Descrição de chapéu A mulher da casa abandonada

Podcast A Mulher da Casa Abandonada conta os rumos tomados por duas pessoas livres

Quarto episódio da série revela os caminhos percorridos por Renê Bonetti e pela empregada escravizada nos EUA

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São Paulo

O quarto episódio de A Mulher da Casa Abandonada, podcast da Folha que investiga o passado de crimes por trás de uma mansão degradada em São Paulo, apresenta como se desenrolaram as acusações contra Renê e Margarida Bonetti nos Estados Unidos —e procura pelo homem que acabou condenado pela Justiça americana.

Além disso, em novas conversas com a principal testemunha do caso, Vic Schneider, o programa revela o que se sabe sobre o paradeiro da brasileira que foi escravizada por duas décadas nos EUA e só conseguiu se ver livre dos abusos na virada do século.

O quarto episódio do podcast já está disponível de graça nas principais plataformas de áudio, como Spotify, Apple Podcasts e Deezer. A transcrição do roteiro está disponível no fim deste texto. Todas as quartas-feiras, às 7h, um novo episódio vai ao ar, até 20 de julho.

A capa do podcast tem o desenho de um casarão, em branco e preto. A imagem escorre até o nome do programa: A Mulher da Casa Abandonada
O podcast A Mulher da Casa Abandonada investiga a vida de uma brasileira que foi procurada pelo FBI - Editoria de Arte

A Mulher da Casa Abandonada é apresentado e escrito por Chico Felitti, autor do livro "Ricardo & Vânia", que narra a história de vida de um artista de rua conhecido como Fofão da Augusta, e que foi finalista do Prêmio Jabuti de 2020. Felitti também criou e apresenta "Além do Meme", série documental em áudio exclusiva do Spotify —eleita o Podcast do Ano pelo Prêmio Splash UOL em 2020.

A série tem participação da atriz e dramaturga Renata Carvalho, que interpreta em português as entrevistas feitas em inglês, e de Magê Flores, que apresenta o Café da Manhã, podcast diário da Folha, e também coordena a produção de A Mulher da Casa Abandonada. A edição de som do podcast é de Luan Alencar, e a produção é de Beatriz Trevisan e Otávio Bonfá.

Transcrição do quarto episódio

Uma Mulher e um Homem Livres

Eu estou no saguão de uma empresa de tecnologia na cidade de Dulles, no estado americano da Virgínia. O piso do prédio térreo é uma imitação de granito. A recepção é despida de móveis, a não ser por dois foguetes de quase dois metros que ficam encostados numa parede ao lado da recepção. Sim, foguetes como os que são enviados ao espaço. Ou maquetes de foguetes, no caso.

[sons de passos e portão abrindo]

Eu não deveria estar ali. Tem uma placa na parede, avisando, em inglês e em espanhol, que o lugar é uma área de segurança nacional, onde é proibido gravar, fotografar e até mesmo entrar, se você for uma pessoa avulsa. Como eu.

Mas eu cruzo o saguão e vou até a bancada da recepcionista.

[Recepcionista] Hi! [Oi!]

[Chico] Hello. I'm looking for Mr Renê Bonetti [Olá. Eu estou procurando o senhor Renê Bonetti]

[Recepcionista] Are you visiting? [Você vai visitá-lo?]

[Chico] Yeah, he is not expecting me. [Ele não está me esperando]

[Recepcionista] Is NOT expecting you? [Ele NÃO está te esperando?]

[Chico] Is not expecting. We have to be honest here. [Não, eu tenho que falar a verdade]

Eu digo para a recepcionista que estou ali para ver Renê Bonetti, que talvez seja funcionário. Ela pergunta se ele está me esperando. Eu sou sincero e digo que não. Mas não digo que estou lá para descobrir se o ex-marido de Margarida Bonetti de fato trabalha lá. Se, depois de ser condenado por submeter uma pessoa a trabalho análogo à escravidão e ter ficado preso, ele voltou a ter um cargo de chefia numa empresa de renome. Ela só me olha com cara de dúvida. E, então, saca o telefone.

VINHETA DE ABERTURA
Eu sou Chico Felitti e esse é o quarto episódio de A Mulher da Casa Abandonada, a investigação da história de um casal de brasileiros que levou uma empregada doméstica para os Estados Unidos no fim da década de 1970. Quase vinte anos depois, uma vizinha descobriu que essa empregada era submetida a agressões e a trabalho análogo à escravidão. O engenheiro Rene Bonetti foi acusado desses crimes pela Justiça americana no começo dos anos 2000. Enquanto isso, a suspeita Margarida Bonetti fugiu dos Estados Unidos e se mudou para uma mansão decadente em São Paulo, onde mora até hoje. E não há registros de onde esteja a vítima.

Quarto episódio: Uma mulher e um homem livres.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Voltamos à casa de Vic Schneider, em Gaithersburg, no estado de Maryland. A vizinha que se aproximou da empregada dos Bonetti e a ajudou a procurar a Justiça. No começo do ano 2000, Renê e Margarida foram oficialmente acusados. Eram três as acusações: a primeira, de ter mantido uma empregada doméstica em regime análogo à escravidão por quase duas décadas. A segunda é que Renê teria conspirado com Margarida para manter uma imigrante ilegal no país, afinal, o visto de trabalho da empregada passou quase 15 anos vencido. A terceira acusação era de tê-la submetido a maus-tratos e colocado a vida dela em risco.

No começo de 2000 foi quando o caso veio a público, por mais que o FBI tivesse passado os dois anos anteriores investigando, e por mais que a ex-empregada já estivesse vivendo escondida em uma igreja. A vizinha Vic teve de seguir a vida por esses dois anos como se não fosse ela a pessoa que fez a denúncia. Algumas vezes por mês, ela cruzava com Renê. Mas, conforme o tempo ia passando, cada vez mais os vizinhos brasileiros tinham certeza de que ela estava envolvida na denúncia. Até que um dia, no estacionamento da igreja, Renê deu uma prensa nela, e Vic disse a verdade.

