Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Otavio Frias Filho: A fantástica fábrica do capitalismo

Texto publicado originalmente em 9 de outubro de 2005

Otavio Frias Filho

O texto 'A Fantástica Fábrica do Capitalismo' foi publicado originalmente em 9 de outubro de 2005, no antigo caderno Mais!. 

 

Fábula "pedagógica" adaptada duas vezes para o cinema revela, como num ato falho, certa teoria benevolente com as engrenagens da sociedade capitalista e reveladora do mundo moderno, moderado e conformista 

Da mesma forma que a literatura religiosa não pode escapar de suas intenções edificantes, a literatura para crianças está fadada aos propósitos pedagógicos. Eles podem estar dissimulados de forma habilidosa e até complexa, mas estão sempre ali. O livro "A Fantástica Fábrica de Chocolate", do galês Roald Dahl (1916-1990), oferece à primeira vista um exemplo de pedagogia mal camuflada, com sua estrutura um tanto óbvia de recompensas e punições. Publicado em 1964, o livrinho teve brilhante carreira cinematográfica. Depois da psicodélica versão estrelada por Gene Wilder em 1971 e do espetaculoso filme de Tim Burton em cartaz, não será exagero incluir "A Fantástica Fábrica de Chocolate" entre os mitos pop da nossa época.

Cena da segunda versão de "A Fantástica Fábrica de Chocolate" para o cinema, dirigida por Tim Burton
Cena da segunda versão de "A Fantástica Fábrica de Chocolate" para o cinema, dirigida por Tim Burton - Divulgação

Na história, as quatro crianças que dividem com Charlie a oportunidade dourada de visitar a Fábrica sucumbem, uma a uma, abatidas pelas próprias fraquezas: Augustus é guloso, Veroca é mimada, Violeta tem obsessão por chiclete e Miguel por TV (jogos eletrônicos, na versão de Tim Burton). Por meio dos dois primeiros, o autor impõe entraves à onipotência infantil. Nos dois últimos personagens, ao contrário, ele condena o interesse fetichista numa coisa só, pois a criança deve se entregar com moderação e variedade à experiência do mundo. Tal como faz Charlie, o herói altruísta do livro, que tem sorte em retribuição a seu desempenho irrepreensível nos quesitos filho e neto, que apesar de amar o chocolate mais do que ninguém está pronto a dividir sua barra com a família paupérrima. Nada mais apropriado, nada mais conforme à pedagogia.

O livro foi concebido como fábula extravagante, a começar pelas esquisitices de Willy Wonka, o suspeitíssimo mago do chocolate. O enredo insosso vem envelopado no papel brilhante das maravilhas visuais da Fábrica, que cada filme mostrou na medida da tecnologia disponível no momento. Mesmo assim, há aspectos insólitos, para não dizer perturbadores, nessa história. O primeiro deles são os umpa-lumpas, achado que desperta o entusiasmo das crianças, sempre deliciadas diante da possibilidade de adultos fisicamente menores do que elas. Sabemos que os umpa-lumpas são um povo pigmeu e tropical, adorador do chocolate, que Willy Wonka teve a idéia de traficar em massa a fim de poder dispensar a mão de obra branca, dada a espionagens industriais (e a salários maiores, presume-se, do que algumas sementes de cacau). Foi assim que a família de Charlie, aliás, caiu na miséria.

Quem são esses umpa-lumpas? Eles poderiam ser os maias, civilização que prosperou na América Central entre os séculos 3º e 9º, considerados os inventores do chocolate, que ingeriam misturado a sumo de milho e pimenta em pó. O hábito se estendeu aos astecas, quando esse povo dominou o que seria o coração do México, e foi absorvido pelo conquistador espanhol, que passou a adicionar açúcar à infusão de chocolate (acrescentar leite foi hábito mais tardio, europeu). Instrutivo, mas em nada diminui nosso mal-estar perante a brutal "racionalização" do trabalho operada por Wonka, esse inovador, emérito representante da linhagem dos tecnólogos capitalistas à maneira de Thomas Edison e Henry Ford -ou Milton S. Hershey (1857-1945), o magnata do chocolate industrializado na vida real.

