Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Otavio Frias Filho: Para (não) entender Kafka

Texto publicado originalmente em 4 de março de 1999

Otavio Frias Filho

O texto ' Para (não) entender Kafka' foi publicado originalmente na seção Opinião no dia 4 de março de 1999 .

 

O adjetivo "kafkiano" costuma ser empregado para qualificar qualquer situação absurda, especialmente quando ela ocorre em meio a labirintos burocráticos. Mas o estilo de Franz Kafka (1883-1924), considerado um dos três maiores escritores do século que termina, nada tem de "absurdo" ou delirante, muito ao contrário.

Diferente de James Joyce e outros criadores da literatura moderna, Kafka não fez experiências inovadoras com a linguagem. Sua prosa é estritamente descritiva, neutra, relatorial. Uma criança pode compreender o que Kafka está contando. O que é difícil —talvez impossível— entender é o porquê de ele estar contando aquilo.

Otto Maria Carpeaux, o crítico austríaco emigrado para o Rio, participou de saraus em que Kafka, um desconhecido tratado com desdém, lia seus escritos. Segundo Carpeaux, Kafka não parava de rir enquanto lia, tão cômicas achava suas histórias. Ao morrer, mandou em vão que sua obra, quase toda inédita, fosse destruída.

O escritor Franz Kafka
O escritor Franz Kafka - Reprodução

​O que Kafka pretendia dizer permanece um enigma. O leitor pode conferir o método de Kafka no primeiro capítulo de seu principal romance, "O Castelo", que o caderno Mais! publicou domingo, em tradução de Modesto Carone, romancista também ele, e provavelmente quem melhor conhece o escritor tcheco entre nós.

A atmosfera sempre tem algo de onírico. Tudo começa de maneira "normal", prosaica até, mas aos poucos nos damos conta de que coisas levemente estranhas deformam essa normalidade. Logo o protagonista sofre alguma agressão descabida, a que ele reage de forma também "normal": protesta, recusa-se a fazer o que lhe mandam etc.

Mas as agressões retornam, o personagem acaba por se acostumar com elas. É raro que ocorra algo absurdo (como a conversão de Gregor Samsa num inseto, pela qual começa "A Metamorfose") ou desconcertante. A narrativa prossegue, sóbria e empertigada, até dar num beco sem saída ou se esfumar num final que não conclui nada.

Em face de um escritor ao mesmo tempo tão claro e tão incompreensível, a tentação sempre foi a de acreditar que ele falava por meio de metáforas. Kafka, assim como Freud, é produto do judaísmo radicado em língua alemã, e já se disse que a rede totalitária que sufoca seus personagens seria nada menos que Deus.

Outros críticos especularam que ela seria a alienação impessoal da vida moderna, a burocracia do Império Austro-Húngaro ou ainda a dominação paralisante que o velho Kafka, comerciante como o pai de Freud, exercia sobre ele. Tais explicações, além de pouco convincentes, apequenam uma obra que teima em rechaçá-las.

O "sentido" da obra de Kafka está na experiência incomunicável de lê-la. Ela encerra um ciclo gigantesco iniciado, ao menos no Ocidente, por Homero, como se não houvesse nada mais para ser contado e as narrativas passassem a girar no vazio. Kafka foi o último escritor; depois dele a literatura se tornou outra coisa.

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