[Renata Carvalho narra em português a voz de Vic, com o som original baixinho ao fundo]

Eu estava no meu carro. E ele passou e disse: "Ô, Vic, como vai?" E eu disse "Estou bem". Ele perguntou "Você tem visto a empregada?". Eu disse que sim. "Você pode dizer para ela que eu mandei um oi?" Dá pra imaginar isso? (risada)

Vic vivia com a pressão de ser a única pessoa, além do FBI, a saber onde estava escondida a mulher que por anos morou na casa dos Bonetti. E também vivia com outra espada imaginária sobre a cabeça dela: a possibilidade da empregada não querer denunciar os antigos patrões.

[Renata]

Por exemplo, no período que ela passou no hospital, tudo o que o FBI sabia vinha do que eu contava a partir do que ela tinha me contado. Certo? Mas o FBI queria ouvir dela diretamente, para conseguir estruturar um caso e levar para a Justiça. Então, ela ainda estava internada quando eu disse: "Eles vão vir te entrevistar. E você vai dizer a verdade. Tudo o que você me contou, que eles te batiam. Tudo".

Mas, mesmo já tendo saído da casa dos Bonetti há meses, a empregada brasileira ainda tinha medo de falar. Em várias conversas, ela dizia a Vic que não seria capaz de prestar depoimento.

[Renata]

Você vê como uma pessoa numa situação dessas passa por uma lavagem cerebral?

Então, ela tinha tanto medo. É o que acontece com pessoas que são ameaçadas. Eu não sei se a mesma coisa acontece no Brasil, com os empregados, sabe? Essas ameaças de "ah, se você se queixar, nós vamos fazer tal e tal coisa com você." E a pessoa fica tão assustada que não quer abrir a boca.

Por mais que tivesse conseguido ajudar a amiga a fugir da casa onde era abusada, não era garantido que elas iam conseguir mover uma ação na Justiça. Vic, então, passava boa parte das visitas à brasileira tentando persuadi-la a falar com a polícia federal americana.

[Renata]

Eu disse pra ela: "Você vai ter que contar".
E ela respondeu: "Senhora Vic, Dona Vic, mas eu… eu já estou bem. As pessoas daqui querem cuidar de mim. Eu não quero que ele vá para a cadeia".
E eu falei: "Se você não contar para eles, tudo o que eu tiver dito até aqui vai ter sido uma mentira. O motivo de você estar aqui. Tudo terá sido mentira. Eles não vão acreditar em mim. Eles querem acreditar no que você disser."

Em alguns momentos, a brasileira parecia querer prestar queixa. Depois, voltava atrás e ficava hesitante. E a situação do possível processo era esse pêndulo de vai-não-vai. Até que agentes do FBI avisaram que não tinham todo o tempo do mundo. Que precisariam de uma comprovação da suposta vítima para apresentar o caso à promotoria, e a investigação virar um processo jurídico.

[Renata]

Ela dizia: "Eu não sei… Eu não sei".
Então, eu disse a ela: "Amanhã eles vão vir aqui, ok? Amanhã de manhã. E é melhor você falar".

O FBI visitou a empregada no hospital sem que Vic estivesse presente. A vizinha ficou aflita, sem saber se ela contaria o que viveu nos últimos vinte anos. Ou se optaria pelo silêncio. Depois que os agentes saíram do hospital, Vic foi até lá. Ela teve uma surpresa.

[Renata]

Ela estava sorrindo de orelha a orelha e disse: "Dona Vic! Eu falei"

E eu respondi: "Você falou? Que ótimo! Ah, minha querida."

E ela disse: "Mas você não sabe o que aconteceu."
E eu perguntei: "O que?"
Ela falou: "Ontem, depois que você foi embora, chegou uma freira do grupo da Madre Teresa para me ver. Preta, como eu. Também lá do Brasil. E ela me disse: "Eu já estive na sua situação. Eu também fui empregada no Brasil. Mas meus patrões não me batiam. Meus patrões eram gente boa. E eles me incentivaram a virar freira. Você deve fazer o que a Dona Vic te aconselhou. Porque não cabe a você. Cabe a Deus fazer a justiça. Nem a você nem à dona Vic."

E isso fez ela mudar de ideia!

O primeiro depoimento da brasileira foi o suficiente para os agentes do FBI levarem a investigação adiante. Semanas depois, a empregada se sentaria de novo com o FBI e com o Ministério Público americano. E resumiria 20 anos da vida dela em um depoimento que alguém escreveria em inglês, com ajuda de um tradutor. Ela contou tudo. Da geladeira trancada. Dos murros e das sapatadas na cara. Dos puxões que arrancavam mechas de cabelo e deixavam o couro cabeludo minando sangue. Do tumor que crescia enquanto ela implorava por ajuda. No dia seguinte, ela recebeu o depoimento. Como não sabia ler, nem falar inglês, ela mostrou o documento para Vic e para a advogada que elas tinham contratado.

[Renata]

Daí, no dia seguinte ao depoimento, eles entregaram para ela um papel. E eu li e perguntei: "Foi isso mesmo que você falou?" E ela disse "Sim!"
"Você tem certeza que falou tudo isso mesmo?" E ela repetiu: "Sim!"
Então, vamos mandar esse documento para a juíza.

Era um passo importante. Porque, sem o depoimento da vítima, o caso dificilmente iria para frente. Afinal, os advogados contratados por Rene e Margarida Bonetti afirmavam que a história de exploração e de violências era uma grande mentira. Diziam que a empregada havia sido influenciada por amigas que queriam ajudá-la a dar um golpe na família.

