio vai ao ar, até 20 de julho.

A capa do podcast tem o desenho de um casarão, em branco e preto. A imagem escorre até o nome do programa: A Mulher da Casa Abandonada
O podcast A Mulher da Casa Abandonada investiga a vida de uma brasileira que foi procurada pelo FBI - Editoria de Arte

A Mulher da Casa Abandonada é apresentado e escrito por Chico Felitti, autor do livro "Ricardo & Vânia", que narra a história de vida de um artista de rua conhecido como Fofão da Augusta, e que foi finalista do Prêmio Jabuti de 2020. Felitti também criou e apresenta "Além do Meme", série documental em áudio exclusiva do Spotify —eleita o Podcast do Ano pelo Prêmio Splash UOL em 2020.

A série tem participação da atriz e dramaturga Renata Carvalho, que interpreta em português as entrevistas feitas em inglês, e de Magê Flores, que apresenta o Café da Manhã, podcast diário da Folha, e também coordena a produção de A Mulher da Casa Abandonada. A edição de som do podcast é de Luan Alencar, e a produção é de Beatriz Trevisan e Otávio Bonfá.

Transcrição do terceiro episódio

Uma Rua em Silêncio

A casa no número 10.600 da Seneca Ridge Drive não poderia ser menos abandonada. É um imóvel retangular e que ocupa meio quarteirão. As paredes dos dois andares são de tijolos pintados de cinza, com uma varanda de madeira branca, cinco janelas em cada um dos pisos e uma caminhonete gigante parada entre a entrada e a garagem, que fica com a porta escancarada. A frente da casa é um gramado suave como um tapete, de onde sai um único pé de carvalho, beirando a calçada.

Essa casa é um retrato da paz. Inclusive na trilha sonora. O único ruído ao redor dela num dia de semana é o som de pássaros.

[sons de pássaros]

Seria uma casa americana de filme, só falta um detalhe: uma cerca de madeira branca. E as casas de Gaithersburg não têm cerca porque não precisam de cerca. Essa cidadezinha, a uma hora e meia de carro de Washington, é um dos lugares mais seguros dos Estados Unidos.

Gaithersburg é uma cidade tradicional. Foi palco de batalhas na Guerra de Secessão, que definiu a democracia americana como ela é hoje. O principal motivo dessa guerra era a batalha ideológica entre estados do Sul, que defendiam a escravização de pessoas, e estados do Norte, que acreditavam que todo ser humano nasce livre.

Essa é a única razão pro nome dessa cidade pequena aparecer em alguns livros de história.

[trecho de vídeo sobre a história de Gaithersburg]

Depois disso, muito pouco aconteceu em Gaithersburg. Em 2022, a cidade tem dois pontos turísticos. Ambos peculiares. O primeiro é o Lakeforest Mall. Um shopping center de 100 mil metros quadrados que fez sucesso nos anos 1980 e 1990, mas hoje em dia é um morto-vivo. Continua abrindo todos os dias, por mais que não tenha quase nenhuma loja.

[trecho de vídeo sobre o shopping Lakeforest Mall]

Today we are traveling to Gaithersburg Maryland to inspect a mall that I suspect to be deceptively tawdry. [Hoje, nós vamos até Gaithersburg, em Maryland, para visitar um shopping que eu suspeito ser espalhafatoso, mas que decepciona]

Então, YouTubers do mundo inteiro viajam até a cidade para fazer vídeos dos corredores do shopping, tipo esse cara que dirigiu horas até a cidade só para visitar o shopping e fazer um vídeo com clima de suspense. Alamedas e alamedas de lojas vazias, por mais que as luzes continuem acesas. É um clima de terror capitalista.

O segundo ponto turístico de lá é um dos maiores brechós da Legião da Boa Vontade do mundo. Como já deu para desconfiar, é uma cidade bem pacata.

No dia em que eu chego lá, a manchete do jornal é a denúncia de um possível desvio de verba. Quinhentos dólares que deveriam ter ido para a reforma de uma fonte, mas talvez tenham ido para uma festa do departamento histórico municipal. É uma cidade sem muita notícia.

A pasmaceira já começa na aparência dos bairros mais ricos. As ruas, pintadas de verde por árvores e gramados e com casas de dois andares, parecem um labirinto de espelhos. As vias são todas parecidas, as casas são todas parecidas, os nomes são todos parecidos. Tem três ruas na mesma vizinhança com o nome praticamente igual. A Seneca Ridge Drive se encontra com a Seneca Spring Way e, um quarteirão depois, a Seneca Ridge Court. É que um parque estadual ali do lado se chama Seneca Creek.

