Descrição de chapéu A mulher da casa abandonada

Podcast conta o que os vizinhos sabem sobre a mulher da casa abandonada

Segundo episódio da série mostra como Margarida Bonetti é vista na vizinhança de um bairro rico de São Paulo

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São Paulo

No segundo episódio de A Mulher da Casa Abandonada, podcast da Folha que investiga o passado de crimes por trás de uma mansão degradada em São Paulo, vizinhos compartilham as histórias que colecionam sobre Mari, cujo nome verdadeiro é Margarida Bonetti.

Conforme revelado no primeiro episódio, ela se mudou para os Estados Unidos no fim da década de 1970 com o marido e voltou 20 anos depois, fugindo da acusação de ter mantido uma funcionária em condições análogas à escravidão por todo esse período.

Margarida Bonetti é uma herdeira que cresceu na mesma mansão onde mora atualmente no bairro Higienópolis, um dos mais ricos de São Paulo. A história da mulher que esconde o rosto com pomada branca era o segredo mais mal-guardado da vizinhança, como relatam moradores e funcionários de prédios vizinhos.

O segundo episódio do podcast já está disponível de graça nas principais plataformas de áudio, como Spotify, Apple Podcasts e Deezer. A transcrição do roteiro está disponível no fim deste texto. Todas as quartas-feiras, às 7h , um novo episódio vai ao ar, até 20 de julho.

A capa do podcast tem o desenho de um casarão, em branco e preto. A imagem escorre até o nome do programa: A Mulher da Casa Abandonada
O podcast A Mulher da Casa Abandonada investiga a vida de uma brasileira que foi procurada pelo FBI - Editoria de Arte

A Mulher da Casa Abandonada é apresentado e escrito por Chico Felitti, autor do livro "Ricardo & Vânia", que narra a história de vida de um artista de rua conhecido como Fofão da Augusta, e que foi finalista do Prêmio Jabuti de 2020. Felitti também criou e apresenta "Além do Meme", série documental em áudio exclusiva do Spotify —eleita o Podcast do Ano pelo Prêmio Splash UOL em 2020.

A série tem participação da atriz e dramaturga Renata Carvalho, que interpreta em português as entrevistas feitas em inglês, e de Magê Flores, que apresenta o Café da Manhã, podcast diário da Folha, e também coordena a produção de A Mulher da Casa Abandonada. A edição de som do podcast é de Luan Alencar, e a produção é de Beatriz Trevisan e Otávio Bonfá.

Transcrição do segundo episódio

A Casa

Era o segredo mais mal guardado da história de Higienópolis. Depois que eu encontrei a foto da mulher da casa abandonada na reportagem da revista americana Newsweek, meu reflexo foi procurar por mais imagens de Margarida Bonetti. Para ter certeza que minha mente não estava me pregando uma peça. Encontrei um monte de reportagens que saíram no Brasil, inclusive na Folha de S.Paulo, no começo dos anos 2000. Essas matérias traziam o nome completo de Margarida: Margarida Maria Vicente de Azevedo Bonetti. Mas eram só blocos de texto. Nenhuma das reportagens tinha fotos da Margarida. Ou Mari, como ela se apresenta em 2022.

Então, eu fui para o próximo arquivo disponível. Um arquivo que não é de papel, mas de memórias. Memórias guardadas na mente de quem viveu a história da casa abandonada. Eu saí pela rua da casa perguntando para os vizinhos quem conhecia a história da mulher que se esconde lá. E, para a minha surpresa, todo mundo sabia quem ela era. E o que ela tinha feito.

[Depoimento 1] E ela fala sempre, ela sempre fala em polícia, em polícia, chamar a polícia pra todo mundo ela chama a polícia e sendo ela acusada de um crime desse, racismo, de escravidão, né? Na verdade, escravidão.

[Depoimento 2] E, é, escravizava a a a funcionária, né?

[Depoimento 3] Aqui o pessoal já sabe da história dela, ela tá suja com o prédio.

[Depoimento 4] Não, todo mundo sabe

Todo mundo sabe que a mulher da casa abandonada é uma criminosa foragida. Menos eu. E o resto do Brasil inteiro. E o FBI.

VINHETA DA ABERTURA

Eu sou Chico Felitti e esse é A Mulher da Casa Abandonada, um podcast da Folha que investiga a figura misteriosa que mora numa mansão em pandarecos em um dos bairros mais ricos de São Paulo. Uma mulher que se esconde atrás de uma camada de pomada branca, mas que toda a vizinhança sabe quem é. Margarida Bonetti, a brasileira rica que fugiu de um julgamento no qual era acusada de escravizar, torturar e negar auxílio médico a uma empregada doméstica que ela levou para os Estados Unidos.

Segundo episódio: A Casa.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Dias depois de descobrir a história e o nome verdadeiro de Margarida, eu me encontrei com uma pessoa que já sabia de tudo isso há anos. Mari Muradas é uma mulher jovem e sorridente, que me recebe no playground de um prédio a um quarteirão da casa abandonada. É a sogra dela que mora lá. E ela está lá numa manhã de sábado porque tem um parquinho pro filho dela brincar com os vizinhos. Mari Muradas mora a passos dali. A casa dela dá literalmente para a casa de Mari, que na verdade se chama Margarida. Ela vê a casa abandonada todo dia, o dia todo.

[Chico] Vamos trocar ideia?
[Mari Muradas] Vamos!

O jeito que eu conheci a Mari Muradas foi peculiar. Dias depois de ter visto a foto da Mulher da Casa Abandonada em uma revista americana, eu encontrei um amigo na padaria. Faz quase 20 anos que eu conheço o Edu Zanelatto, então eu achei que poderia confiar a ele esse segredo que estava quicando no meu peito. Eu sussurrei a história, pensando que era uma informação bombástica. E ele foi a primeira pessoa a me abrir os olhos. Ou os ouvidos, no caso. Ele me respondeu.

[Edu Zenalatto] Que engraçado você me contar essa história, Chico. Eu tenho uma amiga, a Mari, que mora num prédio que fica meio nos fundos da casa dela. E ela me contou uma história muito doida dessa mulher, que tem uma história bem complicada de ter mantido uma pessoa em condição de trabalho análogo à escravidão. E tem essa coisa quando você passa na frente da casa, aquela coisa meio abandonada num lugar super chique de Higienópolis. Mas eu sempre sinto uma energia bem estranha.

Quem contou foi uma amiga dele, que por coincidência era vizinha da casa abandonada. Essa amiga é a Mari Muradas, com quem ele e a esposa fizeram um curso de como se preparar para o parto. E que depois virou uma amiga do casal. E ele nos apresentou. Me levou um dia para o parquinho onde a filha dele brinca com o filho da Mari.

[Mari Muradas] Olha, a gente mora na Vilaboim.

A Vilaboim é a praça onde a Mari, ou Margarida, estava na antevéspera do Natal, tentando impedir que a prefeitura cortasse as árvores. E a rua que a Mari Muradas cita, e nós bipamos para não revelar o endereço exato da Casa, é uma ruela do bairro. Tem só um quarteirão e meio. É um fiapo de asfalto que liga a faculdade Faap até a praça Vilaboim, em um formato de L. É uma rua que tem casinhas lindas. Duas delas, eu descobri depois, são da família da mulher da casa abandonada.