[Renata]

Então, foi assim que (risada) Foi assim que aconteceu.
Foi muuuuito interessante, muito. Quer dizer, quando eu olho para trás hoje e vejo tudo o que aconteceu, às vezes consigo até dar risada. Mas naquele momento eu tremia de medo, porque eu não sabia o que ia acontecer.

O julgamento foi marcado para fevereiro de 2000. O caso iria para tribunal do júri, ou seja, 12 cidadãos escolhidos ao acaso iam decidir se aquela pessoa tinha sido escravizada e agredida ou não pelos Bonetti, depois de ouvir as testemunhas e o relatório da investigação do FBI.

Um rápido parêntese. No Brasil o tribunal do júri, ou júri popular, só é convocado para crimes bem específicos, como homicídio e infanticídio. Mas em Maryland, o Estado em que os Bonetti moravam, o tribunal do júri é bem mais comum. Até casos de roubo podem ter esse tipo de julgamento. E essa denúncia acabou em uma decisão pública.

No começo de 2000 o julgamento foi anunciado. Era a primeira vez que a informação dessa investigação sigilosa vinha a público. Foi nesse momento que o mundo soube de um casal rico brasileiro acusado de manter uma pessoa em situação análoga à escravidão no coração da maior democracia do mundo, em pleno século XXI. A notícia pipocou em todos os grandes veículos Brasileiros. A Folha, inclusive, mandou uma repórter para cobrir o julgamento pessoalmente.

Durante o julgamento, Rene Bonetti deu uma entrevista a Malu Gaspar, então repórter da Folha que foi cobrir o caso no tribunal de Greenbelt. O título dessa reportagem beirava um tratado de antropologia sobre a elite brasileira: "Ela era da família", diz Bonetti. A Magê Flores vai ler um trecho dessa entrevista.

[Magê Flores narra a entrevista]

Renê Bonetti afirma que ele e a mulher mantiveram a funcionária vivendo com eles nos Estados Unidos porque ela era considerada um membro da família, e que não podia ser considerada uma empregada por trabalhar menos do que qualquer pessoa na casa. "Mesmo que ela fosse ineficiente, numa família você não mede isso porque há afeto", afirmou ontem, enquanto esperava o resultado do julgamento.

Bonetti diz que a ex-funcionária mais atrapalhava do que ajudava na casa, e acusou-a de roubar alguns objetos da família, mas sustentou que a doméstica e sua mulher, Margarida, tinham um bom relacionamento. Como prova, mostrou um coelho de pelúcia que teria sido dado pela empregada a Margarida dois meses antes de ela deixar a casa do casal, no final de 98.

Essa era a tese da defesa. A de que o casal Bonetti, na verdade, fazia uma caridade para aquela mulher idosa, preta, brasileira e analfabeta. Que ela tinha o intelecto de uma criança de cinco anos, por mais que já marcasse 65 anos no passaporte.

Segundo um dos advogados da defesa, os Bonetti só tinham levado a empregada para os Estados Unidos porque no Brasil ela estava jurada de morte pela esposa de um homem com quem tinha um caso. John Maginnis, afirmou ainda que a doméstica era incapaz de cuidar de si própria. O advogado que defendeu Rene Bonetti diz que a família a manteve em casa por 20 anos por caridade.

Eles também tentaram desqualificar o depoimento da vítima. Disseram que, como a empregada era analfabeta e não falava inglês, ela não entendia o que era um julgamento e, portanto, não poderia depor. "Se ela não entende que está depondo sob juramento, o testemunho não tem valor", disse o advogado John Maginnis, segundo os registros do processo. De acordo com a reportagem da Folha, a juíza Deborah Chasanow ouviu a frase, sorriu olhando para a vítima e encerrou a discussão dizendo: "Estou convencida de que ela sabe que tem de falar a verdade. O depoimento é válido".

E sabe quem reforçou essa tese da defesa? Uma testemunha que foi do Brasil até Maryland só para depor, apesar da idade avançada. Maria de Lourdes, a mãe de Margarida, pegou um avião e foi ser testemunha de defesa, aos 85 anos de idade. Dizer que a mulher um dia foi empregada dela, mas que foi pros Estados Unidos com o casal Bonetti no fim da década de 1970 como uma amiga, não como uma funcionária. Maria de Lourdes também afirmou que o genro Renê era um homem respeitado na sociedade paulistana, de reputação ilibada. Disse que ele jamais cometeria um crime. Mas não falou uma palavra sobre onde estava a filha, foragida.

Note que a mãe morava com Margarida na casa abandonada há quase dois anos quando foi ser testemunha da defesa. E a visita de Maria de Lourdes teve um desfecho que fica entre o inusitado e o surreal. A gente vai falar dele mais para frente. Porque a gente precisa voltar para o processo que, do lado da acusação, tinha quatro testemunhas.

Além do depoimento da empregada, outro depoimento de peso foi o da Vic Schneider. A única vizinha que foi a público dizer, sob juramento, que sabia das coisas que aconteciam na casa dos Bonetti. Que a empregada narrou a violência e as condições precárias de trabalho muito antes de decidir sair de casa. Que ela passava fome no país mais rico do mundo.

Vic teve de depor duas vezes. Como era testemunha, não pôde ir às outras audiências, o marido ia no lugar dela. Mas dentro da casa deles subiu um muro de silêncio. Ele não contava o que ouvia nas audiências, porque a Justiça determinou que ela não poderia ser influenciada pelos outros depoimentos que seriam dados na corte.

Tá. Aqui pode parecer que o julgamento foi uma guerra de narrativas. Uma disputa de versões: a empregada e uma vizinha amiga contra os dois patrões e as famílias tradicionais deles no país de onde vieram. E poderia ter sido isso mesmo, não fosse por uma trilha de evidências que o FBI levantou. O passaporte da empregada, com um visto que tinha vencido em 1984 e que jamais tinha sido renovado. As correntes e cadeados trancando armários e a geladeira da casa. O quarto da funcionária, que na verdade era um canto de papelão do porão. E, acima de tudo, havia provas físicas do que realmente tinha acontecido no número 10.600 da Seneca Ridge Drive: a cicatriz de uma ferida na perna que levou meses para ser tratada e os tumores que cresceram por anos sem que a empregada fosse ao médico. O crime tinha deixado um rastro na casa, e na pessoa que foi escravizada dentro daquela casa, o que fez o julgamento ser relativamente curto.