Talvez até as pessoas fossem parecidas, mas não tem ninguém na rua enquanto eu ando e ando por esse bairro rico americano. Eu tento encontrar a casa onde aconteceu um crime.

[som de passos na rua]

Até que eu encontro. Checo duas vezes no mapa do celular e tenho certeza. Foi ali, naquele gramado, que começou o resgate de uma pessoa. Uma empregada doméstica brasileira que passou quase 20 anos dentro da casa no número 10.600 da Seneca Ridge Drive trabalhando mais de 12 horas por dia sem ganhar um centavo por isso. Sendo ofendida, humilhada e agredida por duas pessoas que faziam parte da elite do país dela. Até que, um dia, ela conseguiu fugir.

VINHETA DE ABERTURA

Eu sou Chico Felitti e esse é A Mulher da Casa Abandonada, um podcast da Folha que investiga a história de Margarida Bonetti, uma brasileira que fugiu dos Estados Unidos depois de ser acusada de explorar e de agredir por duas décadas uma empregada doméstica que tinha levado com ela pro subúrbio de Washington. Margarida hoje mora numa mansão abandonada em um dos pedaços mais ricos de São Paulo. E a pessoa que ela explorou? Ninguém sabe onde ela está.

Terceiro episódio: Uma Rua em Silêncio

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Foi a esse bairro, rico e pacato, que um casal brasileiro chegou no fim dos anos 1970. O ano era 1979 e Rene Bonetti tinha recebido um convite de prestígio. Rene, engenheiro da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, era considerado um prodígio pelos colegas do departamento de engenharia elétrica, até que decidiu romper com a universidade e dizer sim para uma proposta da Intelsat, uma das maiores empresas de satélites espaciais do mundo. A oferta de emprego era nos Estados Unidos, e vinha com casa e passagens, tanto para o casal quanto para um funcionário que eles quisessem levar do país.

Rene e Margarida não tinham nem 30 anos de idade na época. Até pouco tempo antes de se casar, e de em seguida se mudar para os Estados Unidos, ela ainda morava com os pais na casa em Higienópolis que hoje eu chamo de casa abandonada. A mansão que leva o nome do pai dela. Quando os dois anunciaram que estavam de partida para o subúrbio de Washington, os pais de Margarida insistiram que eles levassem uma empregada doméstica que trabalhava na casa desde que era adolescente. Uma empregada analfabeta, que nunca teve a oportunidade de ir à escola. Uma amiga da família me disse que a empregada foi um presente de mudança, como se fosse possível dar uma pessoa de presente a outra. Não só era possível, como aconteceu. Essa era a mesma empregada para quem eles pararam de pagar o salário, assim que ela entrou na casa americana.

Essa história eu já saí do Brasil sabendo. Eu vim para os EUA na missão de descobrir detalhes. E os paradeiros do ex-marido e da ex-vítima de Margarida. Então, eu me boto a andar pelo bairro onde o crime foi descoberto, 20 anos atrás.

Eu passo mais de 12 horas batendo bota por lá. Paro as poucas pessoas que encontro na rua, sempre caminhando com os cachorros. E pergunto se eles se lembram da história que aconteceu ali, na rua em que moram.

[Chico] Oh, sorry to disturb you! [Desculpa incomodar]

[Pessoa que Chico encontra na rua] Oh no problem. [Sem problema!]

[Chico] Have a good one. [Tenha um bom dia]

[Pessoa que Chico encontra na rua] Ok!

E a mesma cena se repete. Eu peço desculpa pelo incômodo, o vizinho diz que nunca ouviu falar de um crime ali perto, eu me desculpo de novo, a gente se deseja um bom dia e eu saio andando.

Nada. E bato nas portas das casas com luzes acesas no fim de tarde. A maioria não me atende. Os poucos que atendem, dizem nunca ter ouvido falar de um crime que aconteceu a passos de casa, e que ganhou destaque nos principais jornais e revistas dos Estados Unidos.

