Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Otavio Frias Filho: Vampiros de papel

Texto publicado originalmente em 5 de agosto de 1984

O texto 'Vampiros de papel' foi publicado originalmente em 5 de agosto de 1984, no antigo caderno Folhetim.

Estendido diante dos olhos do leitor, o texto jornalístico é um contrato entre cúmplices

De repente ficou difícil continuar sustentando que a imprensa atende os interesses da ditadura desde logo porque ficou difícil sustentar que existe, neste momento, uma ditadura no país. A característica talvez mais notável da atual transição brasileira –a exemplo das transições análogas que tivemos no passado– é que os interesses representados pela ditadura, conforme ela se desorganiza, encontram outras formas de expressão e voltam a trafegar pelo leito do jogo democrático sob condições privilegiadas em relação aos demais interesses que batalham para abrir espaço nesse mesmo jogo. Mas uma vez, depois de democratizar o Brasil restará democratizar a democracia.

Para a imprensa, a consequência imediata é que ela retorna ao centro do conflito entre os grupos sociais, ao fogo cruzado da sociedade civil onde ninguém fala por todos (prerrogativa reservada às ditaduras) mas, pelo contrário, cada um fala tão-somente por si. E se na época da ditadura a fala da imprensa era a da subordinação ou da resistência inócua, quase maravilhados os críticos descobrem, agora, que a sua nova fala é a fala do mercado. Se um jornal descola do conjunto dos demais e se antecipa, é por marketing; se um outro adere tardiamente, também. Eis o mais recente abracadabra, capaz de explicar efeitos opostos com recurso a uma mesma causa. A generalidade do procedimento crítico já nos faz suspeitar de que se trata menos de uma explicação do que de uma acusação. Acusar explicando e explicar acusando é uma tradição da crítica política moderna mas nesse terreno há uma tradição bem mais antiga: valem todos os meios disponíveis. Sabe-se, por exemplo, que uma acusação atinge tanto mais precisamente o seu objetivo quanto mais vagamente ela estiver formulada.

A estratégia do mercado é sem dúvida a lógica implacável da imprensa. "Descobri-la" não constitui propriamente um ovo de Colombo, sobretudo numa sociedade em que todas as relações –até mesmo as de caráter afetivo– estão embebidas de natureza mercadológica. A finalidade deste artigo é argumentar que a estratégia está firmemente ancorada na estrutura ideológica da notícia (qualquer notícia) e na relação de solidariedade objetiva entre imprensa e público. Em outras palavras, que não é a imprensa burguesa quem institui um público sujeito à estratégia de mercado e às manipulações que dela decorrem, mas que é o caráter mercadológico da notícia quem institui, numa ponta, a imprensa burguesa, na outra o público burguês, e entre ambos uma simbiose de interesses complementares. Em vez de discutir o problema dos manipuladores (jornais e jornalistas), pretendo discutir o problema da manipulação.

Variedades de temas

Enquanto escrevo, tenho sobre a mesa a antologia “Page One” que reúne um repertório de primeiras páginas publicadas “New York Times” entre 1920 e 1980. Basta folhear o volume para que se tenha idéia da imensa variedade de temas que sucessivamente ganham destaque nessas páginas: a morte de Lênin, a eleição de Roosevelt, Hiroxima e o fim da guerra, foguetes, insurreições, Vietnã. Que inteligência confere unidade ideológica a essa diversidade? Por que motivo alguns assuntos aparecem na primeira página e outros não, por que uns aparecem com maior destaque do que outros?

Se o critério fosse o da mera propaganda ideológica, não seria fácil explicar a manchete de três linhas que noticia a execução de Sacco e Vanzetti, revelando que o “governador rejeitou os últimos apelos em seu benefício depois de um dia de manifestações legais”. Quem sabe o critério seria noticiar os fatos “sérios” capazes de alterar a vida de nações, já que se trata de um prestige-paper. Mas como explicar, nesse caso, a manchete em quatro colunas (o jornal teve oito até 1976, quando rediagramou em seis) que relata o sequestro do filho do aviador Charles Lindbergh, um bebê, em 1932? Ou que uma final de boxe, categoria peso pesado, entre um obscuro Tunney e um não menos Dempsey, merecesse manchete tripla em oito colunas?