[Mari Muradas] E assim que a gente se mudou, eu nunca tinha reparado muito naquela casa. Daí comecei a passar com os cachorros, comecei a andar e falava nossa, que absurdo né o estado dessa casa, adoro arquitetura fiquei lá né fuçando entre um um galho caído e outro vi a plaquinha do médico.

A placa ainda está lá. Cravada no muro da casa. É como se fosse o pedigree do imóvel. O ferro está esverdeado, mas ainda dá para o nome do casarão. Mari leu a placa e foi ver o que conseguia encontrar na internet com aquelas informações.

[Mari Muradas] E daí eu fiquei vendo falei nossa, cheguei a jogar no Google o nome do médico. Peguei e falei, nossa, tá completamente abandonado aqui, que triste, né? Isso nas primeiras semanas.

Agora, vamos falar como a trajetória da Mari Muradas é parecida com a minha. E eu comento isso com ela. Como nós dois tivemos curiosidades gêmeas, e chegamos à mesma resposta.

[Chico] Eu estou inconformado porque o que você está contando é literalmente a minha história, transfere pra tipo quatro anos no futuro.
[Mari Muradas] Como que ela está morando naquele estado?
[Chico] E foi exatamente a mesma reação. Primeira coisa. Curiosidade. Depois nossa que imóvel maluco, imagina quanto vale porque será que está abandonado deve ter uma história por trás. Aí de repente cruza com a pessoa, daí fala, meu Deus!
[Mari Muradas] como assim?!
[Chico] Essa pessoa está abandonada num estado lamentável, a história dela deve ser tristíssima, preconceito e...
[Mari Muradas] É

Nova no bairro, ela viu uma mansão caindo aos pedaços, e a mente dela tratou de preencher as lacunas. Criou histórias para tapar os buracos no telhado, os rombos no portão causados pela ferrugem e a falta dos vidros nas janelas.

[Mari Muradas] Acho que na primeiro, terceira semana que a gente tava morando lá, um dia eu passo e eu vi a luz acesa da casa e daí eu comecei: primeiro, né, adoro uma história de espírito, adoro, comecei nossa estou vendo coisa, imagina que tem aí ó, imagina que tem alguém que está morando na sua casa nesse estado, não é possível, e a janela entreaberta, uma luzinha... Daí passou uns dias, teve um dia que estava chovendo muito, mas aqueles assim temporais, e eu passo de guarda-chuva e vejo uma senhora jogando um balde pra fora, dessa janela, do andar de cima que era a que eu tinha visto a luz.

Uma casa abandonada com uma luz elétrica? Eu também fiquei perplexo quando vi luzes ali dentro. E a gente vai ver em breve como Mari paga a conta de luz de uma casa em pandarecos –que é o que faz ela ter energia, mesmo que não tenha esgoto. Mas, no primeiro momento, Mari Muradas pensou que a luz viesse do sobrenatural. Ela acreditou que estava vendo assombrações. E foi correndo contar para o marido dela, o Fábio.

[Mari Muradas] E daí eu entrei em casa, falei pro Fábio, meu Deus! Não é possível que tem alguém, não, não é espírito, então eu vi de novo, ou se vi o espírito não ia estar preocupado com a poça, né? Tem alguém morando lá naquele estado e que deve estar caindo muito aos pedaços a casa, e fiquei muito sensibilizada na época assim por ela. Falei nossa, preciso ajudar essa velhinha. Como que pode? Ela está ali morando sozinha!

De novo, a minha lógica e a da Mari Muradas quase se encontram. Eu pensava que Margarida era uma mulher que sofria com misoginia e preconceito por ser excêntrica. Ela pensava que era uma velhinha abandonada pela família, e sentiu uma pontada. Uma vontade aguda de ajudar essa pessoa.

[Mari Muradas] E o Fábio falava assim meu você não vai bater lá agora. São quase onze da noite. Um frio do caramba. Uma chuva insana. Pra falar pra mulher que você quer ajudá-la, né? E eu falei cara, ela está lá sozinha ela é muito velhinha. E ele tipo ah se bobear você viu o espírito, tipo desencana.

Ela quase bateu na porta da casa abandonada. Mas ainda tinha dúvidas. Dúvidas de se a mulher que tinha visto existia. E, se existisse, se ela se abriria para receber a ajuda de uma desconhecida que acabou de se mudar para o quarteirão. Então, achou melhor se informar antes com os vizinhos.

[Mari Muradas] E daí eu comecei a perguntar pra todo mundo do bairro, pro zelador do Louveira, pra nossa ex-proprietária que também morava no Louveira na época. Fiquei perguntando um pouco e eles, ah é uma pessoa muito estranha que mora lá, é a filha do cara da casa. E aí passou, foi muito próximo desse episódio da chuva, porque eu ainda estava com muita pena dela, um dia de manhã que eu fui passear com os cachorros e estava a polícia, o corpo de bombeiros e um oficial de justiça na porta, tipo a rua estava praticamente trancada e um auê com eles tentando entrar na casa, tentando bater na porta, entrar na casa, e ela obviamente não abrindo e não saindo e dizendo que não tinha a chave, que ela não tinha como abrir, então tava ali um vuco-vuco.

O Louveira é o edifício Louveira, um marco arquitetônico de São Paulo. O prédio tem duas torres, uma olhando para a outra, e no meio fica um jardim enorme e aberto para a rua. Em uma cidade feita de muros e de grades, o Louveira é um respiro de liberdade. Uma exceção de cidade aberta. E o Louveira fica perto da casa abandonada. E agora voltamos para o dia em que Mari viu uma multidão tentando entrar na casa, e sendo barrada.

[Mari Muradas] E aí eu atravessei a rua, fiquei junto com o segurança do outro prédio, tipo, que que tá acontecendo, né? Ela está machucada? Aconteceu alguma coisa grave? E eu falei, gente, que dó dessa mulher aí, olha a situação quem que ela tá morando, né? Por que que estava oficial de justiça, polícia, uma um escarcéu. E essa mulher passou com o cachorro e falou dó! Dó? Dó nenhuma! Isso daí é gente muito ruim! Você não sabe o que que ela fez no passado! Ela está aqui foragida porque eles escravizaram uma empregada nos Estados Unidos! Você não tem ideia o quanto essa mulher é ruim!

O choque de Mari teve uma voltagem dupla. Primeiro: a mulher existia mesmo, não era uma alucinação da mente dela. Segundo: não só existia como tinha cometido um crime inenarrável. Um crime no país dela. Porque a Mari Muradas, por mais que fale esse português articulado e fluido, é cidadã americana. Os pais dela são americanos. Ela passou uma fatia da vida no mesmo país onde Margarida é procurada pela Justiça.

E, com uma frase dita por uma vizinha, toda a compaixão se transformou em raiva.

[Mari Muradas] E eu fiquei assim tipo O QUÊ? Eu lembro de chegar e falar pro Fábio: eu estou há semanas preocupada como que eu ajudo essa mulher e agora eu quero ir lá e tacar fogo na casa com ela dentro, assim, não é possível.

Mari Muradas não colocou fogo na casa abandonada. Em vez disso, usou a energia que corria no corpo dela para tentar entender mais a história que a vizinha tinha resumido em uma frase.

