Misturaram o meu negócio com o dos partidos políticos, diz Delfim Netto

Não sei quem ele vai apoiar, mas é uma ilusão imaginar que Lula desapareceu

Ricardo Balthazar
São Paulo

No dia 9 de março, o ex-ministro Antonio Delfim Netto acordou cedo como de costume e já tinha lido os jornais quando a Polícia Federal bateu à sua porta com um mandado para vasculhar a casa.

Alvo de investigação por ter recebido pagamentos de empreiteiras que participaram da construção da usina de Belo Monte, ele diz ter sido tratado com respeito pelos policiais e afirma que provará sua inocência na Justiça.

O ex-ministro e economista Delfim Netto, vestindo camisa azul e colete cinza, na sala do seu escritório, no Pacaembu, em São Paulo.
O ex-ministro e economista Delfim Netto na sala do seu escritório, no Pacaembu, em São Paulo. - Eduardo Knapp 11.abr.2018 /Folhapress

Delfim cultiva boas relações com as empreiteiras desde a ditadura militar (1964-1985). Em 2010, a pedido do PT, ele ajudou a organizar um grupo de empresas que venceu o leilão de Belo Monte.

"Recebi honorários por serviços prestados", diz ele, que afirma ter recebido R$ 3 milhões, um quinto do valor apontado por delatores. "Tenho convicção de que a Justiça reconhecerá isso no fim."

Prestes a fazer 90 anos de idade, que completará dia 1º de maio, Delfim afirma que a Operação Lava Jato mudou o país e provocará uma onda de renovação no Congresso.

Conselheiro do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seus governos, ele prevê que a influência do líder petista continuará decisiva mesmo se ele ficar preso até a eleição presidencial de outubro.

 

Folha - Como o sr. se envolveu com o leilão de Belo Monte?

Antonio Delfim Netto - No início da disputa, só havia um grupo disposto a concorrer, e o cartel das grandes empreiteiras se uniu em torno dele. Se não surgisse outro competidor, esse consórcio venceria o leilão, pelo preço máximo.

O senador Delcídio do Amaral [PT-MS], que era líder do governo no Congresso, me estimulou a montar um segundo grupo para o leilão. Fizemos isso rapidamente, com pequenas empreiteiras e também uma grande construtora, a Mendes Júnior, que coordenara a obra de Itaipu.

Por que o governo petista escolheu o sr. para essa tarefa?

Eu tinha décadas de experiência. E tinha credibilidade. Acompanho os esforços para construir Belo Monte desde 1982, quando estava no governo militar. Sempre achei que era um projeto maravilhoso.

Houve algum favorecimento?

De acordo com as regras estabelecidas para o leilão, a Eletrobras seria sócia do empreendimento, com metade do capital, em qualquer circunstância. Os dois grupos foram tratados igualmente.

Houve disputa no leilão, que foi feito na Bolsa de Valores. Nosso grupo ofereceu o melhor preço, e no fim o outro consórcio desistiu. O processo foi limpo, e tornou Belo Monte mais barata do que se não tivesse existido competição.

Quanto o sr. recebeu pela assessoria ao grupo vencedor?

Não foram R$ 15 milhões como [os delatores] estão dizendo. Recebi uns 20% disso. Como honorários. Em várias parcelas, e de várias fontes.

Investigadores da Lava Jato classificam como propina os pagamentos que o sr. recebeu.

Recebi honorários por serviços prestados. O resultado do leilão é prova material dos meus serviços. Tenho convicção de que a Justiça reconhecerá isso no fim do processo.

O sr. participou das negociações com as empreiteiras contratadas para executar a obra?

Terminado o leilão, nunca mais pus a mão em nada. Não tem email meu, não tem telefonema meu para ninguém. Não tem coisa nenhuma.

O cartel, que tinha muita força, inventou essas teorias de que o consórcio vencedor não tinha condições de realizar a obra e pressionou o governo. Aí juntaram tudo, mas não tive nada a ver com isso.

Segundo os delatores da Andrade Gutierrez e da Odebrecht, o governo pediu que as empresas fizessem pagamentos ao PT, ao PMDB e ao sr.

É tudo conversa. Pagaram um pedacinho, que estamos discutindo [na Justiça]. E declararam coisas que não pagaram. A coisa foi feita lá em cima, na Eletrobras. Eu não participei. Misturaram o meu negócio com o dos partidos.

O sr. cultiva relações com essas empreiteiras desde o regime militar. Não tiveram mesmo contato após o leilão?

Não. Estava competindo com elas. Mas essas empresas são parte importante da economia. Se você achar que se comportam sempre de forma corrupta, não constrói nada.

O cartel, na verdade, sempre esmagou as empreiteiras menores. As pequenas tinham competência para fazer a obra, mas não tinham como competir. Belo Monte criou uma oportunidade para que surgissem novas empresas.

Em seu depoimento à PF no ano passado, o sr. disse que sempre deu consultoria às grandes empreiteiras. Qual a natureza dos seus serviços?

Sou consultor. Não preciso de prova material, ainda que eu tenha. É o telefone. Acontece uma coisa qualquer na economia, no mundo, as pessoas me consultam: "O que você acha que vai acontecer? Como nós devemos reagir?" Aí eu dou a minha opinião.