Um dos vizinhos diz que até acha que ouviu falar do caso, mas me aponta para outra das ruas com nome Seneca, ali do lado

[Vizinho] I don't know the name, but it must be around here. Is it Seneca the drive or… there's two with very similar names. [Não conheço pelo nome, mas deve ser por aqui. É Seneca drive ou… Tem várias com nomes parecidos]

[Vizinha] So there’s Seneca drive and Seneca way?… [Então, existe a Seneca Drive e a Seneca Way]

[Chico] Oh…

[Vizinho] Or spring or something? [Ou será Spring? Alguma coisa assim]

[Vizinha] Or spring like that? I think it's up this way. [Eu acho que é por aqui]

Eu termino o dia com uma dúzia de pessoas dizendo quase a mesma coisa. "Crime? De exploração de uma pessoa? Aqui? Eu nunca ouvi falar!" E, então, eu parto do bairro rico, para o hotel que reservei para essa investigação. Uma biboca na beira de uma rodovia, atrás de um posto de gasolina. Eu chego com as mãos vazias. E o peito cheio de angústia.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

No segundo dia na cidade, eu pego um carro até a comunidade Mother of God, um grupo católico que administra uma escola e toca uma igreja. A mesma igreja que Margarida e o marido, René, frequentavam, segundo reportagens que saíram na época. Uma atendente da secretaria diz que a igreja não vai se pronunciar sobre o caso. E pede que eu saia.

Frustrado pela parede de silêncio que a cidade construiu ao redor do caso, eu decido ir para o município vizinho, tentar achar o registro mais formal que o caso teve. Visito o fórum da região, que fica na cidade de Greenbelt. Uma mulher sorridente abre um segundo sorriso quando eu digo a ela que estou ali para investigar um crime que aconteceu 20 anos atrás. Eu nem terminei de explicar qual é o caso que eu procuro e ela me interrompe com um "ãrram". Em menos de cinco minutos, ela faz algo que não era sua obrigação. Ela me manda no email um arquivo com quase 300 páginas. É o grosso do processo que tinha como réu René Bonetti.

É só então que eu tenho certeza: eu estou no lugar certo. E de fato ocorreu ali um crime que deveria ter entrado para a história da cidade. Mas não entrou.

Eu volto para o hotel e abro o arquivo de texto. Um dos primeiros parágrafos é o resumo da ação.

[narração de Magê Flores]

"Todos os dias, a vítima começava a trabalhar entre seis e sete da manhã, seguia até dez da noite, e ainda tinha de ficar ‘de plantão’, caso os Bonetti quisessem alguma coisa durante a madrugada, muitas vezes até uma da manhã."

Toda vez que você ouvir a voz da Magê Flores, que já conhece do podcast Café da Manhã, é porque está ouvindo o conteúdo de um documento oficial. Uma transcrição de depoimento prestado ao FBI. Um trecho do processo. Uma fonte segura.

[narração de Magê Flores]

"Durante quase 19 anos, a vítima trabalhou para os Bonetti em condições análogas à escravidão. A vítima trabalhava diariamente, sem nunca ter recebido pagamento pelo trabalho. Além de viver em condições deploráveis, a vítima foi agredida pela mulher de René Bonetti em incontáveis ocasiões."

O processo trata Margarida como "a mulher de René Bonetti", ou "a mulher do senhor Bonetti". Não é uma questão de machismo. É porque ele era o único réu presente no julgamento, então todos os fatos têm de ser ligados a ele de alguma forma. Ela não chegou a ir para o tribunal, a gente em breve vai descobrir por quê.

[narração de Magê Flores]

"Uma vez por semana, a vítima lavava as janelas da casa, do lado de dentro e do lado de fora. A vítima também tinha de realizar trabalhos na parte de fora da casa, como tirar a neve da entrada, recolher folhas, passear com o cachorro do casal e lavar os três carros da casa. Quando os Bonetti precisaram instalar um novo duto de gás para a casa, a vítima teve de passar quatro dias abrindo uma fossa no jardim, com uma picareta."

A lista dos trabalhos da empregada doméstica é muito mais longa do que isso. Ela tinha de levar o filho do casal na escola, lavar, passar e costurar roupas. Encerar o chão. Há uma passagem em que ela teve de ajudar a cimentar a calçada da casa. Se a lista de deveres era de páginas, a de direito não tinha nem uma linha.

[narração de Magê Flores]

"Por mais que casa dos Bonetti fosse avaliada em 250 mil dólares e tivesse ao menos três quartos vazios no andar de cima, a vítima era obrigada a dormir no porão, um lugar sem janelas nem banheiro. Os Bonetti proibiam a vítima de usar o chuveiro, ela tinha de carregar água em baldes, que depositava em uma banheira de metal que ficava no porão. Bonetti também colocou um cadeado na porta da geladeira, para evitar que a vítima a usasse"

O processo não repete tantas vezes a palavra vítima Fui eu quem substituí todas as menções ao nome completo dessa pessoa pelo mesmo termo. Na época, o nome e sobrenome completos dela foram publicados em quase todas as reportagens que saíram sobre o assunto, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Mas nesta série a gente não vai usar o nome dessa pessoa. Porque ela não cometeu crime nenhum, e por isso não é obrigada a ter sua existência ligada a essa história de dor e de exploração. Porque ela tem o direito de seguir adiante.

