Há dez anos, 'Cansei' dava a Doria projeção, aura de anti-Lula e pecha de 'golpista'
Caio Guatelli - 14.ago.2007/Folhapress | ||
João Doria, Luiz Flávio D'Urso (OAB-SP) e Alencar Burti (Associação do Comércio) em ato do Cansei |
Se hoje é o bordão #acelera que move o prefeito João Doria, foi sob o símbolo da fadiga que o tucano entrou na berlinda nacional. Há dez anos, o então empresário e apresentador do programa "Show Business" capitaneava o Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros –vulgo Cansei.
A canseira de 2007 –com caos aéreo, corrupção, bala perdida e, mais subliminarmente, o governo petista de Lula– contagiou uma ala jovem da Fiesp, a OAB-SP e personalidades como Hebe Camargo, Ivete Sangalo e Regina Casé. Nizan Guanaes idealizou uma campanha de TV que pedia: "Mostre indignação".
Mas o grupo também foi tachado de "golpista" e virou alvo de achincalhações de grão-políticos como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (Cansei, em sua opinião, não era uma lema que faria a cabeça de Martin Luther King) e o ex-governador Claudio Lembo ("coisa de dondocas enfadadas").
O maior protesto dos cansados reuniu, no dia 17 de agosto de 2007, 2.000 pessoas (segundo a PM) ou 5.000 (nas contas da organização) na praça da Sé. A localização indispôs Doria e o recém-nomeado arcebispo de São Paulo. Dom Odilo Scherer vetou a realização do ato dentro da catedral da Sé, por nele ver "claramente um cunho cívico-político, não um cunho religioso".
O entrevero entre líder católico e empresário não parou por ali. "Nunca tive notícia, no pior momento da ditadura, de você proibir um culto ecumênico dentro de igreja, quanto mais na Sé. Se o arcebispo viu conotação política no Cansei, viu errado", afirmou o Doria de 2007.
Agora prefeito, ele diz que a vida política à época não lhe passava pela cabeça. O que se manteve, afirma o tucano à Folha, foi a aversão a Lula, "que na época estava no auge da popularidade, com mais de 60%".
Em pesquisa Datafolha daquele agosto, o governo petista aparecia com 48% de aprovação. A taxa de insatisfação entre os que viajavam de avião era o dobro da média nacional.
O acidente da TAM que matou 199 pessoas em Congonhas ocorrera em julho, e um mês antes a crise aérea já era assunto –que não merecia tanto auê assim, segundo a ministra do Turismo no momento, Marta Suplicy, que recomendou aos passageiros: "Relaxa e goza".
Também na linha de frente do Cansei veio Luiz Flávio D'Urso, que presidia a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) paulista e hoje defende o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto na Lava Jato.
Outro titular: o então presidente da Philips na América Latina, Paulo Zottolo, que justificou sua adesão ao movimento, em entrevista ao "Valor Econômico", com uma frase pela qual depois se desculpou: "Não se pode pensar que o país é um Piauí, no sentido de que tanto faz quanto tanto fez. Se o Piauí deixar de existir, ninguém vai ficar chateado".
Ele agora mora em Miami, se diz farto de "uma esquerda retrógrada e também de uma direita extremista" e desanca o PSDB de Doria no Facebook ("uma vergonha como partido!").
Não que o amigo tenha perdido sua estima.
"Acredito que Doria vai ser a nova cara de um PSDB moderno", afirma Zottolo, para quem a bandeira da década passada foi uma pioneira "atitude da sociedade civil contra [a corrupção] que começava a aparecer do lulopetismo".
CANSADOS DA SÉ
Pulularam celebridades no ato da Sé. Deixada pelo motorista de sua Mercedes-Benz na Sé e cercada de seguranças, Hebe (1929-2012) se dizia "do povo". Agnaldo Rayol cantou o "Hino Nacional". Ivete não quis falar ao público e, à Folha, limitou-se a declarar que lá estava "em prol do Brasil".
Um Brasil já prenhe da polarização que hoje embala o debate político –a começar pelo racha no mundo artístico.
Almeida Rocha - 17.ago.2007/Folhapress | ||
Ato do Cansei na praça da Sé, em 17 de agosto de 2007 |
Seu Jorge aderiu. "O Brasil não me deu nada, não. Pelo Brasil, eu tava na cadeia, no subemprego, sacou? Então cansei de tudo, qualquer coisa que eu faça é R$ 100 mil, R$ 300 mil de imposto que eu pago."
O sertanejo Luciano, ao contrário do irmão Zezé Di Camargo, preferiu não. Disse que lançaria a contrapartida Caguei e provocou, como narrou a coluna "Mônica Bergamo" na Folha: "Como é que eu vou apoiar um movimento liderado por alguém que promove desfile de cachorros [Doria]?".
Claudio Lembo (DEM), que foi vice de Geraldo Alckmin e assumiu o Palácio dos Bandeirantes quando o tucano disputou a eleição presidencial de 2006, também ironizou a rotina de Doria.
Coisa de um "pequeno segmento da elite branca", o Cansei "deve ter começado em Campos do Jordão", afirmou. O prefeito tem casa na cidade, onde costumava organizar o Passeio de Cães –evento anual que ganhou destaque na "Caras" em 2011, com foto de Doria vestindo polo roxa e do "fofo bicho Bee Fag".
Uma crítica de FHC à iniciativa foi transcrita em comunicado enviado a Washington pelo então cônsul dos EUA em São Paulo, Thomas White, e vazado anos depois pelo Wikileaks. "Como [o tucano] comentou recentemente, [Cansei] não é um lema que Martin Luther King teria escolhido para inspirar seus seguidores", escreveu White.
Procurado, o ex-presidente afirmou que prefere não comentar a celeuma do passado. Tampouco Doria quis voltar ao assunto.
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