O júri levou três dias para chegar a um consenso. E a tese da defesa não se sustentou. Em 10 de fevereiro de 2000, saiu o resultado, noticiado pela Folha:

[narração de Magê Flores]

O engenheiro eletrônico brasileiro Renê Bonetti foi considerado culpado pela corte de Greenbelt, nos arredores de Washington, de ter mantido sua empregada doméstica como escrava por 20 anos nos Estados Unidos. Bonetti também era acusado de ter "conspirado" com a mulher, Margarida, para manter a doméstica como imigrante ilegal no país, e de tê-la submetido a maus-tratos e colocado sua vida em risco.

Os 12 jurados consideraram, por unanimidade, que Bonetti é culpado de todas as acusações, mas a sentença só será expedida pela juíza em 15 de maio.

A pena, na verdade, só ia ser anunciada em agosto de 2000, seis meses depois da condenação. Nos Estados Unidos, é comum ter essa distância entre uma condenação e o cálculo da pena. É o tempo que um juiz ou uma juíza precisa para fazer uma equação. Estudar as leis, entender a pena que se aplica a cada crime, somar agravantes e subtrair atenuantes. É só então que passa a régua e sentencia uma pena à pessoa condenada.

Mas a juíza Deborah Chasanow tomou uma cautela extra nesse caso. Considerou que as chances de Renê fugir para o Brasil eram grandes demais, então ele deveria esperar a sentença preso. Quando saiu do tribunal, em fevereiro, ele já estava algemado.

A prisão preventiva era justificada por Renê manter "laços suficientemente próximos com outro país". Além de Margarida já ter fugido, tinha um outro indício de que Renê pudesse ter planos de deixar os Estados Unidos antes que a pena dele fosse determinada, e ele começasse a cumpri-la. A revista Veja publicou uma nota que revelava um plano de setores do governo brasileiro para resgatar um homem condenado por submeter uma pessoa à escravidão.

[narração de Magê Flores]

"O Ministério da Justiça estuda a revogação da perda da nacionalidade brasileira do engenheiro paulistano Renê Bonetti, 51, acusado de ter escravizado sua empregada nos EUA."

Segundo a Veja, o Ministério da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso cogitava alocar Renê em um cargo de chefia do Sistema de Vigilância da Amazônia, um projeto de defesa do espaço aéreo da região.

[narração de Magê Flores]

"Segundo o ministério, a revogação só depende da assinatura do ministro, o que seria possível porque ele (o Rene) não tinha antecedentes criminais".

Mas o ministério nunca assinou a revogação. Ou seja, Renê não voltou a ser brasileiro. E, como cidadão americano, teve de responder aos crimes que cometeu nos Estados Unidos. Mas fica o registro de que o Estado brasileiro cogitou tirar Renê das mãos da Justiça americana. A nota da Veja ainda dizia que Margarida poderia ser julgada em breve.

[narração de Magê Flores]

Margarida Bonetti foi para o Brasil no ano passado e está foragida da Justiça norte-americana. Há uma ordem de prisão contra ela, mas o Brasil não expatria seus cidadãos. Seu processo ainda não foi a julgamento, mas ela poderá ser julgada à revelia.

Nós vamos conversar em breve com advogados para entender como Margarida conseguiu fugir da Justiça dos dois países. Por enquanto, basta saber por que a fuga dela deu certo no primeiro momento.

Renê já tinha se naturalizado americano. Ou seja, tinha deixado de ser cidadão brasileiro. Já Margarida tinha preferido ficar com o passaporte Brasileiro e se mudar para os Estados Unidos com um visto de trabalho. Ou seja, ela ainda era cidadã brasileira. Ele, não mais. Não tinha para onde fugir, ou poderia ser deportado de volta para os Estados Unidos. Então, ficou. Foi julgado e condenado. Em 2000, Rene Bonetti foi para a cadeia. E a mulher continuou na casa abandonada.

Enquanto isso, instituições brasileiras faziam esforço para mostrar que estavam agindo. O Senado emitiu uma nota em que afirmava estar observando atentamente os desdobramentos do caso, e que tinha destacado uma comissão para analisar tudo . Foi uma nota só, depois parece que a atenção se dissipou. A Embaixada Brasileira em Washington só se manifestou publicamente um dia depois da condenação. Com essa nota aqui:

[narração de Magê Flores]

NOTA À IMPRENSA

A Embaixada do Brasil em Washington tem acompanhado com grande interesse o processo movido pelo Governo norte-americano contra o casal René e Margarida Bonetti, ele naturalizado norte-americano, ela brasileira. Eles são acusados de ter mantido a cidadã brasileira, sua empregada doméstica, trabalhando sem receber remuneração salarial e de forma ilegal neste país.

Ao lamentar profundamente essa situação envolvendo nacionais brasileiros residentes neste país, diante da sentença proferida na tarde de ontem, cumpre-me salientar que as condições de trabalho e o tratamento alegadamente dispensado à vítima constituem exceções à

realidade brasileira e contrariam as leis trabalhistas nacionais.

(...)

Washington, 11 de fevereiro de 2000

Embaixada do Brasil

Seis meses depois, em agosto, sairia a pena de Renê Bonetti.

