Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Otavio Frias Filho: Carta aberta ao sr. presidente da República

Texto publicado originalmente em 25 de abril de 1991

O texto 'Carta aberta ao sr. presidente da República' foi publicado originalmente em 25 de abril de 1991, no caderno especial sobre os 80 anos da Folha.

Como chefe do atual governo, o sr. tem conclamado ao entendimento nacional. Anteriormente sua visão era a de que o entendimento já ocorrera na eleição em que a sua candidatura derrotou as "elites", termo pelo qual o sr. designa as instituições organizadas da sociedade brasileira. Depois de empobrecer a população, vender a fantasia de que os problemas nacionais seriam solucionados num passe de mágica, violar a Constituição, humilhar o Congresso, jogar o país numa recessão profunda e, naturalmente, fracassar, desde logo à luz das expectativas delirantes então criadas, o sr. resolveu vestir a pele de cordeiro e recorre agora ao entendimento nacional. Esse entendimento é o outro nome da impotência a que o sr. chegou decorrido apenas um quinto de seu mandato.

O acordo que o sr. vislumbra, entretanto, parece ainda resumir-se à submissão aos caprichos do governante. O sr. não assimilou até agora os rudimentos da noção de cidadania. A boa-vontade da sociedade brasileira em face das promessas que o sr. formulou sem poder cumprir tem sido enorme, quase inacreditável, e o sr. se mal-acostumou a ela, mas não é incondicional nem inesgotável. Depois de vinte anos de uma ditadura que se dizia feita em nome de ideais democráticos —essa foi, aliás, a sua escola— não creio que a opinião pública esteja inclinada a tolerar uma democracia de fachada.

Apesar do empenho inegável que o sr. dedica à tarefa de desmantelar os partidos, abater as entidades empresariais e os sindicatos, sufocar as organizações culturais e intimidar a imprensa, prevalecendo-se da desordem ideológica da nossa época, açambarcando a torto e a direito bandeiras que vão do moralismo mais tacanho à ecologia, inspirando-se em estereótipos aqui do fascismo, acolá da social-democracia, mas lançando sempre uma névoa cintilante de confusão sobre a sociedade —apesar disso tudo o sr. é obrigado a ouvir vozes capazes de dizer não. São cada vez mais numerosas. A população pobre e desinformada ainda se deixa desconcertar pela voracidade com que o sr. manipula os símbolos da pressa, do poder e da riqueza. Onde a informação circula livremente, as reações entretanto oscilam entre a ironia e a repulsa pela truculência, pela afoiteza e pelo arrivismo patético com que são conduzidas atitudes de governo.

O sr. está processando a mim e a três companheiros jornalistas da Folha. Muito bem, é seu direito. Mas esse processo é apenas —o sr. sabe tão bem quanto eu— a ponta visível de um iceberg de ataques, discriminações, ameaças e violência contra esse jornal. Sei da ansiedade, formidável numa pessoa com tantos problemas graves e reais a enfrentar, com que o sr. interpela seus auxiliares todos os dias a respeito do andamento do processo contra a Folha. Sei que o sr. voltou todo o aparelho do Estado contra este jornal em que parece identificar um perigoso paradigma de independência a ser punida, de altivez a ser exemplada, de vigilância a ser reprimida.

Estou sendo duro, franco e leal em relação ao sr. Talvez seja útil para o país que alguém lhe diga em público e em voz alta as coisas que se comentam às suas costas. A Folha porém apoiou as linhas gerais da campanha que o sr. propôs contra a inflação. Sustenta idéias congruentes com as suas no que se refere à privatização, à redução da máquina do Estado, à luta contra as desigualdades sociais e regionais, à modernização tecnológica, ao combate contra a economia de cartório e à integração do Brasil no quadros do mercado internacional. Por incrível que pareça, do ponto de vista programático há mais convergência do que divergência entre as posições do jornal e aquelas que o sr. vem pregando.

O problema é o abismo que se abre entre o que o sr. diz e o que o seu governo faz, entre o liberalismo da retórica e a selvageria da ação, entre o privatismo confesso e o intervencionismo que é praticado, entre a aura frenética de primeiro-mundismo e o costume arraigado do coronelismo interiorano, entre o Ocidente e Miami. Confesso que como cidadão brasileiro estou farto de suas tentativas de iludir, desorganizar e tutelar a sociedade. Como eu, muitos já não se acham dispostos a transigir com a insegurança do seu governo, com as arbitrariedades que despencam umas sobre as outras, às vezes umas contra as outras, com os pacotes, os confiscos, as mentiras e o exibicionismo vulgar que contamina a administração como um todo.