[narração de Magê Flores]

"Desde o momento em que a vítima chegou aos Estados Unidos, a esposa de Bonetti abusou dela fisicamente, às vezes com frequência diária. No primeiro momento, Margarida Bonetti batia na vítima com o punho fechado, mas depois passou a bater na vítima com um sapato. As violências eram tão frequentes que a vítima é incapaz de se lembrar quando começaram. Em uma ocasião, quando a senhora Bonetti não gostou do preparo de uma sopa, ela jogou sopa fervendo no rosto da vítima. Em outra ocasião, a senhora Bonetti arrancou chumaços do cabelo da vítima, o que causou sangramento, porque não gostou de como a vítima estava dando banho no cachorro."

Não há registro de violência de Rene contra a funcionária. Todas as agressões que a Justiça americana encontrou foram feitas por Margarida. Mas ele está diretamente ligado a casos de negligência.

[narração de Magê Flores]

"Um dia, a vítima estava limpando cacos de vidro do chão da casa, e por acidente se cortou. A ferida na perna infeccionou depois de alguns dias. Margarida Bonetti comprou gaze e uma pomada para a vítima, mas se recusou a levá-la a um médico, por mais que a ferida tenha piorado. Quando a vítima foi finalmente levada a um hospital, mais de um ano depois, ela foi diagnosticada com uma osteomielite, uma infecção óssea causada por bactérias, e teve de passar quatro dias internada. A infecção foi tratada, mas deixou a vítima com uma cicatriz na perna"

Os patrões, ou exploradores, negavam atendimento médico à doméstica. Por meses, no caso da ferida da perna que piorou com o tempo. E por anos, no caso de um tumor que crescia no abdômen da empregada.

[narração de Magê Flores]

"A vítima também desenvolveu um tumor do tamanho de um melão em seu abdômen enquanto trabalhava na casa dos Bonettti. Ela pedia que René Bonetti a levasse a um médico, mas ele se recusava."

Enfim, o processo era o relato mais completo dos crimes. E estava tudo lá. Mas eu não consigo encontrar resquícios daquela história no lugar onde ela aconteceu. Era como se esse processo só existisse no papel. Como se fosse uma história de ficção, presa dentro de um livro, ou a narrativa de uma guerra que aconteceu antes de Cristo, e portanto ninguém se lembra. Mas foi um crime noticiado, que aconteceu só 20 anos atrás.

A história está contada nos autos. Mas um processo é só um recorte de uma história. Por mais que os autos tenham centenas de páginas, eles não contam tudo o que aconteceu.

[narração de Magê Flores]

"Durante esses 19 anos, os Bonetti alegaram falsamente que estavam pagando o salário da vítima em uma conta bancária. Quando a vítima perguntou se podia receber o salário diretamente, René Bonetti se recusou. A vítima nunca recebeu pagamento pelo trabalho.

Falta alguma coisa de humano. Falta saber de onde essa pessoa, explorada a vida inteira, tirou força para denunciar o que acontecia. E foi o que eu encontrei no dia seguinte.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

No meu terceiro dia nos Estados Unidos, alguma coisa rompe o silêncio. Não é uma das pessoas que abordo na rua. Nem uma das poucas portas que se abrem quando eu bato. É um e-mail. Um e-mail que botava fim em um pebolim de mensagens que eu tinha começado meses antes.

Em janeiro, eu tinha começado a mandar centenas de e-mails para todas as pessoas envolvidas nesse caso. Policiais. Vizinhos. Ativistas de grupos de imigração. E uma das mensagens que eu tinha escrito foi para a doutora Mary Healy, uma das teólogas mais respeitadas dos Estados Unidos. É que, no começo dos anos 2000, a doutora Healy tinha chefiado a comunidade católica Mother of God, aquela que o casal Bonetti frequentava e que não se pronunciou. Ela me encaminhou para um padre da região. O padre tinha me colocado em contato com a líder comunitária de uma associação de mulheres latinas da cidade. E essa pessoa tinha me falado: "eu conheço alguém que tem ligação com esse caso", e disse que, se a pessoa quisesse conversar, ela me escreveria.