[trecho da reportagem da TV Globo sobre a sentença]

Seis anos e cinco meses de prisão sem direito a liberdade condicional. Essa é a sentença da Justiça Americana para o brasileiro que escravizou a empregada doméstica nos EUA.
O engenheiro Rene Bonetti vai ter ainda de pagar uma indenização à vítima

Rene Bonetti respondeu ao processo sozinho, porque a mulher dele fugiu para o Brasil.
Acusado e condenado, Bonetti já cumpriu seis meses da pena

Seis anos e meio de reclusão. Era quase a pena máxima prevista pela lei americana. E ela adicionou nessa equação uma pena por perjúrio, ou seja, por ele ter mentido no tribunal. Segundo a juíza, ele mentiu quando disse que não sabia que a empregada estava ilegalmente nos EUA depois que o visto dela venceu, no meio da década de 1980. E também considerou perjúrio Renê afirmar que não sabia que Margarida batia e agredia a mulher, sendo que morava na mesma casa.

Depois que a sentença foi proferida, Paul Kemp, um segundo advogado que defendia Rene Bonetti, pediu clemência ao tribunal. Kemp afirmou que a culpa era toda de Margarida, que Renê não sabia dos abusos, nem que a empregada jamais havia recebido salário, porque ele trabalhava e essas são tarefas da mulher do lar. Ainda de acordo com a nova argumentação da defesa, o salário da empregada era depositado em uma conta corrente no Brasil. Uma conta corrente que nunca foi comprovada. O advogado terminou dizendo à juíza Chasanow. "A vida do meu cliente vai ser arruinada. Ele tem um PhD, e a vida dele vai ser arruinada". A clemência foi negada.

Mas não foi o fim. Os advogados de René Bonetti recorreram da decisão. E o caso subiu para um tribunal distrital. O pedido era de revisão de todas as condenações, e os argumentos eram parecidos: a mulher não era uma empregada da família, e sim uma amiga a quem a família ajudava; Renê não sabia que Margarida agredia a vítima e era um homem importante demais para ter a vida destruída. O tribunal distrital confirmou todas as condenações. Todas, não. A única mudança na sentença foi a favor da empregada. No novo julgamento, ela ganhou o direito ao pagamento retroativo de todos os salários que não recebeu durante 20 anos. A nova corte obrigou Renê a pagar tudo a que ela tinha direito. Ele teve de pagar 110 mil dólares de salários atrasados para a ex-empregada, o que na época não chegava a 200 mil reais. E Renê foi condenado de vez. Transferido para uma prisão federal. E lá ficou por anos.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Se Renê começou a cumprir pena em 2000, ele ficaria preso no máximo até 2007. Ou seja, já faz uma década e meia que ele está livre. Mas não há registro dele depois da condenação. Pelo menos, não na internet. Nada de notícias. Nenhum perfil em redes sociais. Nada.

O que não quer dizer que ele tenha sumido. Só é indício de que ele não tem vida online. Mas, em 2022, é impossível apagar todos os registros digitais de uma vida. Então, eu investigo pistas de onde ele possa estar.

Visito cartórios e encontro três imóveis que já estiveram registrados no nome dele. Um é a casa onde o crime aconteceu, e eu sei que ele não mora mais lá. Conversei com uma das novas moradoras, e ela não quis dar entrevista, mas garantiu que desconhecia o crime que aconteceu dentro daquela casa.

O segundo endereço de Renê também fica em Gaithersburg, mas em outra vizinhança. É uma casa menor. Está desocupada.

Então, eu vou para o terceiro possível endereço dele. Esse fica em outra cidade. Em outro Estado. Reston fica na Virgínia, a quase 40 quilômetros de Washington. Então, eu vou até a capital dos Estados Unidos. Lá, eu pego o metrô.

[sons de avisos sonoros em inglês na estação de metrô]

E ando de metrô.

[sons do metrô em movimento]

Ando um pouco mais de metrô.

[sons de metrô e de avisos sonoros em inglês]

E um pouco mais ainda.

[sons do metrô em movimento]

Eu fico no trem até a última estação da linha prateada do metrô de Washington. De lá, eu pego um carro de aplicativo, e rodo meia hora.

[som de seta de carro]

E aí eu chego no último endereço de Renê Bonetti. É uma outra vizinhança que parece ter sido feita em um laboratório de clonagem. São prédios e mais prédios de madeira escura com dois andares. Prédios idênticos serpenteando para cima e para baixo em quarteirões cheios de árvores, que têm como vista uma pista de golfe.

Eu tenho o endereço, e o GPS do celular diz que eu cheguei ao meu destino. Mas eu não consigo distinguir o prédio certo.

[som de passos]

Depois de meia hora, tenho de pedir ajuda para um carteiro que está com o caminhão de entregas estacionado.

[Chico] 1780 Jonathan Way, I guess this is Jonathan…

[Carteiro] Yeah, no, Jonathan is right along here that would not be Jonathan Way, so it's probably… somewhere snaking down through there.

[Chico] Ok!

[Carteiro] I just don't know where.

[Chico] I'll give it a try.

Até o carteiro diz que não conhece o endereço exato, mas me aponta uma direção. Daí, na ponta de um dos prédios mais distantes desse conjunto habitacional de luxo, eu encontro o prédio. Eu subo as escadas.

[sons de passos subindo a escada]

Um site imobiliário estima que o apartamento de dois quartos custa quase 290 mil dólares. Ou um milhão e meio de reais. Mas também registra que Renê pagou menos, 230 mil dólares, quando comprou o imóvel em 2013. Eu respiro fundo. E bato na porta.

[Chico bate na porta]

[Chico] Hello?

[Mulher na casa] One second.


Uma voz feminina responde. Pede só um segundinho para abrir a porta.

[…]

Eu espero, com o gravador ligado na mão e o meu coração dando coices no meu peito.

Uma mulher jovem e bonita, com os cabelos castanhos escorridos nos ombros, abre a porta. Pela porta entreaberta, eu posso ver um bebê engatinhando pelo carpete branco da sala.

[som de porta abrindo e música saindo de dentro da casa]

[Mulher] Hi! [Oi!]