[Mari Muradas] E aí fiquei mais em choque com a história, porque ela só me contou isso e saiu andando com o cachorro. E eu tipo meu, como é que eu volto atrás dela e falo: minha filha, me conta mais. E aí na época ela falou ai, que você é muito jovenzinha, você não deve lembrar, mas saiu em todos os jornais, foi notícia no Fantástico. Ela, eles escravizaram uma empregada em Washington. E eu fiquei aquilo tipo, nossa, sou muito jovenzinha, né? Pensei lá, será que isso foi na década de setenta? E essa mulher está sei lá até hoje foragida aqui, fiquei na minha cabeça tipo não lembro, você não vai lembrar da história, mas cheguei em casa e a primeira coisa que eu fiz foi abrir o computador, jogar no Google "brasileiros que escravizam empregada doméstica nos Estados Unidos tralala" e aí começou a vir as notícias e é muito bizarro né? Porque não era que eu eu era muito jovenzinha e não lembrava, eu não estava no Brasil quando essa notícia saiu...

Por um momento, pareceu para Mari que o crime de Margarida era história antiga. Mas daí ela fez as contas: se o crime aconteceu em 2000, fazia menos de 20 anos que ela tinha sido acusada de um crime que o senso comum tende a considerar extinto há séculos.

[Mari Muradas] E eu achei assim ela muito "ah faz muito tempo atrás". Não, foi ontem.

No tempo histórico, 20 anos não é nada. É quase metade da nova vida democrática do Brasil. É uma geração. É a distância entre os discos Ao Vivo da Banda Eva, de 1997, e o álbum Ao Vivo em Trancoso, que Ivete Sangalo lançou em 2017. Enfim, Mari percebeu que duas décadas eram pouco tempo.

[Mari Muradas] E que a história é muito surreal. É muito surreal o que eles fizeram. E como ela foi descoberta, e, e esses detalhes horrorosos ali foram me consumindo num ódio por ela assim eu falei não é possível essa mulher estar aí foragida, porque o marido foi preso, né?

Sim. As últimas notícias que saíram em jornais americanos sobre o caso contam que Renê Bonetti, o marido de Margarida, foi condenado e preso nos EUA. Mas faz mais de uma década que a gente não sabe dele.

Além de ser assombrada por saber que a vizinha era uma criminosa, Mari e a família dela começaram a sofrer com aspectos mais práticos que vinham da casa abandonada, como uma nuvem de pernilongos que revoava do terreno baldio para casa dela toda tarde.

[Mari Muradas] E aí eu comecei a chamar a prefeitura, fumacê, pra vir fazer alguma coisa e denunciar ela como ponto de dengue! E aí que os caras, os agentes não conseguem entrar! Ela não deixa que ninguém entre.

A Mari passou a trombar com Margarida de vez em quando. Encontrou ela no supermercado. Na lotérica. Encontrou com a mulher revirando latas de lixo da praça de alimentação do Shopping Higienópolis, um dos mais ricos da cidade, que fica a quatro quarteirões da casa abandonada.

[Mari Muradas] Daí um dia eu fiquei muito puta e encontrei, ela tava lá arrumando alguma coisa da calçada e eu passei e eu falei a gente precisa conversar; não dá pra continuar o estado da sua casa porque você está atrapalhando todos os vizinhos, você tá tá com muito pernilongo, né? Não tá higiênico isso daqui, a gente, você precisa permitir que a prefeitura entre, e ela falou, não, mas aqui não tem ponto nenhum de dengue, eu falei, não, não é possível que não tem. Falei olha a quantidade de de água parada só aqui na porta, e ela estava toda simpática porque ela estava vindo fazer carinho no meu, nos meus cachorros.

Mari Muradas confrontou a mulher que diz também se chamar Mari. E revelou que sabia o nome verdadeiro dela. E a história escondida junto com esse nome.

[Mari Muradas] E aí ela ficou nesse né, nanana, e aí não não pode, daí eu me irritei eu falei como a senhora chama? Daí ela falou Maria, eu falei a senhora não chama Maria, a senhora chama Margarida. E eu sei muito bem o que a senhora fez. Então ou a senhora deixa a prefeitura entrar aqui ou a sua vida vai ficar muito pior do que ela já está. Daí ela ficou não eu não sou, não sou, não sou, e daí eu vi que ela ia começar uma crise catártica ali também eu falei ai pronto né já eu às dez da manhã nem tomei meu café direito já estou aqui...

O confronto não deu em nada. Ninguém da prefeitura pôde entrar na casa abandonada. Os mosquitos seguem vivendo e procriando em um terreno ermo do tamanho de um campo de futebol. E os contatos entre Mari Muradas e Margarida cessaram. Porque a mulher da casa abandonada passou a evitar a vizinha que um dia quis ajudá-la.

[Mari Muradas] E aí o Chico contou que o morador do primeiro andar do Louveira da Torre da Piauí, que era da janela da casa dela, se mudou há uns anos atrás porque não tolerava primeiro o mau cheiro que saia de lá.

O Chico, no caso, não sou eu. É o porteiro do edifício Louveira, com quem a gente vai conversar daqui a dois minutos.

Eu estou quase terminando uma hora de conversa com a Mari quando descubro que talvez ela tenha sido a responsável por eu descobrir a identidade oculta de Margarida. Porque é bem possível que ela tenha feito o comentário no site de arquitetura.

[Mari Muradas] De arquitetura. É! É! É! Se bobear o comentário é até meu, Chico. Porque eu lembro quando eu descobri isso e eu fui atrás da casa e as pessoas estavam falando, coitada dessa mulher e eu falando, coitada é o cacete. Tipo, e eu comecei a contar pras pessoas

Quando descobriu que a vizinha não era uma senhorinha desamparada, ela fez o movimento de contar a história do crime no mundo virtual… e também no mundo real.

Mari Muradas começou a conversar com a vizinhança, como eu estou fazendo em 2022. Ouviu de um vizinho, já idoso, que ele conhecia o pai de Margarida, um médico respeitado. Que ele frequentou a casa, quando ela ainda não era abandonada. E de outra vizinha, ouviu que ela brincou na rua com Margarida e as duas irmãs dela. A cada vizinho com quem ela conversava, vinham novas informações.

[Mari Muradas] Tanto que ela conta, uma vez eu perguntei pra Vânia, nossa e essa mulher louca dessa, ela falou, nossa a gente brincou tanto na rua aqui a gente conviveu muito e ela se transformou nisso.

Informações de como a família dona da casa já foi a mais afluente da região.

Muito ricos mesmo. Muito mais do que eu poderia imaginar.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Margarida Maria Vicente de Azevedo Bonetti é dona de um privilégio que resiste até à morte. Doutor Geraldo Vicente de Azevedo morreu aos 91 anos de idade, em 1998. Nessa época, Margarida e o marido, Renê Bonetti, ainda moravam nos Estados Unidos. Ainda tinham uma empregada doméstica que deixaram de pagar no começo dos anos 1980, e que vivia trancada no porão de casa. Que era torturada por Margarida, segundo relatórios da Justiça americana. Mas Geraldo Vicente de Azevedo morreu sem ver a filha ser acusada do crime.