No meu terceiro dia de Estados Unidos, eu recebo um e-mail que arranha a redoma de silêncio sobre o caso. A mensagem é bem curta. Pouco mais do que essa frase aqui:

[Renata Carvalho narra e-mail de Vic Schneider]

"Eu fui a testemunha principal do caso. Trabalhei ao lado do FBI durante um ano. Se quiser me encontrar, avise, por favor. Minha agenda é bem apertada. Obrigada. Vic Schneider"

A Renata Carvalho vai ser a voz em português tudo o que a Vic Schneider, que a gente está prestes a encontrar, disser em inglês.

A casa de Vic fica na mesma rua onde moraram os Bonetti até o começo dos anos 2000. Não são vizinhos colados, o endereço que a pessoa me passa fica a uns 50 metros do número 10.600 da Seneca Ridge Drive, no fim da rua. É uma casa de madeira azul. A única da vizinhança que tem uma imagem de Jesus Cristo pendurada na porta.

Eu bato. E uma mulher franzina, com óculos grossos e maiores que o rosto, abre. Ela tem os cabelos curtos pintados de acaju e usa um xale, mesmo dentro de casa.

[Chico] Good evening! [Boa noite!]

[som do portão abrindo]

[Vic] Today is the day! [É hoje o dia]

[Chico] How are you? [Como vai você?]

[Vic] OK.

[Chico] Today is the day. [Hoje é o dia]

[Vic] Sorry! [Perdão]

[Chico] No it's OK, excuse me. Thank you very much. [Com licença, muito obrigado]

Ela me dá oi e a gente troca gentilezas até ela me convidar para entrar. Parece que estou entrando em uma igreja. Há imagens de santos em todos os cantos. Uma Virgem Maria do tamanho de uma criança está cercada por outras, menores. Vic me conduz até a sala de jantar. Em cima da mesa, tem uma pasta preparada com documentos e recortes de jornal sobre o caso.

Eu começo perguntando se a casa ali do lado é a mesma casa do crime. E ela confirma.

[Renata narra em português a voz de Vic, com o som original baixinho ao fundo]

Aquela é a casa onde ela morava. E, acho bom que você saiba, que eu sou católica. O Senhor me ensinou. Quer dizer, eu tive uma criação católica, mas nunca fui catóóólica catóóólica de verdade (risada).

Até que fui tocada pelo Senhor. É que a gente tem uma filha com deficiência, e eu vi os milagres serem operados. E também vi um milagre ser operado com ela. E foi aí que eu voltei à religião

O milagre ao qual a Vic se refere começou meses antes de ela denunciar o casal Bonetti ao FBI. Começou quando um dia uma mulher que ela não conhecia bateu na porta dela. Era a empregada dos Bonetti, uma mulher simpática de quase sessenta anos. As duas nunca tinham conversado, mas a brasileira disse que tinham uma amiga em comum. Era uma mulher que falava português e morava a uns cinco quarteirões dali. Era a única pessoa com quem ela conseguia conversar, já que ela não falava uma palavra de inglês. Um dia, essa mulher disse para a empregada: você sabe que tem uma vizinha sua que fala espanhol? Vocês podem conversar. Foi daí que a brasileira bateu na porta de Vic.

E as duas viraram amigas. Sempre que podia, a empregada batia na casa de Vic, onde as duas passavam horas conversando em portunhol. Falavam de Deus, de comida e de limpeza. Mas, aos poucos, começaram a falar também da vida da brasileira dentro de casa.

[Renata]

Quando eles saíam de férias e iam para o Brasil, ela vinha e me contava tudo o que eles estavam fazendo com ela.

Um dia, Vic perguntou quantos anos a nova amiga tinha. A brasileira disse que não sabia. Vic perguntou: "Mas como assim, você não sabe sua idade?". Foi então que ela disse que tinha documentos, mas que, como não sabia ler, olhar para papéis era como ouvir americanos falando. Ela não entendia nada. E que nunca tinha pegado na mão o próprio passaporte. Ele ficava com René e Margarida.

A mulher também contou dos problemas de saúde. E de como os patrões não a levavam ao médico. Foi então que Vic deu um primeiro passo. Quando cruzou com Rene na igreja, o parou e perguntou, sorrindo, por que ele não estava ajudando a empregada a cuidar da saúde dela.

[Renata]

E, quando eu encontrava com ele na igreja e dizia "Olha, ela está com esse problema e esse outro problema também", ele só respondia: "A minha mulher tá cuidando disso. A empregada tem um médico no Brasil que passa os remédios que ela precisa tomar."

Era mentira. E Vic já sabia que era mentira porque a própria empregada contava para ela. Contava de como ficou meses com a ferida infeccionada na perna e de como há mais de um ano pedia para ir a um médico que pudesse ver por que a barriga inchava cada dia mais.