[Chico] I'm looking for Mr. Renê Bonetti…? [Eu estou atrás do senhor Renê Bonetti]

[Mulher] Not his… no. [Aqui não é… Não]

[Chico] Not his address? [Esse não é o endereço dele?]

[Mulher] No. [Não]

[Chico] Ohh, they just listed at his address. It's been 20 years. This is not his place anymore, no? [É que esse endereço estava registrado no nome dele, não é mais o endereço dele, então?]

[Mulher] No, no (risada) [Não, não]

Ela diz de imediato: não, Rene Bonetti não mora mais aqui.

[som de música no fundo]

[Chico] Ohhhh.

[Mulher] Someone else owns this so... Yeah, sorry. [Essa casa é de outra pessoa, desculpe]

[Chico] Ohhh, too bad it wasn't the last address I had listed as his. [Aaah que pena, era o último endereço registrado como sendo dele]

[Mulher] I'm sure with a Google search you could find though. [Mas eu tenho certeza que você pode encontrá-lo no Google]

[Chico] Ok, thank you. [Obrigado]

[Mulher] Sorry. [Desculpe]

[Chico] Have a good one. Sorry to disturb you. [Tenha um bom dia, desculpe o incômodo]

[Mulher] No worries! [Não se preocupe!]

Eu peço desculpas pelo incômodo. E ela sugere que eu tente buscar o homem que procuro no Google. Porque no Google eu certamente vou encontrar. Eu rio por dentro da ironia, me desculpo mais uma vez, viro as costas e desço as escadas.

[sons de passos descendo a escada]

Quando eu já estou no estacionamento dos prédios baixos, um homem coloca a cabeça para fora da janela. É o vizinho de baixo do apartamento que já foi de René. Ele faz sinal que eu me aproxime.

Então, ele diz. "Você sabe onde ele trabalha, não sabe?". Eu acho que o homem ouviu minha conversa com a vizinha de cima. Respondo que não, não sei onde Bonetti trabalha. O homem, que não permite que eu grave nossa conversa, então me explica onde anda Renê. "Ele é um dos diretores da Northrop. É o emprego dele." Eu abro o celular e descubro que a North-rop Grumman Innovation Systems é uma empresa de tecnologia a 20 quilômetros dali, em uma cidade vizinha.

Eu peço um carro de aplicativo e vou direto para a sede da empresa, que no mapa parece ser maior do que a cidade de Sterling, onde ela fica.

O carro me deixa em um complexo de prédios baixos e colados à rodovia. Há uma cancela fechando cada uma das ruas particulares. Menos um. Um prédio maior, que fica no meio dos outros. E que tem cara de ser a portaria. Eu desço e entro no que parece ser a recepção

[Recepcionista] Hi!

[Chico] Hello. I'm looking for Mr Renê Bonetti.

[Recepcionista] Are you visiting?

[Chico] Yeah, he is not expecting me.

[Recepcionista] Is NOT expecting you?

[Chico] Is not expecting. We have to be honest here.

É o trecho que abre esse episódio. A recepcionista pergunta se Renê Bonetti está esperando a visita. E eu, que não posso mentir, digo que não. Que ele não está me esperando. Que minha visita é uma surpresa.

[Recepcionista] Ok. So if he's not expecting you, why don't you reach out to him?

A mulher pergunta: se ele não está te esperando, por que você não entra em contato antes? Eu explico que é um assunto pessoal.

[Recepcionista] How come are you here for?

[Chico] Pardon me?

[Recepcionista] How come are you here for?

[Chico] Oh no, it's a personal affair, so it is not related to the company.

Digo que sou brasileiro. E que o procuro para falar da família dele, nada a ver com foguetes e satélites.

A mulher começa a digitar enquanto olha para a tela do computador.

[Recepcionista] I don't find it.

[Chico] No?

[Recepcionista] Can you say again? R-E

[Chico] N-E. Rene

Ela diz que não encontra no sistema ninguém com o nome René Bonetti. Eu soletro de novo.

[Recepcionista] B-O

[Chico] N-E. Double T-I. Bonetti.

Dessa vez, ela parece achar um funcionário com esse nome. Liga direto para um ramal, e deixa o telefone no viva-voz.

[mensagem automática da caixa postal]

Sorry, Rene Bonetti is not available, you cannot record a message for Rene Bonetti. This mailbox is full.

A ligação toca até cair na caixa postal. Pelo menos, a visita serviu para confirmar: Rene Bonetti trabalha lá mesmo.

[Recepcionista] I can’t leave him a message. And I can’t give you his number.

Ela diz que não pode gravar um recado para Rene Bonetti, porque a caixa postal está lotada, e que não pode me passar o número de telefone dele. Ela me mostra na tela o nome dele, ao lado do cargo Payload Director.

Então, eu sou convidado a sair da empresa. Um segurança vem me acompanhar até o estacionamento, que é cheio de BMWs, Volvos e Mercedes. Durante esse tempo todo, o gravador estava ligado na minha mão, escondido atrás do celular. Se eu fosse flagrado gravando ali, com certeza seria expulso, mas poderia acontecer coisa pior. Antes de sair do prédio, eu tinha visto na parede uma placa avisando que a empresa é uma área de segurança nacional, porque presta serviços para a Nasa.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Quando eu volto para o hotel, eu vou pesquisar o que é um Payload Director. Descubro que o título em português é diretor de carga útil. O cargo, no jargão, é para o engenheiro que cuida das informações mais essenciais que são transmitidas a um foguete ou satélite. Tem um site na internet que se chama Glassdoor, onde as pessoas contam anonimamente o quanto ganham, para que os colegas e as colegas possam ter uma noção de se tal empresa paga bem ou paga mal. E eu encontro o cargo de diretor de carga útil na mesma empresa onde Bonetti trabalha. Segundo esse site, o salário de alguém com um cargo como o dele é de 220 mil dólares por ano. Ou seja, mais de um milhão de reais. Mais bônus.

