Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Mais que um jornal, sempre perecível, lega um projeto

A timidez não inibiu Otavio Frias Filho a tomada de decisões ousadas em momentos cruciais

Clóvis Rossi
São Paulo

A grande obra legada por Otavio Frias de Oliveira Filho não é esta Folha que você está lendo, na sua edição impressa ou na digital.

É algo mais amplo e mais permanente: um projeto editorial que eu adotaria sem pensar duas vezes, se tivesse competência e recursos para montar um jornal. A proposta de jornalismo crítico, apartidário, independente e pluralista é um marco no jornalismo brasileiro.

Otavio consolidou-a no Manual da Redação, o primeiro deles lançado em 1984, mas os princípios do projeto já impregnavam o trabalho dos jornalistas da Folha desde que comecei a trabalhar no jornal, em 1980.

O primeiro Manual, aliás, não foi bem recebido por parte significativa da Redação. Um grupo grande redigiu até um documento, que eu também assinei, apontando o que considerávamos problemas nas regras. O principal deles: parecia uma camisa de força.

Mas a tempestade não durou muito. As regras foram mantidas tal como originalmente expostas e consolidaram o jornal.

Minha primeira experiência concreta com o espírito de independência do Projeto Folha veio já na primeira pauta de que me incumbiram, assim que voltei, no finalzinho de 1983, do período como correspondente em Buenos Aires.

Deveria traçar um perfil de José Serra, que estava saindo do governo de Franco Montoro para trabalhar no que seria a campanha presidencial (indireta) de Tancredo Neves.

Fiquei assustado: como é que se pode fazer jornalismo crítico em relação a alguém, como Serra, que havia sido editorialista do jornal, trabalhava no andar da diretoria e tinha excelente relação com o publisher, Octavio Frias de Oliveira, o pai de Otavio?

Para complicar mais, as fontes que apontavam defeitos em Serra pediam que o nome não fosse mencionado. O próprio Serra só fez um pedido: que eu não dissesse que ele era chamado de “Delfim Netto do PMDB [o seu partido à época]”.

Comuniquei o pedido aos editores, o que não impediu que Otavio mandasse encaixar no texto um quadrinho à parte em que o jornal dizia que Serra era considerado o Delfim Netto do PMDB.

Pensei: se é possível desagradar a um político que é amigo do dono, é possível fazer jornalismo crítico com todos. De fato, foi o que fez com todos os governantes a Folha de Otavio, como a do pai, antes.

Quando, em 1987, morreu Cláudio Abramo, um dos grandes ícones do jornalismo brasileiro e que ajudara o pai e o filho a montar a Folha líder de mercado, os dois me convocaram à sala do pai para me convidarem a substitui-lo como colunista da página A2.

Garantiram que eu teria total independência para escrever o que quisesse, sobre quem quisesse. Cumpriram.

 

Nos muitos anos que se seguiram, critiquei duramente os presidentes José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, sem ter jamais recebido qualquer pedido para baixar o tom, mudar de assunto, elogiar alguém (Itamar Franco escapou porque ficou pouco tempo).

Uma única coluna foi censurada —e por motivos estéticos. Eu ironizava a decisão do Banco Central de instalar música ambiente nos banheiros, com um texto imaginando situações com músicas e necessidades fisiológicas.

Otavio achou que o texto invadia o terreno da escatologia.

Como não conseguiu me achar para fazer as alterações necessárias (não havia celular à época e eu estava jantando com o cônsul japonês na casa dele), mandou substituir a coluna. É um detalhe que revela outra característica do trabalho dele: a preocupação com a qualidade dos textos.

Não por acaso, sua grande paixão foi o teatro, que exige textos aprimorados, e a literatura. Tanto que, enquanto se tratava do câncer que o matou, todo seu foco estava em escrever um novo livro. Contou a amigos que seria sobre a vida e a personalidade do pai —tema certamente fascinante porque os dois são diametralmente opostos.

O pai era um vulcão sempre pronto a explodir, extrovertido a mais não poder. Otavio, ao contrário, era tímido e reservado.

Mas a timidez não inibia a tomada de decisões ousadas em momentos cruciais. Do meu ponto da vista, o momento em que ele revelou a fibra de editor de primeira linha foi na noite da apuração do pleito de 1989.

As pesquisas de boca de urna deixavam claro que Fernando Collor de Mello ficaria em primeiro lugar, mas havia empate técnico entre Luiz Inácio Lula da Silva e Leonel Brizola.

Otavio convocou uma reunião atrás da outra, para decidir como seria a manchete do dia seguinte. Já no limite do prazo para o fechamento, bateu o martelo, a partir de considerações de Antonio Manuel Teixeira Mendes, então responsável pelo Datafolha: seria Collor x Lula.

Decisão arriscada, mas que se comprovou acertada. Em emails recentes que trocamos, ele confessou que, como eu, passara alguns dias angustiado porque as primeiras apurações ainda punham Brizola no segundo turno.

Editar um jornal impõe correr riscos e, por extensão, angustiar-se eventualmente. Otavio Frias de Oliveira Filho correu-os desde muito jovem. Sorte da Folha.

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