Vic passou a avisar a amiga que alguma coisa estava errada. Que eles não podiam tratá-la assim. Que ela tinha direito a ir ao médico. Mas ela desconversava. Até que, em abril de 1998, os Bonetti foram passar férias de alguns meses no Brasil. E a empregada começou a se abrir mais e mais.

[Renata]

Eles iam para o Brasil passar férias todo ano. E tudo começou quando eles estavam no Brasil. Quando ela foi resgatada de fato. E quando ela se mudou da casa eles estavam no Brasil

Antes de procurar a polícia, Vic pensou que poderia encontrar apoio na vizinhança. Atravessou a rua e foi conversar com um vizinho, que trabalhava com questões trabalhistas no Banco Mundial, onde ela mesma já tinha trabalhado. Mas a resposta que ouviu dele foi um balde de água fria.

[Renata]

E ele me disse: "Você não vai chegar a lugar nenhum. Você pode até fazer isso, mas não vai conseguir nada." E eu respondi: "OK, mas vou fazer assim mesmo. Eu tenho Deus comigo, então vou pensar em algo.

Mas a verdade é que ela não tinha pensado em nada. Voltou para casa sem fazer ideia de como proceder. Sabia que a amiga brasileira era explorada e agredida. Que estava há quase 20 anos sem ganhar um centavo. Mas não sabia como fazer o mundo acreditar.

[Renata]

E, quando eu me vi diante dessa situação, eu disse: Ó, Senhor, Você tem de me ajudar!

Ela diz que foi nessa noite que aconteceu um milagre. E que a ajuda veio na forma de uma carta aberta escrita pelo Papa.

[Renata]

Eu não queria falar nada. Eu não queria fazer nada, sabe? Mas na carta que João Paulo Segundo escreveu, ele dizia…

E então Vic declama de cor uma carta escrita por um Papa.

[Renata]

O ano do Jubileu foi concebido para restaurar a igualdade entre todas as crianças de Israel. Para lembrar aos ricos que virá um tempo em que os escravos de Israel voltarão a ser iguais a eles, e poderão reivindicar seus direitos.

Não é exatamente o texto do papa, mas o sentido é o mesmo. Ele realmente fala sobre o ano do jubileu ser o momento das pessoas escravizadas se tornarem iguais às pessoas livres. E ela sentiu que a carta tinha sido escrita não para ela, mas para a mulher que era escravizada na rua da casa dela.

[Renata]

Então, eu, como cristã, senti que era minha responsabilidade ir adiante. E foi assim que comecei. Primeiro, eu entrei em contato com a igreja que o René Bonetti costumava frequentar. A mesma igreja a que eu ia todo dia de manhãzinha. E eu entrei em contato com o padre, e contei tudo.

Enquanto os Bonetti ainda estavam no Brasil, Vic decidiu agir. Procurou alguém da igreja Mother of God, que ela e Margarida frequentavam, para pedir ajuda. Mas não foi acolhida na primeira tentativa.

[Renata]

E é claro que eles não acreditaram no que eu estava contando! (risada) "Não poder ser verdade, não pode ser verdade"

Em seguida, ela foi a outra igreja, menor e mais próxima da casa dela. E se encontrou com um segundo padre.

[Renata]

O Padre disse: "É verdade o que ela está dizendo??? Ela não está… Eu não conheço essa mulher. O que eles fizeram com ela?"

E eu disse: "Padre, é tudo verdade. Eu vi que eles batiam nela, eles queimaram ela com água fervendo e tudo o mais".

Esse padre acreditou no que estava ouvindo. E se dispôs a ajudar. Mas já avisou a Vic que a ajuda dele não bastaria. Que ela precisaria de um advogado ou uma advogada que topasse apresentar o caso para a Justiça.

[Renata]

Eu não conheço ninguém! Eu não tenho advogado! Quem vai me ajudar? (risos) Eu não sei! O senhor sabe?

Até porque, no começo de 1998, nem a própria vítima queria colaborar. Ela tinha medo de falar sobre os crimes com qualquer outra pessoa que não a amiga Vic.

[Renata]

É. A gente acabou virando amigas, viramos amigas. Mas ela estava numa lavagem cerebral tão grande. E era ameaçada pelos Bonetti: se falasse para alguém, eles ameaçavam mandá-la de volta para o Brasil, ou até pra cadeia, alguma coisa assim. Então, ela defendia eles!