Eu consigo o email de Rene Bonetti. Mando uma mensagem para ele me apresentando e avisando que estou fazendo uma série para a Folha de S.Paulo, sobre a ex-mulher dele e sobre o crime pelo qual ele foi condenado. Convido para que ele dê a versão dele de tudo o que aconteceu, para que essa história contemple todos os lados. Mas ele não responde. Mando também uma mensagem para os advogados que o defenderam na época. Tampouco recebo resposta.

Então, é isso o que sabemos sobre Rene Bonetti. Ele foi condenado, cumpriu pena e hoje em dia tem um cargo executivo em uma empresa respeitada nos Estados Unidos. Ganha muito dinheiro. E eu entendo que esse desfecho possa causar insatisfação, ou até uma pontada de revolta, em quem estiver ouvindo.

Mas é preciso frisar que ele pagou pelo crime. A Justiça fez o que a Justiça se propõe a fazer. O Departamento de Justiça americano afirma em um documento que um cidadão é preso com quatro intuitos.

1 - Retribuição: ou seja, punir a pessoa por fazer algo errado

2 - Reabilitação: corrigir um comportamento problemático;

3 - Segurança: manter ameaças fora da comunidade

E 4 - dissuasão: garantir que o criminoso e outras pessoas tenham medo de infringir a lei no futuro.

Para a Justiça americana, Renê Bonetti cumpriu todos esses requisitos.

Mas isso não me impede de ficar com perguntas na cabeça.

Será que o desfecho teria sido igual para uma pessoa que não tivesse um PHD? Um criminoso que não fosse branco, como é Renê? Um ex-presidiário que não fizesse parte da elite cultural e financeira de um país?

São perguntas para as quais eu não tenho resposta

VINHETA DE TRANSIÇÃO

De volta à casa de Vic Schneider, ela conta como foi o dia em que a sentença foi anunciada. Ela saiu para jantar com a família. Todos comemoraram com um drink, menos ela, que não bebe. Quando chegou em casa, tinha um recado na secretária eletrônica. Era da empregada brasileira que ela ajudou a libertar, depois de anos de abuso.

[Renata]

Eu não sei onde eu botei, mas eu tinha o recado gravado numa dessas fitas K7 de 60 minutos. Mas eu não sei onde coloquei, não consigo pensar agora. Mas ela me agradeceu e disse alguma coisa do tipo: "Dona Vic, a senhora me resgatooou". E foi tudo tão bonito.

Vic fica com os olhos cheios d’água quando lembra do recado. E então eu pergunto se ela sente que a justiça foi feita nesse caso, com Renê cumprindo menos de sete anos de pena e com Margarida fugida, vivendo na mansão da família, num dos bairros mais ricos do Brasil. Os olhos de Vic secam e ela esboça um sorriso

[Sons de Vic folheando páginas]

Ela pega uma folha de papel do meio do calhamaço de documentos que tinha preparado para o nosso encontro. E ela me estende o papel, que é o xerox de uma notícia do jornal Washington Post.

[Renata]

O congresso agiu em relação ao abuso de trabalhadores estrangeiros. E foi por causa desse caso. Eles até chamaram ela até o Congresso, você sabia?

Ela, no caso, é a empregada brasileira que foi escravizada nos Estados Unidos por quase 20 anos. Eu não sabia. E eu leio a notícia.

[narração de Magê Flores]

Um grupo de congressistas dos dois maiores partidos americanos, o Republicano e o Democrata, se juntou para mudar a legislação dos Estados Unidos em relação ao trabalho escravo contemporâneo. A ação ocorre depois da constatação de que Washington tinha uma questão crescente: a exploração de serventes trazidos aos Estados Unidos por organizações como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.

O grupo bipartidário fez até uma conferência para discutir o projeto de lei, e convidou pessoas da sociedade civil para falar. A plateia estava repleta de mulheres que tinham sido forçadas a trabalhar em esquemas análogos à escravidão. Uma das principais mudanças da proposta de lei é que ela passaria a garantir que uma trabalhadora que denunciasse os patrões por exploração não fosse deportada dos Estados Unidos enquanto a ação corresse. O que acontecia até então é que as pessoas escravizadas fugiam de casa e, quando chegavam até a polícia, já estavam com visto vencido e em vez de ouvir as denúncias, muitas vezes o Estado americano as colocava em um avião e mandava de volta.

Uma das pessoas que falou na audiência foi Dora Mortey, uma professora de 28 anos de Gana. Ela tinha ido aos Estados Unidos para trabalhar na casa de um funcionário do Banco Mundial chamado Amarquaye Armar. E, assim como aconteceu na casa dos Bonetti, ela trabalhava até 16 horas por dia sem ganhar um centavo. Ela disse que "era constantemente humilhada por essa família". E que não tinha deixado "um trabalho de professora em Gana para vir aos Estados Unidos ser tratada como um cachorro, ou como uma escrava".

A equatoriana Elizabeth Iguago também subiu ao púlpito para contar a história de como foi levada aos Estados Unidos para trabalhar na casa de um funcionário do FMI. Mas, meses depois de chegar lá, foi vendida para um casal americano. Sim, o verbo é esse. Vendida.

E sabe qual foi o caso que mobilizou os congressistas a agirem? O caso de uma família brasileira de sobrenome Bonetti. A empregada brasileira assistiu à sessão da platéia. Não falou nada. E recusou qualquer tipo de reconhecimento. Mas estava lá.

A lei foi aprovada em 2001. Vic conta essa história enquanto folheia páginas e mais páginas de documentos legais.

[Renata]

Agora, quando um funcionário de uma organização internacional traz uma funcionária para os Estados Unidos, a empregada tem direito a plano de saúde e a férias, o que elas não tinham até então. Elas têm o dever de receber pelo trabalho delas. O que não tinham até então. Então, foi isso o que saiu dessa história toda.