Ato falho

Será possível que nosso autor tenha deixado escapar, nas entrelinhas de sua história para crianças, todo um resíduo teórico sobre o capitalismo em sua fase imperialista, o "desenvolvimento desigual e combinado", a quebra dos sindicatos e a migração da indústria para países de mão-de-obra barata? Num tempo politicamente incorreto (1964), será crível que esse conteúdo tenha sido contrabandeado de forma impensada, automática, pelo escritor ingênuo, mas antenado? Não temos como saber. Mas sabemos que um texto diz coisas que seu autor não imaginou dizer. E não deixa de chamar a atenção que Roald Dahl tenha trabalhado para a Shell na Tanzânia, antes de se destacar como piloto da RAF [Força Aérea Britânica] na Segunda Guerra. O conformismo de sua fábula fica aquém e além das belas intenções: por trás do elogio da disciplina moral desponta o proselitismo de outra disciplina, a fabril. O chocolate é o petróleo.

Lendo o livro, revendo os filmes, a tentação é comparar Roald Dahl a uma dessas pessoas que cometem atos falhos tão logo se põem a falar. Mensagens embaraçosas teimam em romper a superfície bem comportada da narrativa. Veja-se, por exemplo, o caráter sexual subjacente ao concurso infantil concebido por Wonka, que em outras circunstâncias responderia por aliciamento e assédio de menores. Tão indisfarçável é esse traço sexual que o espectador não falha em reconhecer o espectro de Michael Jackson em Willy Wonka.

E não adianta Tim Burton e o ator Johnny Depp negarem qualquer semelhança, como fizeram em declarações iradas, pois foram eles próprios os primeiros a ser arrastados pelo magnetismo da comparação.

Wonka pedófilo, além de escravagista e chocólatra? São onipresentes os indícios de que ele troca, à sua maneira, "travessuras por gostosuras". Seu desprezo pelos pais das crianças, dos quais tenta se livrar a todo tempo; a concupiscência com que apresenta cada iguaria da Fábrica a seus incautos amiguinhos; seu desígnio de encontrar uma criança que lhe seja de uma obediência a toda prova; sua insistência para que Charlie abandone os pais e venha morar com ele; sua fixação mesma na infância (que Tim Burton pretendeu explicar com uma metáfora odontológica, espécie de trauma da fase oral). A esses ingredientes devemos acrescentar a aura sexual que sempre cercou o chocolate, bebida estimulante, "alimento dos deuses" (como diz seu nome científico, Theobroma cacao, conferido pelo próprio Lineu, um apreciador), reservatório calórico ao qual se atribuíam, na Europa dos séculos 17 e 18, propriedades afrodisíacas.
Se for sexo, porém, é sexo mercantilizado, como tudo mais nessa epopéia didática do capitalismo para crianças. A tensão sexual se dissolve na transferência da propriedade de Wonka para seu herdeiro escolhido a dedo e na reconciliação decorosa entre capital e afeto, quando o casebre da família de Charlie é deslocado de sua pobreza dickensiana para os jardins achocolatados da Fábrica. Dentro e fora, os valores são mediados pela moeda uniforme do chocolate, que maias e astecas de fato empregavam como meio de troca, assim como na gíria popular se usa chamar o dinheiro de "cacau".
 

Naturalidade da engrenagem

Roald Dahl emerge destas extrapolações como sociólogo intuitivo, embora distraído. Seu livro preconiza certa moderação da personalidade, necessária para a criança entender que o outro existe, gosta de chocolate tanto quanto ela etc. Preconiza também uma moderação corporal, pois até mesmo o chocolate deve ser consumido sem exagero para ser consumido sempre (vide o destino de Augustus Glup). Como pano de fundo "neutro" dessas lições de bom senso, nada menos do que o funcionamento encantado do capitalismo e suas verdadeiras maravilhas: a linha de montagem, a concorrência predatória, o desemprego cíclico, a incitação do consumo supérfluo e sobretudo a aceitação dessa engrenagem como simplesmente natural.

Cética, com razão, quanto aos sonhos de reformar a sociedade, nossa época acolhe o conformismo dessas mensagens de muito bom grado. Mas há uma afinidade adicional. É que esse mesmo capitalismo multiplicou a duração da vida humana. Foi o salto da longevidade média no século passado que disseminou a adoção de comportamentos tão moderados em tão larga escala. Não estamos mais dispostos a ir à guerra (ou à revolução), nem mesmo a correr os riscos de uma vida sedentária, nem a nos expor à radiação solar ou consumir açúcar, colesterol, nicotina, cafeína, agrotóxicos e uma infinidade de outras substâncias, porque esse é o cálculo a que somos compelidos pela expectativa de vida longa. Época pouco heróica, portanto, como intuiu Roald Dahl ao criar seu herói cuja ambição se limitava a consumir tanto chocolate quanto possível, desde que isso não prejudicasse os outros nem ele mesmo.
 

Otavio Frias Filho
Otavio Frias Filho

Diretor de Redação

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