Ainda sem saber se conseguiria levar o caso à Justiça, Vic ligou para uma advogada famosa da região. Um nome que via nos jornais. Da primeira vez que se falaram, era um sábado. A mulher ouviu as denúncias e disse que provavelmente haveria um caso ali. Mas que ela estava ocupada demais para trabalhar nele.

[Renata]

O dia seguinte era domingo. E ela me ligou, a mesma advogada. Ela disse: "Quer saber? Eu repensei. Eu vou pegar esse caso. E vou entrar em contato agora com a promotoria pública, para eles entrarem em contato com a senhora."
E foi assim que tudo começou.

E, com ajuda da advogada, Vic formulou uma denúncia para o FBI, com informações que a empregada tinha passado, mas sem a amiga brasileira saber que a polícia iria se envolver. Poucos dias depois, agentes da polícia federal americana estavam na soleira da casa de Vic. Eles a ouviram por horas, antes de bolar um plano de investigação da denúncia, que naquele momento não passava disso: uma denúncia de um possível crime, feita por uma vizinha.

[Renata narra em português a entrevista de Vic, com o som original baixinho ao fundo]
As pessoas dizem: "Ah, o FBI não ajuda em nada." Mas eu tenho o FBI na mais alta estima. Eles são pessoas maravilhosas. Eles passaram quase dois anos aqui (risada)!

Primeiro, os agentes trabalharam na surdina. Iam à paisana para a vizinhança. Conversaram com Vic e tentaram contato com outros vizinhos. Segundo Vic, ninguém mais quis falar. Como ninguém quis falar comigo. Era uma rua em silêncio.

[Renata]

Algumas pessoas conheciam ela. E ninguém queria ajudar, porque essa é a ideologia aqui nos Estados Unidos. "Eu não quero me envolver." Ninguém ajudou ela. Eles não queriam ajudar.

As pessoas já desconfiavam que algo tivesse errado na casa dos Bonetti. Mas preferiram ficar em silêncio. Vic diz que os vizinhos se preocupavam mais com o bem-estar dos bichos de estimação da casa dos vizinhos brasileiros do que com a possibilidade de um ser humano ser vítima de um crime ali dentro.

[Renata]

Os vizinhos estavam mais preocupados com os gatos! (risada)

É isso. (risada)
"Ah, os gatos, os gatos"

E, depois da polícia tentar falar com todas as casas da rua, ela prestou depoimento. Tirando ela, a outra amiga da empregada, que morava a cinco quadras, também topou falar. E só mais um vizinho.

[Renata]

Você sabe, né? É assim, é infelizmente assim que são os americanos, a gente sabe (risada).

Depois de semanas de investigação, o FBI decidiu entrar na casa da família Bonetti. Como a empregada estava lá, não precisavam de mandato. Então, Vic convenceu a brasileira a deixar os policiais entrarem, e mostrar como vivia. Ela relutou, mas acabou permitindo.

[Renata]

Eu pedi que eles fossem até a casa. E foi aí que eles viram. Viram que a geladeira estava trancada com um cadeado. E eu não tinha visto que a geladeira estava trancada, os armários estavam trancados. Então, eu virei para ela e falei: "Mas como você come???"

A brasileira respondeu para Vic que não podia comer a comida da casa, mas que podia comprar comida fora de casa com o dinheiro que Margarida e René tinham deixado em cima do balcão.

[Renata]

"Bom, ele me deixou um dinheiro". Como ela era analfabeta, ela achou que era muito dinheiro. Mas eram só cinco dólares!!!

Sabe o que ela ia conseguir comprar com cinco dólares? Então eles todos viram essa situação. E eu disse: "O que eu estou mais preocupada é que alguém examine a barriga dela. E também precisamos de alguém para ver a situação legal dela no país.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Depois de 20 anos quase sem atendimento médico, a empregada doméstica brasileira finalmente conseguiu ir a um hospital para descobrir por que a barriga estava inchada, como se ela estivesse grávida, por mais que ela já tivesse passado da menopausa.

Os Estados Unidos não têm um sistema público de saúde. Ou seja, alguém teria de desembolsar centenas de milhares de dólares para que essa mulher pudesse fazer os exames e as cirurgias de que precisaria. E isso não era possível. Então, a amiga Vic ajudou a criar uma rede ao redor dela. O padre da paróquia local entrou em contato com uma freira que os indicou para uma clínica de jesuítas.

Os padres da ordem jesuíta podem estudar medicina. E há centenas de médicos jesuítas pelo mundo, fazendo caridade com um jaleco branco em cima da batina. Semanas depois, ela passou em consulta, ao lado de Vic. Depois dos exames, o padre, que não falava portuguès, puxou a vizinha de canto para conversar.