É um avanço na direção dos direitos humanos. Mas tem outro desfecho que me aflige desde o começo. Um desfecho mais pessoal. Onde está a terceira pessoa envolvida no processo? A pessoa que estava do outro lado da história. No banco da vítima. Desde que jornais e revistas noticiaram o caso, nunca mais se publicou uma linha sobre a empregada que foi escravizada e agredida pelos Bonetti. É a pergunta que eu deixo para o fim da entrevista, depois que a gente já cobriu todo o périplo.

[...]

Depois de duas horas conversando, Vic e eu fazemos um intervalo. Ela me serve um copo d’água.

[som de água caindo no copo]

E eu tomo coragem para fazer a pergunta mais importante. A dúvida que me levou aos Estados Unidos. Eu pergunto se ela sabe onde está a mulher que costumava ser vizinha dela. A empregada doméstica que passou 20 anos a metros de onde estamos, sendo explorada e sofrendo violências.

[Chico] Do we know where she is nowadays?

[Vic] Oh yeah, uhum, yeah, the US government help her. She's now ok.

[Chico] Uau…

[Vic] She's ok, she's legal. She even receives money from the government. Uhum. Yeah.

Vic diz que sabe. Que o governo Americano a ajudou. Que ela ganhou um passaporte humanitário e que está bem. Hoje em dia, ela está legalmente em território americano. E ganha uma pensão do governo.

[Renata]

Ela está viva e está bem. Nem Covid ela pegou!

Eu fico surpreso por ela estar viva. Afinal, se eu fiz as contas certas, hoje essa pessoa está com oitenta e cinco anos. Porque ela tinha 40 anos quando se mudou para os Estados Unidos e 60 e poucos quando começou o processo.

[Renata]

Ela está muito bem e tem muita fé. E tem um coração cheio de fé. Um coração inacreditável. Inacreditável!

Além de fé, eu pergunto se ela tem quem a auxilie a viver num país cuja língua ela não domina. E Vic garante que sim.

[Renata]

Não! Ela tem gente ao redor dela. Ela é muito amigável! Ela tem muitos amigos.

Tem amigos e tem uma casa. Uma casa dela, não um lugar em que ela precisa ficar de favor, se escondendo.

[Renata]

Ela está bem. Ela tem apartamento próprio, subsidiado pelo governo, sabe?

Alguns desses amigos, inclusive, se uniram para criar uma previdência privada para a brasileira. O dinheiro que ela ganhou de indenização está investido, e ela tem acesso a uma parcela dele todos os meses. Assim, vai conseguir viver por décadas.

[Renata]

Tem uma pessoa ajudando ela com o dinheiro, ajudando ela a manter o dinheiro controlado e guardado. Ela recebe uma quantia por mês. Eu não sei exatamente como isso é feito. Só sei que ela recebe o dinheiro dela todo mês. Foi o que ela me disse

As duas amigas mantêm contato, por mais que não se vejam pessoalmente.

[Renata]

E ela me liga todo Natal, toda Páscoa… essas coisas assim

Aliviado, eu faço outra pergunta que só a mulher que viveu esse inferno vai saber responder. Margarida disse para pessoas no Brasil que mantinha contato com a mulher que um dia foi a empregada dela. Chegou a dizer que as duas são amigas. Eu questiono Vic se isso é possível.

[Renata]

Amigas???? Ah, faça-me um favor! (risada)

Eu insisto. Será que, depois de anos de uma relação criminosa e doentia, não é possível que as duas mantenham contato?

[Vic] No! No. No, no, no. (risada)

Vic não ri porque acha a possibilidade engraçada. Ri porque acha estapafúrdia. Um absurdo. E diz que outra pessoa também daria risada, se ouvisse que a mulher da casa abandonada anda dizendo que é amiga da pessoa que maltratou por tanto tempo.

[Renata]

Sabe quem daria muita risada disso?

Eu pergunto: quem? E ela diz o nome da amiga brasileira. Vamos ligar para ela! E pergunta se eu quero falar. Eu digo que sim, que seria um prazer.

Ela vai até a cozinha e some por alguns minutos. Volta com um telefone sem fio do tamanho de um tijolo branco já no ouvido, e passa para mim com alguém na linha.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

[Chico] Ahm… dona … [bipado] eu tô fazendo uma série... sobre a Margarida.

[Chico] Eu encontrei a Margarida em São Paulo.

A mulher fica em silêncio enquanto eu explico que sei onde está Margarida, a mulher que lhe agrediu por anos. E depois de alguns segundos, ela responde que não. Que jamais voltou a falar com Margarida.

[Chico] Vocês ainda se falam? A senhora ainda fala com a margarida?

[Vítima] Não! Eu não falo com ela desde que aconteceu esse… esse triste problema.

É mentira. As duas não são amigas. São o contrário de amigas.

[Vítima] Claro, ela não é boba, não é tonta né.

Ela diz que a criminosa, que por décadas ela foi obrigada a chamar de patroa, não é boba, nem tonta.

Dias depois, eu vou voltar a falar por telefone com essa ex-empregada brasileira. Perguntar se ela concorda que eu conte essa história de novo, porque também é a história da vida dela. Ela diz que não tem problema. Que eu também posso usar a gravação da nossa conversa por telefone. Só não quer ser achada. Nunca mais.

Enquanto a gente ainda estava no telefone, na casa da Vic, ela puxou um assunto.

[Vítima] Vamo… eu vou te falar a pura verdade. Olha…

Aqui ficou um pouco baixo, mas ela diz que já faz muito tempo. Que foi o grosso da vida dela. Mas que essa vida ficou para trás. Hoje, ela não olha para o passado.

[Vítima] Eu não quero recordar nada.

Aqui, ela disse: "Eu não quero recordar nada". Então, ela me manda um abraço.

[Chico] Um grande abraço.

[Vítima] Outro!

E desliga.

FIM DO EPISÓDIO

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