Morreu com homenagens e um sobrenome nas costas. Quando eu falo que Margarida Maria Vicente de Azevedo Bonetti é privilegiada, eu falo de gerações de privilégio. Três gerações de riqueza e de influência. O avô da mulher da casa abandonada era um dos paulistas mais importantes do tempo dele. Era tão importante que tinha um título de nobreza. O avô de Margarida era o Barão de Bocaina.

Francisco de Paula Vicente de Azevedo nasceu em Lorena, no interior do Estado, no meio dos anos 1800. Vinha de uma família de posses. E foi acumulando cada vez mais terra. Terra em que plantava café, o maior produto de exportação brasileiro naqueles tempos. Quando era adulto, as fazendas dele eram tão grandes que uma delas virou uma cidade. A fazenda Canas hoje atende por Município de Canas. Além de ter terra, café e dinheiro, ele tinha outros poderes. Foi um dos fundadores do Engenho Central de Lorena e diretor da Estrada de Ferro São Paulo-Rio de Janeiro. E também foi bancário, um dos homens fortes do Banco Comercial do Estado de São Paulo.

Dá para imaginar o tanto de recursos que tinha a família em que Margarida nasceu? Dá. Mas também dá para ver com os próprios olhos. É só ir até a esquina da Rua Padre João Manuel com a Alameda Santos, a um quarteirão da avenida Paulista. Lá, fica uma das raras mansões que ainda estão de pé na região da avenida mais famosa de São Paulo. Se hoje a Paulista é um corredor de McDonalds e Burger Kings, cem anos atrás era um desfile de mansões. A maioria dos donos dessas casas eram donos de fábricas. Uma das exceções era o Barão da Bocaina que, mesmo fazendeiro, escolheu erguer ali uma mansão, em 1911. A casa, com colunas gregas brancas que fazem um leigo como eu lembrar da Casa Branca, ganhou um apelido: a Casa do Barão de Bocaina. Ela não lembra em nada a casa abandonada de Higienópolis. Até porque não está abandonada. Não hoje em dia, mas esteve nos últimos anos.

Dois dos tios dela moraram lá, Francisco de Paula Vicente de Azevedo e a Freira Lavínia Vicente De Azevedo, que viveu lá até morrer em 2007, aos 93 anos. Ela costumava distribuir café da manhã e almoço. Eu conversei com três pessoas que trabalharam para a tia Freira Lavínia. Todos a descrevem como uma mulher temente a Deus e generosa com quem tinha menos. Daí, no começo dos anos 2000, ela morreu na Casa do Barão de Bocaina. Como ela não tinha filhos, o imóvel foi dividido entre familiares, entre eles a mulher da casa abandonada, e acabou vendido para uma incorporadora. Rolou um xadrez na justiça para tentar colocar a casa abaixo e erguer ali um prédio. E, enquanto a construtora lutava pelo direito de demolir o imóvel, o casarão foi decaindo. Virou uma casa abandonada nos anos de 2010.

Mas, depois de uma década, parece que a casa do Barão de Bocaina venceu. Em vez de virar um empreendimento imobiliário, a casa está em pé, e restaurada. Em 2022, o casarão virou um restaurante.

E uma coisa parecida aconteceu com a casa abandonada de Higienópolis. O casarão ainda está de pé por causa de um nó jurídico. Em um episódio futuro, a gente vai entrar nesse ninho de mafagafo de herança e de tombamentos. Por enquanto, basta saber que muita gente tem interesse nesse terreno. Por mais que ele tenha uma limitação construtiva: nada que for construído ali pode ser mais alto, ou ser maior do que a casa abandonada. Construtoras e parentes de Margarida querem a casa. Mas ela não está disposta a sair de lá.

A cem passos da casa abandonada, existe uma rua sem saída. Uma rua que liga a Faculdade Faap a um condomínio de prédios de luxo, com apartamentos que custam de R$ 5 milhões para cima. Pouca gente sabe que aquela via é uma rua pública, porque ela é fechada com cancelas e seguranças. Sabe como chama a rua? Rua Barão de Bocaina.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Dias depois de conhecer a Mari Muradas, ela me apresenta ao Antônio Francisco da Silva. Ou só Francisco mesmo. Ele deve ser a pessoa que mais convive com Margarida nos últimos 20 anos. Porque ele passa a maior parte do tempo olhando para a janela do quarto de Margarida, no segundo andar da casa.

No caminho para encontrar com ele, eu passo em frente da casa abandonada. Margarida, ou Mari, está no Jardim. Eu coloco a cabeça por cima da cerca e tento conversar com ela.

[Chico] Dona Mari?

[silêncio]

[Dona Mari?]

[cachorro começa a latir]

De novo, ela me ignora e vai para dentro.

[cachorro latindo]

Só depois que ela fecha a porta na minha cara eu percebo uma coisa. A porta de entrada da casa abandonada, tem algo de peculiar. Uma redoma de vidro na altura da maçaneta. Uma câmera de segurança.

Eu sigo em frente. Encontro o Francisco na portaria do Edifício Louveira e a gente se senta em um banco da praça Vilaboim, a mesma em que semanas antes uma moradora de Higienópolis tentava impedir funcionários da prefeitura de podar uma árvore.

[Chico] Posso ligar aqui? (gravador)

[Francisco] Pode.

Faz quase quatro décadas que Francisco está ali. No mesmo lugar. Oito horas por dia, durante a semana, olhando para os fundos da casa abandonada.

[Francisco] Trinta e oito anos.

[Chico] Sempre no Louveira?

[Francisco] Sempre no Louveira. Entrei primeiro de fevereiro de oitenta e quatro.

[Chico] Uau. Posso ser indelicado e perguntar quantos anos você tinha?

[Francisco] Eu tinha dezoito anos e meio. Hoje eu tô com cinquenta e seis… e meio.

Mas não há quem diga. O cabelo é preto, o sorriso é branco e o jeito é de um moleque, não de alguém com quase sessenta anos. Mas a memória de Francisco prova que ele de fato está ali há quase quarenta anos. Porque ele conheceu a casa abandonada antes do abandono. Quando ela era a casa de uma família rica.

Quando ele chegou ao Louveira, era o começo da década de 1980, e Margarida tinha acabado de se mudar para os EUA. Só moravam na casa os pais dela.

[Chico] Quem era a família?

[Francisco] Ahn, Vicente de Azevedo. Morava ele, seu Geraldo, doutor Geraldo e dona Lourdes. Só os dois.

[Chico] E a Mari… Margarida?

[Francisco] Não, ela morava acho que nos Estados Unidos já.

[Chico] Já estava lá.

[Francisco] Já.

[Chico] Isso foi quarenta anos atrás, isso era…?

[Francisco] É..

[Chico] É, ela foi em setenta e nove.

[Francisco] É, foi isso mesmo, setenta e nove por aí que eu fiquei sabendo.

[Chico] E a casa já estava um pouco…caída assim ou não?

[Francisco] Não, não estava não. Não.

[Chico] Tava bem cuidada? Tinha telhado, tava pintada?

[Francisco] Tava inteira, ele, o doutor Geraldo usava a garagem do lado.

Além de serem os mais ricos da rua, o casal Vicente de Azevedo talvez fosse o mais generoso. Era comum ter uma fila de pessoas na porta da casa, esperando por comida ou roupa.

[Chico] E eles eram gente boa?

[Francisco] Eram. Os pais deles eram. Era, era, era tanto que ela dava comida pro pessoal de rua, né? Formava filas aí na frente.

