Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Otavio Frias Filho: Carismáticos e cia.

Texto publicado originalmente em 9 de abril de 1998

O texto 'Carismáticos e cia.' foi publicado originalmente em 9 de abril de 1998 na seção Opinião da Folha.

A origem das duas seitas religiosas de maior sucesso atualmente —a Igreja Universal e o ramo carismático da Igreja Católica— é a mesma, os Estados Unidos. Coração material do mundo, nada mais normal que os Estados Unidos passem a ser também a sede do espírito, ainda mais quando a religião se monetariza.

Dizem que o protestantismo favorece a acumulação de bens, que Max Weber teria provado que o capitalismo depende de alguma disciplina calvinista como requisito. Mas a relação entre as duas coisas, entre economia e cultura, sempre é, como insistia o próprio Weber, mais complexa, simultânea e tortuosa do que parece.

No protestantismo clássico, a austeridade é uma virtude e a riqueza um sinal da graça divina. Conjugadas, as duas idéias favorecem os negócios, mas de maneira lenta e indireta, mediada pela vivência religiosa. A principal mudança introduzida pela indústria neoprotestante dos nossos dias foi encurtar essa distância.

Homens vestidos de branco em bancos de igreja
Batismo coletivo em igreja em São Paulo - Lalo de Almeida/Folhapress

Num mundo cada vez mais "desencantado", pragmático, a nova religião estabelece ligação direta entre a fé e suas recompensas, convocadas para hoje, para já. Estamos certos ao pensar que se trata de religião materialista; no fundo, é somente por inércia que continuamos a chamá-la de religião em vez de técnica de auto-ajuda.

No entanto, nada menos materialista do que transes, possessões, exorcismos etc. Todo pragmatismo tem de aspirar à racionalidade, mas o que há de racional na volta ao gigantesco baú de badulaques e mandingas do passado, cornetas de papel dourado na Igreja Universal, balangandãs ultracatólicos entre os carismáticos?

Reportagem na revista "Veja" mostrou como a mentalidade do toma-lá-dá-cá se instalou entre os carismáticos, que pareciam cristãos de catacumba até poucos anos atrás. Como conciliar materialismo e superstição, como explicar que as novas seitas estejam preenchendo o suposto vazio de espiritualidade da Igreja "progressista"?

A ciência destruiu parte das nossas crenças e modelou as restantes à sua própria imagem: quase ninguém mais acredita num velhinho barbudo e bondoso em disputa contra seu ex-discípulo de chifres, mas ainda é perfeitamente possível acreditar numa força superior, numa forma de energia semelhante aos raios gama.

De um lado, a ciência reduz a religião ao nível da natureza; de outro, a vida cotidiana foi absorvida inteiramente na esfera das trocas. O resultado dessa combinatória é uma desconcertante regressão ao estágio animista, o modelo de religião de nossos antepassados pré-monoteístas e dos atuais povos da floresta.

Menos do que num Deus a quem prestar contas no fim da contabilidade moral, a religião volta a se concentrar (na verdade, a se diluir) num pequeno comércio com a divindade outra vez presente no dia-a-dia. Materiais e espirituais ao mesmo tempo, os velhos deuses baixam à terra e são recebidos com estrondo.

Otavio Frias Filho
Otavio Frias Filho

Diretor de Redação

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