O auxílio-moradia já foi chamado de "penduricalho que ludibria o teto constitucional", "deslavado jabá", "pinguela", "obsceno, estapafúrdio e imoral privilégio".
Na magistratura e no Ministério Público, quem se opunha ao benefício ganhava a antipatia dos colegas.
A revelação, pela Folha, de que o juiz Sergio Moro, ministros e procuradores recebem o auxílio, sendo proprietários de imóveis, quebrou o mito e rompeu o silêncio em torno da vantagem.
Em 2014, o juiz do Trabalho Celso Fernando Karsburg, de Santa Cruz do Sul (RS), renunciou ao auxílio-moradia por considerar a remuneração "imoral, indecente e antiética". Foi execrado. "Sou a Geni da vez", disse.
Karsburg vê o auxílio como "resposta que um Poder, o Judiciário, deu a outro, o Executivo, porque este não cumpriu sua obrigação de repor o que a inflação havia consumido".
O procurador da República Davy Lincoln Rocha, de Joinville (SC), admitiu: "Deus sabe que eu tenho casa própria, como de resto têm quase todos os procuradores e magistrados". Depois, embolsou valores acumulados. Alegou que "seria um heroísmo idiota" não receber.
Naquele ano, o ex-procurador-geral Claudio Fonteles liderou manifesto, com sete procuradores, contra auxílios para "quem já habita há anos, há décadas, em residência própria". Uma das subscritoras, a procuradora da República Raquel Branquinho Nascimento, é titular da Secretaria Penal da Procuradoria-Geral da República.
A atual procuradora-geral, Raquel Dodge, foi autora do projeto de resolução do Conselho Superior do Ministério Público Federal sobre auxílio-moradia. Na campanha de 2015, afirmou que "o pagamento retroativo é devido e deve respeitar o prazo de prescrição quinquenal".
Rodrigo Janot afirmou, em 2015: "Eu não recebo e nunca recebi auxílio-moradia, sequer o postulei". Dois anos antes, assinou portaria concedendo auxílio-moradia a membros do Ministério Público da União.
Em 2016, o ministro Gilmar Mendes falou sobre a necessidade de o STF (Supremo Tribunal Federal) enfrentar as distorções do "maldito e malfadado auxílio-moradia".
"Hoje, paga-se auxílio-moradia para todos os magistrados, casados ou não, tendo moradia ou não, em nome da autonomia administrativa-financeira dos tribunais", disse o ministro do Supremo.
A ORIGEM
Há quem identifique no auxílio-moradia um resquício da chegada da corte de Portugal ao Brasil, mantendo as estruturas de poder e privilégios do sistema jurídico português. Ou uma herança da criação de Brasília, com amplos apartamentos funcionais para atrair, nos anos 1960, servidores e a alta administração pública que resistiam a trocar o Rio de Janeiro pelo cerrado.
Em fevereiro de 2000, o STF determinou o pagamento a todos os juízes de um adicional ao salário auxílio-moradia para evitar uma greve dos membros do Poder Judiciário.
"Estamos diante de uma situação anormal", justificou o então presidente do STF, Carlos Velloso, diante do impasse causado pela fixação do teto salarial do funcionalismo público.
Uma liminar (decisão provisória) foi concedida por Nelson Jobim, ministro indicado para o STF pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
O mandado de segurança que deu origem ao pagamento foi apresentado pela Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), com parecer contrário do então procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro.
O então presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), criticou a decisão do STF. O então presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), não se opôs.
A polêmica ressurgiu com liminar do ministro Luiz Fux, do STF, em setembro de 2014, até hoje não julgada pelo plenário, assegurando o direito ao auxílio-moradia a todos os juízes federais em atividade.
Fux citou jurisprudência segundo o qual a verba tem previsão na Lei Orgânica da Magistratura, acolhida pela Constituição.
Quase um mês depois, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), presidido pelo ministro Ricardo Lewandowski, regulamentou o auxílio-moradia a todos os magistrados.
Logo em seguida, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) estendeu o benefício aos membros do MP da União e dos Estados.
Juristas questionam o poder do CNJ e do CNMP para expedir atos com força de lei.
A decisão de Fux gerou uma corrida para tentar ampliar o benefício.
A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) orientou as entidades regionais a filiar novamente seus associados para que todos se beneficiassem, no ano seguinte, da cobrança judicial do auxílio-moradia com retroatividade.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais se antecipou e pagou auxílio-moradia a seus magistrados em valor acima do fixado pelo CNJ.
Servidores da Procuradoria do Trabalho em Rondonópolis (MT) protestaram contra o corte de gastos com perícias para garantir recursos do auxílio-moradia.
Lewandowski suspendeu decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (que abrange Rio e Espírito Santo) que assegurava a juízes do Trabalho o auxílio-moradia, mesmo residindo com cônjuge ou companheiro que tinha o mesmo benefício. Sustou decisão que também autorizava os juízes de Santa Catarina a receber o auxílio-moradia em duplicidade e retroativo.
Dias Toffoli, do STF, manteve decisão do CNJ que determinou ao Tribunal de Justiça de Mato Grosso suspender o pagamento de auxílio-moradia a magistrados aposentados e pensionistas. Negou mandado de segurança à Associação dos Magistrados do Amapá, que tentava anular suspensão do pagamento retroativo feito no Estado.
O CNMP suspendeu decisão do MP do Rio, que pretendia reajustar o valor do auxílio-transporte para compensar a proibição de pagamento retroativo do auxílio-moradia.
No final de 2017, o corregedor nacional de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, suspendeu ato que concedia auxílio-moradia retroativo aos magistrados do TJ do Rio Grande do Norte. E o CNMP confirmou que o auxílio-moradia não deve ser pago caso o cônjuge também receba o benefício e more no mesmo local.
Um promotor de Pernambuco sugeriu alternativa para a hipótese de o STF derrubar o auxílio-moradia: "A gente substitui por um auxílio-saúde de R$ 5.000, sem colocar o valor para não causar aquele escândalo social todo."
NA BERLINDA
STF deve julgar em março auxílio-moradia concedido a juízes
> LIMINARES
Em setembro de 2014, o ministro do STF Luiz Fux decidiu, em caráter liminar (provisório), dar auxílio-moradia a todos os juízes federais. Foram três liminares com teor semelhante em três ações diferentes, ainda não julgadas pelo plenário
> AÇÕES
Fux atendeu aos pedidos de um grupo de juízes federais, que sustentou que o auxílio é garantido pela Lei Orgânica da Magistratura. O benefício foi estendido a outras carreiras jurídicas
> GASTOS
Levantamento da ONG Contas Abertas calculou que pagamento de auxílio-moradia a juízes e membros do Ministério Público custou à União e aos Estados, até junho de 2017, R$ 4,5 bilhões. Atualizado até dezembro, o valor atinge R$ 5 bilhões
> BENEFICIADOS
Segundo a Contas Abertas, são beneficiadas cerca de 30 mil pessoas (17 mil juízes e 13 mil promotores e procuradores) com o auxílio mensal de R$ 4.377
> DEFINITIVO
Segundo auxiliares, a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, pretende pautar em março o julgamento definitivo de todas as ações relativas a auxílio-moradia
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