Ela, no caso, é Dona Lurdes, a mãe de Margarida. Maria de Lurdes Danso Vicente de Azevedo viveu o suficiente para ver a filha ser acusada de um crime e voltar para o Brasil. Margarida e Maria de Lurdes moraram juntas na casa até a morte da mãe, em 2011. Essa década é o período em que a casa para de ter manutenção, e cai em câmera lenta para o abandono.

Mas, antes disso, Francisco viu a casa bonita e bem cuidada. Foram décadas convivendo com os pais de Margarida. Muitas vezes, Francisco ajudava o doutor Geraldo a estacionar o carro, uma belina, e depois um Voyage. E essas ajudas foram ficando cada vez mais frequentes com o tempo. Porque ele estava envelhecendo e perdendo as habilidades motoras.

[Francisco] Eu entrei, eu acho que eu entrei uma vez só pra ajudar o pai dela. Ela não morava aí não. Porque eu ajudava muito o pai dela. Ele não conseguia engatar a ré da Brasília que ele tinha e aí eu tirava pra ele, que ele não conseguia mais.Aí ele saia aqui e andava só na primeira, acelerado, acelerado, um fumaceiro. Era um barato.Depois ele vendeu essa Brasília e comprou um Voyage e esse Voyage está aí até hoje. Um Voyage bege.

Até que não foi mais preciso estacionar o carro. Em 24 de outubro de 1998, doutor Geraldo morreu, aos 91 anos de idade. Francisco conta que foi uma comoção na rua. E que Maria de Lurdes ficou sozinha na casa, por mais que recebesse a visita de duas das filhas dela.

Até que, passados dois anos, em 2000, uma terceira filha que Francisco não conhecia chegou para morar na casa. Margarida. Ou Mari, como ela se apresentava.

Junto com a filha, veio a história de por que ela tinha voltado ao Brasil, depois de décadas morando nos Estados Unidos. Porque a imprensa começou a bater na porta da casa.

[Francisco] Aí tem essa história que ela levou a empregada, acho que era daqui. Esse detalhe aí eu já não sei. Só fiquei sabendo através da imprensa.

[Chico] Daí saiu no jornal e tal…

[Francisco] Saiu no jornal.

[Chico] Acusada de escravidão…

[Francisco] O pessoal da Globo veio aí, o Carlos Dornelles.

Francisco diz ter testemunhado equipes de reportagem da TV Globo tentando falar com Margarida. Mas só tentando, porque ela nunca deu uma entrevista. Eu também não consegui achar uma reportagem, em vídeo, em áudio ou em texto, em que Margarida fale das acusações de ter mantido uma empregada em condições análogas à escravidão, e de ter torturado essa mesma pessoa.

[Francisco] Ah, meu, isso é uma vergonha. O pior, o pior é que ela se nega a dar o nome dela, ela fala que o nome dela é Mari e não é nada de Mari, é Margarida.

Ele diz que oficiais de Justiça também tentaram entrar nos primeiros anos. Mas que ela não atendeu ninguém. Nunca.

[Francisco] Ela não atende, não atende.

[Chico] Ela acabou de fechar a porta da minha cara, sendo que ela me conhece, me ligou e…

[Francisco] Pois é, não…

[Chico] Ela estava abrindo a porta acho que pros cachorros, eu falei, oi dona Mari, tudo bem? Ela fechou a porta.

[Francisco] É, não, sei lá se ela não te reconheceu. Aí ela encrenca com o caminhão que não pode parar na frente da casa dela, pessoal de mudança, chama a polícia. Ela gosta de chamar a polícia. Tudo é polícia.

Ela chama a polícia com frequência. Chama a polícia quando vão derrubar uma árvore, com laudo e recomendação. Chama a polícia quando estacionam um carro na frente da casa. Uma pessoa que é procurada pela Justiça em outro país não pensa duas vezes antes de chamar a polícia aqui. Inclusive, na antevéspera do Natal, Margarida já tinha chamado a polícia quando eu cheguei. A Mari Muradas confirmou que viu a viatura chegar e ir embora, depois de ouvir da mulher da casa abandonada que eles precisavam fazer alguma coisa para impedir que a árvore fosse removida.

O homem para e articula uma ironia que já estava coçando no meu cérebro

[Francisco] E ela fala sempre, ela sempre fala em polícia, em polícia, chamar a polícia pra todo mundo ela chama a polícia e sendo ela acusada de um crime desse, racismo, de escravidão, né? Na verdade, escravidão.

Francisco diz que a guerra de Margarida contra a poda e remoção de árvores da região é longa. E que já teve várias batalhas. Anos atrás, por exemplo, ela saiu pelas ruas do bairro com um abaixo-assinado para que nenhuma árvore de Higienópolis pudesse ser derrubada ou podada, nunca mais.

[Francisco] Veio me pedir pra assinar, eu não assinei, porque eu sabia… o engenheiro agrônomo falou, mostrou pra mim os detalhe da da planta, tava podre, ia cair, graças a Deus que tirou. Essa árvore aqui ó ia detonar o Louveira. Ia detonar.

Não foi só ele que se recusou a assinar o documento. Francisco diz que a vizinhança em peso negou a assinatura no papel.

[Francisco] Não conseguiu nada. Só… só antipatia. Da maioria das pessoas, principalmente dos policiais.

Eles só se falam quando Margarida o procura, e a relação está longe de ser cordial.

[Francisco] É Hipoglós, eu acho que é Hipoglós, sempre ela tá usando, sempre.

[Chico] Ela já falou alguma coisa a respeito?

[Francisco] Não. Não. Aí ela entrava no prédio sem máscara por causa do Hipoglós. Eu falava é, não pode entrar na… ai só um pouquinho, só um pouquinho. Encrencou muito com a gente já. Ih, já briguei muito com ela assim.

As brigas são sempre por questões práticas. O mau cheiro que a casa emana. As vezes que Margarida entra na portaria do Louveira aos berros. O barulho dos dois cachorros dela.

[Francisco] Eu reclamo muito com ela. Eu sei lá, eu não xingo ela, mas é, eu não dou atenção pra ela em nada. Ela é muito, como vizinha, ela é péssima.

A questão A questão do prédio com ela não é só pelo crime do qual ela é acusada. No dia a dia, ela também causa problemas para o Loveira.

[Francisco] Os cachorro dela também, eu não sei se passava fome, latiam tanto, latiam demais, nossa. Aí agora acho que a casa não tem banheiro, ela usa lá dentro e joga o...

No caso, ela joga excrementos pela janela. Rente ao muro que divide a casa do edifício Louveira.

[Francisco] Então ela joga e a gente não pode andar ali no muro do prédio que é um fedor do xixi, sabe? Aquele fedor forte. E ela fica jogando lá na janela escondida, se a gente aparecer aqui ela se afasta com o balde. Essa semana mesmo ela fez isso, quando me viu se afastou. Aí falou umas coisas lá que eu não estava entendendo e continuou jogando. É tanto que é marcado. Se você olhar ali do prédio você vê aquelas aquele escorrimento branco sabe?

Eu olho para a casa abandonada. E há estrias marrons na parede dos fundos. São as marcas de onde a água de dejetos de Margarida passou.