[Renata]

Daí, o médico me disse: "Você sabe que ela tem um sangramento?".
E eu disse: "Você está machucada?"

E ela me disse: "Sim, eu não queria te contar, para não te assustar. Eu andei sangrando."
E o médico me disse: "Bom, amanhã vocês têm de voltar, para ela ser atendida pela equipe de um dos melhores hospitais de Washington".

A mulher não queria ficar. Queria ir para casa. Tinha medo que os patrões voltassem de viagem e não a encontrassem lá. Mas Vic perguntou para ela: "Não é o que você pede para eles há anos, para te levar no médico?". Ela concordou. "Então nós vamos ao médico", disse Vic. E convenceu a amiga. No dia seguinte, elas voltaram para fazer mais exames.

[Renata]

A gente foi. Sem saber o que ia acontecer. A gente foi pra clínica e… O médico disse: "Ela não vai para casa. Ela vai daqui direto para o hospital."

Na hora em que soube que teria de ser internada, a brasileira ficou nervosa. Não queria dar entrada no hospital. Mais do que estar com medo, ela tinha uma outra preocupação: com a casa que tinha de cuidar.

[Renata]

E ela me disse: "Eu não posso abandonar os gatos!". E eu disse pra ela: "VOCÊ ME ESQUEÇA ESSES GATOS" (risada)

A vizinha garantiu que tomaria conta dos bichos enquanto a brasileira estivesse internada e os Bonetti estivessem no Brasil. E assim foi feito. Fez uma cirurgia em que foram retirados sete tumores, mas não apenas. Ela teve também de tirar o útero, que já estava comprometido. Ficou quase um mês no hospital em Washington.

Quando saiu de lá, não tinha para onde ir, a não ser para a casa de René e de Margarida. Então, o padre de uma paróquia de Washington se ofereceu para ajudar. Disse que conseguia improvisar um apartamento para a mulher se esconder enquanto o processo corria. E ela aceitou.

[Renata]

E, na igreja, eles tinham, tipo, um apartamentinho, do lado da Igreja, que eles reformaram para ela poder morar ali. Ninguém ia saber onde ela estava, porque, inclusive no hospital, deram um novo nome para ela. Ela não estava registrada com o próprio nome, porque eles iam voltar a qualquer momento.

Os Bonetti voltaram do Brasil e não encontraram em casa a mulher que exploravam. Assim como eu, eles deram de cara com uma parede de silêncio. Os vizinhos diziam não saber de nada, não ter visto nada. Até que, um dia, Renê cruzou com a vizinha Vic. E perguntou se ela sabia onde estava a empregada doméstica.

[Renata]

E eles sabiam que ela vinha me ver. Então, o Bonetti veio me perguntar: "Você sabe onde ela está?" E eu: "Não, eu não sei".

Ela mentiu por medo de que René e Margarida pudessem achar a brasileira e convencê-la a voltar. E, poucos meses depois, o casal foi envolvido na investigação. A ex-empregada viveria escondida durante dois anos. No começo dos anos 2000, o inquérito virou um processo, e a informação de que um casal rico estava sendo acusado de escravizar uma pessoa em Gaithersburg veio a público.

Saiu nos principais jornais, do Brasil e do mundo. Mas a saga jurídica a gente vai acompanhar no próximo episódio. Antes dela, basta saber que uma das acusadas fugiu quando o caso ainda era tratado com sigilo.

Em setembro de 1998, o pai de Margarida morreu. E ela conseguiu sair dos Estados Unidos sem ser impedida pelo FBI, alegando que vinha para o enterro dele. Afinal, eles ainda não tinham sido indiciados, eram apenas investigados por causa de uma denúncia.

René, que tinha abdicado da cidadania brasileira em nome de um passaporte americano, ficou em Gaithersburg. Não está claro se ele achava que a mulher ia voltar depois do velório do pai, ou sabia que enfrentaria sozinho um processo judicial que começaria em breve, e consumiria a próxima década.

[Renata]
Assim que a investigação começou, ela fugiu. Ela era tão esperta. Pegou as malas e zarpou.

Margarida partiu. Para nunca mais voltar ao país onde morou por 20 anos. Margarida pegou um avião para o Brasil e se mudou para uma casa. A casa em que tinha crescido. A casa que já tinha visto dias melhores. A casa que, dali por diante, seria conhecida na vizinhança como a casa abandonada.

FIM DO EPISÓDIO

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