Que o sr. esqueça o processo contra meus três colegas e concentre seus rancores na minha pessoa, já que deseja atingir a Folha como instituição. Tenho sido às vezes aconselhado a deslocar nossa linha editorial para o campo da oposição pura e simples a seu governo. Por mais que o sr. me force a isso, resisto a esse impulso que desvirtuaria o jornalismo que vimos procurando fazer antes mesmo que o sr. sonhasse em galgar a Presidência. Penso que a função da imprensa é apartidária e crítica de um modo geral. Não se trata de apoiar ou de se opor a governos. Infelizmente o sr. não demonstra aptidão nem discernimento intelectual para conviver com a diferença de pontos de vista, com o conflito de idéias e versões, com o curso desimpedido das informações, com a respiração política que somente a imprensa livre é capaz de assegurar. O sr. exige aplauso irrestrito e capitulação. Devo dizer que quanto mais o sr. persegue este jornal maior é o ânimo que vejo nos olhos dos jornalistas —e não apenas da Folha.

Processe-me pelo que de fato penso e afirmo em vez de se esconder sob o pretexto de duas notas inócuas, perdidas sem assinatura numa edição publicada, aliás, quando eu estava ausente, em licença profissional. A Folha já disse e repetiu que não houve calúnia ou intenção de caluniar seja o sr., seja qualquer membro de seu governo. Soa falso, além disso, que fale em ofensa alguém que sem apresentar até hoje uma única prova acusou o presidente Sarney de corrupção e utilizou contra o atual governador do Rio de Janeiro palavras irrepetíveis. Na Realidade, não é com reparações a sua imagem supostamente ofendida que o sr. se preocupa no caso. Se fosse assim, teria tomado providências contra outros três jornais que publicaram as mesmas notas. Na véspera de sua publicação na Folha, um jornal do Rio divulgou informações de tipo idêntico e o sr. não moveu uma palha. Se a alegação de ofensa fosse séria, o diário de propriedade de sua família não teria adquirido, pouco depois da publicação de duas notas, os direitos de republicação da mesma coluna da Folha onde elas haviam sido estampadas.

Não deixa de ser curioso que esteja sendo levada a julgamento, sob o silêncio acovardado e interesseiro de quase toda a mídia, a única publicação brasileira que mantém uma seção diária de retificações e que remunera um de seus profissionais pela exclusiva missão de criticar pública e asperamente as suas próprias edições. Este jornal nunca pediu um favor sequer a seu governo e nunca cedeu à necessidade quase psicológica que o sr. tem de silenciá-lo. Lamento concluir que a Folha está sob julgamento não por seus defeitos, que são muitos, mas por suas virtudes —o que me orgulha. O que está em jogo é saber se é possível existir um jornal como este num país como o nosso. O que está em jogo é decidir se daqui por diante a nação contará com uma imprensa intrépida ou temerosa, livre ou subjugada.

Vejamos. Eu estou na planície, o sr. está encastelado; eu me sinto cercado de amigos e amigas que nada me devem; a seu redor se vêem áulicos da cor da cera; eu luto pela minha liberdade, o sr. por uma vaidade ferida; e no entanto minhas razões são públicas e de interesse geral, ao passo que as suas é que são particulares, sombrias como a própria solidão; eu defendo para cada um a possibilidade de expressar o que pensa sem ir para a cadeia por isso, enquanto o sr. se agarra à lei de imprensa do regime militar; eu procuro alcançar o exemplo dos grandes jornalistas do passado, o sr. desce à mesquinharia dos tiranetes; eu advogo um direito, o sr. uma obrigação de vassalagem; uma condenação lançará vergonha sobre o sr. e honra sobre mim; seu governo será tragado pelo turbilhão do tempo até que dele só reste uma pálida reminiscência, mas este jornal —desde que cultive seu compromisso com o direito dos leitores à verdade— continuará em pé: até mesmo o sr. é capaz de compreender por que a minha causa é maior e mais forte e mais justa que a sua.

Otavio Frias Filho
Otavio Frias Filho

Diretor de Redação

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