A única vez que Francisco ficou do lado de Margarida foi uns quatro anos atrás, quando um grupo de sem-teto tentou invadir a casa, pensando que por estar abandonada ela estava vazia.

[Francisco] Mas ela se esconde. Imagina, nunca pegaram ela assim. Ela some. Já teve tentativa de invasão na casa.

[Chico] Pra roubar?

[Francisco] Pra roubar não, pra morar…é, tem uma palavra que fala pra…

[Chico] Ocupar.

[Francisco] É, pra ocupar a casa, ocupação, né?

[Chico] Grupo de sem teto?

[Francisco] É, grupo de sem teto, tinham umas dez pessoas. Aí ela gritou, começou a gritar, isso foi de madrugada. Aí ela falou ‘vou chamar a polícia, vou chamar a polícia’. E o pessoal da rua também falaram, o segurança falou, ‘não, não pode, aí tem gente, aí mora gente’. Mas teve umas duas tentativas de invasão pra se apoiar da casa.

De repente, Francisco para de falar. Olha fixo para frente. Para além do jardim do Louveira. Para a parede lateral da casa abandonada. Ele viu alguma coisa.

[Francisco] Olha ela na janela lá. Tá abrindo.

[Chico] Ela tá?

[Francisco] É tá. Não sei se daqui você vê. Na primeira janela de baixo encostado naquele banheirinho lá do… entre as árvores aqui ó. Daí você não vê… você está com uma árvore no meio.

[Chico] É.

[Francisco] É, tá lá.

E nós dois vemos a mulher da casa abandonada enquanto conversamos em um banco da praça. Ela está com uma faixa no cabelo, e seu rosto está coberto pela camada grossa e branca de pomada. Margarida olha para um lado, olha para o outro. E então olha para nós, exatamente na frente dela, a trinta metros da janela.

[Francisco] É, não ela fica lá na casa e fica na casinha dos fundos também. Aí uma vez ela me liberou eu pegar abacate, aí eu tirei setenta e cinco abacates. Aí eu peguei e dei quinze abacates pra ela. Ela achou pouco. Porque ela falou assim que só come abacate. A comida dela era abacate. Não sei se é mentira, né? Porque ela faz comida.

[Chico] Setenta e cinco?

Sim, setenta e cinco abacates. O número me parece impressionante, mas está longe de ser a melhor colheita que já foi feita no pomar da casa abandonada.

[Francisco] A gente tirou duzentos abacates só pelo lado do prédio. Duzentos abacates! Aí dá abacate demais e é o melhor abacate que tem aí. Antes a gente tirava escondido. Mas uma vez eu pedi pra ela. Ela deixou e ‘ah eu quero um pouco’. Aí a gente conseguiu tirar setenta e cinco, demos quinze pra ela, ela achou pouco. Mas o que passa do prédio pra cá, é nosso. Por lei, né?

[Chico] Sim, e daí vocês podem pegar?

[Francisco] Pegamos duzentos. Contamos. A gente deu o abacate pro prédio inteiro.

A história do abacate me leva a crer que a convivência entre os moradores do Louveira e a mulher da casa abandonada pode ser pacífica. Cordial, jamais. Francisco garante que ninguém ali gosta dela.

[Francisco] Não, o pessoal do prédio, na verdade, eles são acomodados. Eles nem percebem muito. Só o vizinho do primeiro andar. E a gente que circula pela garagem. Mas o que o pessoal falava era comprar a casa pelo terreno, pra fazer garagem.

Antes de terminar a conversa, eu pergunto se ele acha que um dia Margarida vai pagar pelo crime que não foi julgado.

[Francisco] Nossa, terrível. Mas ela vai pagar isso aí. Está pagando. E eu acho que ela não vai morrer tão cedo que é pra ir pagando aos poucos. Ela se acha que ela é boazinha, mas boazinha nada. Ela não é nada de boazinha.

No meio da conversa, o Francisco disse que via Margarida pegar táxi com alguma frequência. Que ela sempre usa os carros do ponto em frente ao Louveira. Eu me despeço dele e aproveito que estou do lado do ponto de táxi. Vou até lá. Só tem um carro sedã estacionado, com um homem de barba amarelada por cigarro encostado no capô. É Ivo. Aqui no podcast vai ser só Ivo mesmo (ele que pediu).

[Ivo] Quando vem aí é pra pegar táxi mas é muito quieta, é muito tranquila, paga tudo bem. Pra mim, pegou meu carro, pagou, tá liberado.

Ele conta que Margarida paga em dinheiro, contado, sempre o valor exato. E que esse valor muitas vezes se repete, porque ela costuma ir para o mesmo lugar.

[Chico] Pra onde ela vai?

[Ivo] Ela geralmente vai no fórum. Fórum da João Mendes. É só lá que ela vai. A maioria das vezes é só lá.

Ela entra no carro, dá bom dia, e não fala mais nada. Ele sabe do crime do qual Margarida é acusada, mas ela nunca falou nada a respeito.

[Ivo] Não, nunca, nunca, nunca toca no assunto.

O que parece ser uma regra. Margarida foge de assuntos do passado. Mas uma regra que tem uma exceção. Em fevereiro, dois meses depois do meu primeiro encontro com ela, eu descubro que tem uma pessoa da vizinhança com quem Margarida fala do crime.​

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Semanas depois de conversar com Francisco, do Louveira, eu consigo encontrar outra pessoa essencial para contar a história de Margarida: Francisco, do Edifício Jóia. Sim, um outro Francisco (por um pedido dele, o sobrenome vai ficar fora da história). Esse Francisco, no caso, é o zelador de um prédio que fica próximo da casa.

[Chico] Tudo bem? O senhor é o Seu Francisco?

[Francisco 2] Sim.

[Chico] Prazer, Francisco. Sou seu xará.

[Francisco 2] Beleza?

Ele me deixa entrar no prédio, por mais que acredite ter pouca informação sobre a vizinha. Mas ele é modesto. Francisco é uma das pessoas mais próximas de Margarida.

[Francisco 2] É, mas assim, o contato que eu tenho com ela não é tão assim pra acrescentar muito. Eu acho que eles sabem a mesma coisa que eu assim mas…

A gente entra no saguão do prédio e se senta em sofás que parecem novos.

[Chico] Seu Francisco, obrigado por topar falar comigo nessa rua que todo mundo chama Francisco. Eu sou Francisco, o cara do Louveira é Francisco, o daqui é Francisco.

[Francisco 2] Lá em casa tem três Francisco, tenho mais dois irmãos que se chamam Francisco.

[Chico] Mas cês são… a mãe era devota, não?

[Francisco 2] Diz lá no, eu sou do Rio Grande do Norte, né? E lá o pessoal tem devoção assim por santos, mas eu acho que… num sei cara, tem um que trabalha aqui na Conselheiro Brotero que é Francisco. Outro em Perdizes, Francisco também.

Reconhecida a coincidência, a gente pode começar a falar da mulher da casa abandonada. Faz 16 anos que Francisco administra o prédio que tem vista para a casa.

[Francisco 2] Então eu tenho uma certa amizade assim com ela, eu sempre varro, eu trabalho aqui sozinho, né? Um zelador Severino. Então eu faço tudo. Eu sempre varro a calçada dela todo dia. Então eu às vezes vejo uma sujeira. Então eu sempre varro a calçada dela e a gente sempre conversa.