Como o sr. avalia o impacto da Lava Jato, quatro anos depois do início das investigações?

O país nunca mais será igual. A Lava Jato desmontou o incesto que havia entre um governo que aparelhou tudo e o setor privado. Levaram isso tão longe que tinham controle não só do governo, mas do Legislativo. Nunca se pôs tão em risco a democracia.

O problema não existia antes?

Nunca existiu uma combinação como essa. No regime militar, não tinha condição.

Como não?

Porque não. Não existia o cartel de hoje. As concorrências eram de fato concorrências.

Militares o acusaram de receber comissões como intermediário de negócios na época em que foi embaixador em Paris. O sr. vê paralelo com as acusações que sofre agora?

Eram imbecis. O próprio SNI [Serviço Nacional de Informações] desmontou isso. Nunca existiu nada. Senão, como é que o [presidente João] Figueiredo ia me convidar [para o ministério] depois? E ele tinha sido chefe do SNI.

O sr. acha que a maneira como grandes empresas se relacionam com o governo vai mudar, ou tudo voltará a ser como antes quando a poeira baixar?

Nunca mais você conseguirá montar algo assim. Nunca mais você vai aparelhar o governo como no passado. Nunca mais você vai constituir um Congresso sob controle das empreiteiras e dos bancos.

O veto da legislação eleitoral a doações do setor privado tornou isso impossível. Eles vão poder defender seus interesses? Legitimamente, disputando no Congresso, tentando convencer os deputados. É absolutamente legítimo. É assim no mundo inteiro. O que não é legítimo é comprar.

Apesar do rigor das punições aplicadas pela Lava Jato, empresários e políticos foram flagrados praticando crimes após o início da investigação.

Você não vai inibir nunca a propensão para corrupção que há no homem. Mas você desmontou o sistema que tornava possível o tipo de corrupção que estamos enfrentando.

Na eleição, provavelmente teremos taxa de 60% de renovação na Câmara. Os que serão reeleitos não terão financiamento privado. E os novos chegarão sem nunca ter sido eleitos com doações. Teremos um Congresso mais independente do poder econômico.

Não é otimismo demais, se as máquinas partidárias controlam os recursos públicos disponíveis para a campanha?

Os 40% dinásticos, filhos, netos, etc., isso volta [para a Câmara]. Eles estão controlando. Mas 60% vão entrar sabendo que não tiveram financiamento nenhum do setor privado e não têm nenhuma obrigação com ele. Eles serão muito mais independentes.

Os empreiteiros que se tornaram delatores e colaboram com a Lava Jato são confiáveis?

O delator coloca em primeiro lugar o seu interesse. A qualidade da delação depende do prêmio que se oferece a ele.

As empreiteiras dizem que farão tudo diferente daqui para frente. Dá para acreditar?

Tanto quanto dava para confiar quando você se confessava com o padre e mentia para ele. Isso é uma confissão religiosa, de boas intenções. A prova, só o tempo vai dar.

Como viu a prisão de Lula?

Com naturalidade. Só tem um caminho para o Brasil. Obedecer a lei. Não adianta querer discutir se é justo, ou injusto. Foi seguido o caminho legal, com suas consequências. Isso mostra que, a despeito de toda essa confusão, existe um núcleo institucional que está funcionando.

Acha que a condenação de Lula no caso do tríplex foi justa?

Desculpe, a pergunta é absurda. Tem que perguntar para o juiz. Dou a minha preferência: não gostaria de vê-lo preso. Mas acabou. Só quem viu os autos e é juiz pode dizer.

Houve uma sucessão de condenações, e não há como dizer que foram puramente políticas. O respeito à Justiça é a única salvação da sociedade civilizada. E ele está apelando, dentro do seu direito.

Qual será o impacto político?

Lula terá importância na eleição presidencial. Ele é mais forte preso do que solto.

Acha que as pessoas vão reagir à prisão, buscar outros nomes, ou ficar indiferentes?

O grupo que hoje apoia Lula, aqueles cujo estômago está sentindo saudade do seu governo, vai votar induzido por ele. Não sei quem ele vai apoiar, mas é uma ilusão imaginar que Lula desapareceu.

Qual será o efeito da recuperação da economia, que parece mais lenta do que se previa?

Será muito difícil fazer alguma coisa até o fim deste governo. A eleição já chegou. Está tudo condicionado a quem será o próximo presidente. Será uma eleição em que um sujeito com 16% vai para o segundo turno. Depois, seja lá o que Deus quiser.

Acha que a eleição criará condições para que o próximo governo promova as reformas que o atual não conseguiu?

Você terá uma nova Câmara, com novos interesses. Pelo menos no início, ela terá grande interesse em cooperar com o Poder Executivo para arrumar as coisas. Se não acontecer isso, não tenha dúvida, o próximo presidente vai ser outro impichado, por descumprimento da Constituição.

É uma ilusão pensar que esse negócio vai durar se não resolvermos o problema da Previdência. Por bem ou por mal. Ou com uma hiperinflação, ou deixando de pagar a Previdência. É uma questão de aritmética, não de opinião.

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