E, ao contrário do Francisco do Louveira, esse Francisco tem uma relação cordial com Margarida. Ele a admira. Mesmo que não sejam próximos.

[Francisco 2] Ela tem as excentricidades dela, né? De andar, mas assim, pra mim ela é normal, eu acho até ela gente boa assim, sabe?

Assim como eu, o Francisco do Louveira e a Mari Muradas, o Francisco do prédio Jóia nunca entrou na casa.

[Francisco 2] Não deixa, não deixa entrar, é difícil, se ela se sentir ameaçada ela não deixa entrar.

Ou quase nunca. Ele se corrige e lembra que teve uma vez em que ela deixou ele entrar. Não na casa em si, mas no terreno.

[Francisco 2] Entrei uma vez lá atrás, aqui trás que eu fui, ela pediu pra cortar uma uma árvore dela que tava aí, eu entrei e cortei a árvore, mas assim pra entrar na casa… Uma vez ajudei a levar a mãe dela até a porta também, mas só. Nunca adentrei não.

Margarida vive sozinha desde que a mãe dela morreu, em 2011. Mas não tão sozinha quanto possa parecer. Francisco diz que vê a família visitar Margarida de vez em quando.

[Francisco 2] Que ela tava com a mãe, né? Eu acho que sozinha, depois trouxe a mãe pra morar junto, e depois que a mãe faleceu ela ficou sozinha. Mas tem uma irmã dela que vem aí, às vezes visitar, eu já, lembro que às vezes vem deixar mantimentos e… não tem contato assim, mas é eu já a ví aí, essa outra irmã dela

Eu procurei as duas irmãs de Margarida para esse documentário. Elas negaram os pedidos de entrevista.

[Voz não identificada] Ela não vai querer fazer, tá? Ela não tem mais nenhum contato com a irmã e não quer saber disso.

A gente vai falar mais delas e da cizânia que é a herança da família de Margarida. Uma família que tinha uma dúzia de imóveis por São Paulo, mas que está perdendo tudo. Mas agora voltamos ao hall e ao papo com Francisco. Por mais que seja próximo da mulher da casa abandonada, ela nunca revelou o nome dela. Então, ele criou um nome.

[Francisco 2] Nunca falou. Eu chamo ela de dona Maria, geralmente a pessoa não gosta que chame de dona Maria, né? Mas eu acostumei e chamo ‘dona Maria pra cá, dona Maria pra ela’, ela nunca falou nada assim sobre o nome não.

É curioso como a pessoa da rua que mais tem intimidade com a mulher da casa abandonada não recebeu nada dela. Sequer o nome.

[Francisco 2] Vejo ela uma, duas, três vezes no mês assim, às vezes ela chama pra conversar, e às vezes o pessoal passa e fica, quando você tá conversando com ela, passa o pessoal, todo mundo, né? Porque não é comum você ver uma pessoa, né? Toda…

Ele não completa a frase. Mas imagino que ele queira dizer toda excêntrica. E Margarida falou sobre essas excentricidades com ele. Disse, por exemplo, por que cobre o rosto com a pomada branca.

[Francisco 2] Ela falou que tem problema, usa aquele aquela pomada porque tem problema na pele. Então tem que usar direto.

Francisco acredita que Margarida fale com ele por um motivo simples. Porque ele é uma das poucas pessoas da vizinhança dispostas a parar e ouvir o que a mulher da casa abandonada tem a dizer.

[Francisco 2] Ela sai pra conversar, eu fico aí procuro sair, ela, né, dá uma volta em rumo a outro assunto, aí eu fico pensando, ‘digo ah mano acho que que é falta de quem é com quem conversar, então não custa nada também cê dá um, né? Um apoio, conversar um pouco. Que o pessoal todo mundo evita assim de, pelo menos meus amigos aqui os que trabalham em prédio aqui, todo mundo quando ela chega pessoal já já sai e tal.

Ela conversa tanto com Francisco que chegou a falar sobre o crime do qual foi acusada nos Estados Unidos, e a fez voltar fugida para o Brasil.

[Francisco 2] Ela falou comigo sobre esse caso lá, mas ela falou que tudo foram coisas que inventaram dela, inclusive ela falou desse padre, que disse que o padre queria ir depor a favor dela mas é, ameaçaram o padre…

Esse padre de que o Francisco fala é uma das pessoas que ajudou a resgatar a mulher em situação análoga à escravidão. Eu ainda vou falar com ele. Mas, por enquanto, é importante frisar que parece muito improvável que esse padre fosse querer depor a favor de Margarida no caso em que ela era acusada de explorar e torturar uma pessoa.

No meio da conversa, Francisco de repente baixa o volume da fala. É como se ele tivesse sido acometido por um medo. Um medo de que a mulher da casa vizinha pudesse ouvir o que nós estamos falando.

[Francisco 2] Ela tem uma audição assim que é uma coisa extraordinária.

E, se descobrir que Francisco está me dando uma entrevista, é provável que ela se afaste também dele.

[Francisco 2] Mas ela é assim ela é… Se vê que tá gravando ela já reage, ela não é boba, ela é uma pessoa bem inteligente.

E por mais que ele seja uma das poucas pessoas a quem foi permitido entrar na casa nos últimos 20 anos, não é que eles tenham uma baita intimidade. Não chegam a ser amigos. São conhecidos próximos, se é que isso faz sentido. Vizinhos que têm uma relação cordial, mas que ainda estão separados por um muro.

[Francisco 2] A casa, na casa é como eu falei, não cheguei a adentrar, só fui até o…Mas o quintal é assim, assim é cheio de… ela gosta de planta entendeu? Tanto é que pra cortar essas plantas aqui da cerca elétrica é um trabalho, eu preciso ver quando ela sai pra mim cortar, e se ela vir cortando é complicado. Às vezes para um caminhão ali na frente, encosta na árvore, ela já começa a brigar e quer chamar a polícia e é uma coisa bem... é que ela gosta mesmo de planta. Ela gosta de planta.

Ela gosta de planta. É difícil deixar passar a ironia que é uma pessoa acusada de causar o maior sofrimento que existe a um ser humano gostar de plantas. Mas eu me contenho. E não interrompo a fala do Francisco, ele continua falando sobre plantas.

[Francisco 2] Comigo é mais de planta, porque eu gosto também de planta, então ela vem tirar dúvidas, quer saber, né, das coisas, vem me oferecer muda de plantas também que tem aqui atrás do quintal dela, então…

Os dois mantêm uma relação cordial. Mais cordial do que a de Margarida com Francisco, do Edifício Louveira, com Mari Muradas ou com as dezenas de vizinhos com quem eu conversei, e que não quiseram ser gravados.

[Francisco 2] Eu acho ela é uma pessoa assim inteligente. Por exemplo, das árvores. Ela falou pra mim uma coisa que eu não sabia. Que, quando ela veio com abaixo-assinado aqui, ‘Francisco eu estou fazendo isso porque eu já entrei no site, eles cortaram árvore por tudo quanto é canto e tem uma lista de árvores pra eles cortarem e o engenheiro que condena a árvore é o dono é o mesmo da empresa’.

É a mesma teoria da conspiração que Margarida expôs na antevéspera de Natal para mim. Francisco ouve essa teoria há anos. E, em partes, encontra sentido.

[Francisco 2] 'É uma máquina de ganhar dinheiro, de fazer dinheiro, Francisco. Então, ele condena qualquer árvore, vai lá, ele já tem a empresa, corta a árvore’. Eu digo, ‘olha mano’, eu até comentei com o pessoal aqui do prédio, eu digo, ‘olha, tem tudo a ver, né', se ela tiver falando a a verdade mesmo, né, então…

E, aos poucos, ela foi se abrindo com ele. Aconteceu até de Margarida sair de casa e ir visitar o amigo no prédio ao lado.

[Francisco 2] Outro dia eu abri a porta pra ela. ‘Posso entrar um pouquinho?’ Eu digo ‘putz senhora tô atarefado, tem um monte de coisa pra fazer’. Ela sentou no banco ali, estirou a perna. Eu digo 'agora lascou, porque eu vou ficar (risada)' Aí fica escutando um pouquinho, aí inventa uma coisa e sai. Mas eu sempre dou atenção a ela.

Eu comento que Margarida deu um presente para o pessoal do Louveira. Deixou que eles colhessem 200 abacates de um pé na casa abandonada. Francisco confirma, diz que as árvores ali dão muita fruta. Mas que ele não ousa pegar.

[Francisco 2] Eu não arrisco, não viu? Mesmo eu, que ela disse que gosta de mim, ‘ai Francisco eu gosto de você, você é um dos vizinhos que eu acho legal e tudo’. Porque eu varro a calçada e às vezes converso com ela, né?Mas eu não eu não arrisco, eu não quero que ela veja eu pegando… (risada)

É uma questão de respeito. E talvez de preocupação. Porque Francisco diz que às vezes se pega aflito com as condições de vida da vizinha.

[Francisco 2] Às vezes ela aparece aqui na janela, por exemplo, quando tem chuva forte aí ela sai, às vezes joga água com balde pela janela, mas é água porque o telhado da casa tá assim, ele vai tombar ‘ah num pode, a casa é tombada’, mas eu acho que literalmente (risos) ela vai tombar porque ó o telhado tá tudo…

O telhado está roto. Telhas caíram em revoada, e há vários pontos em que a casa está descoberta. Ainda que Margarida tente reverter o processo do jeito dela.

[Francisco 2] Um outro dia, sabe o que tem em cima que eu até dei risada? Ela colocou uns guarda-chuva em cima do do telhado, entendeu? Dos buracos assim eu acho pra não entrar água, ela colocou uns guarda-chuva em cima, então é bem…

Ele se levanta e anda até os fundos do hall. Lá, tem uma porta que leva para um pátio. Uma laje de cimento no fundo do prédio que dá vista para o fundo da casa abandonada.

[Francisco 2] Ela abre do térreo aqui, às vezes eu vejo a televisão ligada.

Francisco sobe em um vaso de cimento. E começa a narrar o que vê lá de cima.

[Francisco 2] Tem os abacateiro e embaixo cheio de folha, de galho, de tudo. Mas não é bem cuidado não, assim, né? Ela junta coisa. Às vezes entra dentro da caçamba, das caçamba e leva coisa que ela vê que acha que vai usar. Tipo portas, é, cerâmica, essas coisas é tudo entulhado aí.

Ele me chama para ir até lá. De cima dos vasos, a gente vê os fundos da casa. Um quintal cheio de sucata: uma porta enferrujada está deitada dentro de uma banheira de porcelana, como se estivesse tomando banho. O mato já deve ter crescido mais de meio metro.

O telhado, nos fundos, tem vários guarda-chuvas encaixados, como se ela tivesse tentado restaurar a cobertura, mas não tivesse telhas.

No fundo do quintal, tem um cômodo autônomo. Uma edícula. E, no portão da edícula dá para ver algo. A rabeira de um carro.

[Francisco 2] (risos) A edícula, às vezes eu vejo ela subir, só usa a… um… um tanque que tem lá atrás e tem o carro que é um Voyage que era do pai dela que até os meninos falavam que ele comprou esse Voyage bem novinho na época e saiu pouquíssimas vezes com esse carro.

É o mesmo carro que o outro Francisco, porteiro do Louveira, ajudava o pai de margarida a estacionar. Mas ele está coberto por uma camada que é ferrugem, não tinta. Os pneus cederam, e ele está rente ao chão. Mas a dona da casa ainda pensa em usá-lo.

[Francisco 2] E outro dia ‘ahhh será que não dá pra encher os pneu Francisco desse carro?’ Digo 'ainda tem?’ (para ela) ‘Tem Francisco liga…’ ‘Mas não liga mais dona Maria esse carro não não tem como’. ‘Ah é que eu queria tirar ele pra colocar na frente do prédio’. Justamente pra não parar caminhões assim pra não prejudicar as árvores né? Digo ‘olha não tem como tirar esse carro daí mais’.

E, mesmo quando não encontra com Margarida na rua, Francisco às vezes vai até o muro. Só para ter certeza que ela está bem.

[Francisco 2] Às vezes, fico dois, três dias sem eu a ver, eu já subo aqui no muro e olho se tá tudo bem, se eu vejo um cachorro ou alguma coisa, porque né, mora sozinha, então você tem aquela, meio que você fica, pô será que tá bem? Será que aconteceu alguma coisa? Principalmente agora nesses tempos, uns dois meses atrás que tinha esse, né, esse pico de pandemia que ela não saía muito, então eu sempre dou uma olhadinha pra ver se a vejo se tá viva, né? (risos)

Ele, de alguma forma, é a única pessoa que zela pela mulher da casa abandonada. Eu agradeço pela conversa e desligo o gravador. Depois que a gente já tinha terminado a entrevista, o Francisco número 2 e eu ficamos batendo papo por mais meia hora. Ele me mostra uma foto, que fica pendurada na parede do hall. É um retrato em preto e branco de um casal na frente de uma casa. Um sobrado de dois andares. É o terreno onde foi erguido o edifício Jóia. Os herdeiros do casal moram até hoje no prédio. E eu noto que, no canto esquerdo da foto, dá para ver um pedaço da casa abandonada. Só que, nos anos 1930, quando a foto foi feita, ela não era abandonada. Era só uma casa.

Francisco e eu continuamos conversando, mesmo que não seja mais uma entrevista. Mas, no meio do nosso papo, ele solta uma frase que é inacreditável. Algo que me fez tirar o gravador da mochila e pedir permissão para gravar de novo.

[Francisco 2] A última vez que eu conversei com ela e ela expôs para mim esse acontecido lá, eu perguntei: 'E a senhora que trabalhava?' E ela: 'A gente tem contato, nós somos amigas'.

Margarida disse a ele que é amiga da mulher que trabalhou em serviço análogo à escravidão na casa dela, por quase 20 anos.

Só tem um jeito de descobrir isso. De contar essa história completa. Eu preciso visitar o lugar onde o crime aconteceu, 20 anos atrás. Pegar um avião e percorrer os mais de sete mil quilômetros que dividem a casa abandonada da casa americana onde Margarida morou por 20 anos. E em que, por duas décadas, escravizou uma pessoa. Que hoje ela diz ser amiga dela. Para entender essa história inteira, eu tinha de ir para os Estados Unidos.

FIM DO EPISÓDIO

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