Vestido de vampiro, ator segura no pescoço de mulher inconsciente, e a olha como se estivesse prestes a morder
Béla Lugosi como Drácula, para filme de 1931 - Divulgação

Existe um denominador comum entre esses disparates; tão-logo ele é identificado, cada coisa vai para o seu lugar e o todo reaparece em perfeita ordem. Esse denominador é a atribuição de uma curiosidade ao público.

É manchete aquilo que na sensibilidade jornalística temperada pela experiência institui essa curiosidade num movimento de excitação-saciedade-excitação. É no território capilar do rumor, da fofoca, da reles bisbilhotice entre vizinhos, que a imprensa arregimenta as energias capazes de mover máquinas, cifrões e massas. O jornal é um acelerador desses energias que ele suga de cada canto milimétrico, de cada solidão particular, de cada interstício nas paredes e sebes das vizinhanças minúsculas, para organizá-las e multiplicá-las num turbilhão de curiosidade que arrasta barreiras, arruína e faz reputações, desmancha governos. É engraçado pensar que foi a paixão de uma curiosidade furiosa quem arrancou árvores da terra, quem as transformou em pasta e depois em papel de imprensa, quem arrumou as idéias na forma de frases e estas no desenho das letras e as fez aderir à superfície clara da impressão, quem encartou as páginas e quem as atraiu desde a rotativa pelas estradas, avenidas e ruas, como um magneto, por cima do muro para dentro de casa.

Algumas manchetes sensacionalistas

Vamos focalizar ao acaso algumas manchetes sensacionalistas. Casal mata e come o próprio filhinho. Ladrão rouba carro, capota e quase mata jogador do Palmeiras. Filho da rainha chicoteado por uma mulher por uma mulher numa boate. (A legenda diz: Andrew, o herói das Malvinas, apanha de mulher). Sequestraram o noivo na hora do casamento (A linha fina diz:Marisa, a noiva, ainda espera). Bela mulher com os olhos varados a bala.

Esta última é uma pequena obra prima do gênero. Assim como os olhos da mulher em questão, a própria palavra olhos é atravessada pela manchete e serve de ponto de passagem que nos conduz às suas extremidades: bela e bala. O contraste poético e macabro estabelecido entre essas extremidades é a formulação radical de um contraste que domina toda a manchete. Sua força desaparece se eliminamos o contraste: horrível mulher com os olhos varados a bala ou bela mulher com os olhos intactos. O que constitui a manchete, e por diluição o texto jornalístico do qual ela é um condensado, é o contrastamento que ali se abre entre dois termos, o familiar e o hediondo, o rotineiro e o inesperado, o acaso e a coincidência, o público e o privado, o próximo e o distante. Pouco importa o que é contrastado, importa que haja contraste. Em cada uma das manchetes sensacionalistas acima vê-se a técnica do contrastamento em plena ação.

Que alguém sirva de alimento já é aterrador; que pais matem um filho é monstruoso; mas é contrastamento entre paternidade e canibalismo que naquela primeira manchete estarrece. Além de roubar um carro e capotar, o ladrão da segunda manchete –até aqui longínquo em função de seu comportamento delituoso e extravagante– chega de súbito às portas do meu mundinho particular, quase matando um jogador do meu time ou de do time que joga contra o meu, É justamente o filho da rainha, personagem edulcorado de contos de fada que vejo com um misto de candura e fantasia, quem se entrega no bas-fond aos prazeres escabrosos do açoite sexual. E como se para reiterar que o importante é o contraste a legenda reincide: o herói das Malvinas (departamento bravura) apanha de mulher (departamento covardia). Sequestraram o noivo exatamente quando ele não podia faltar, talvez no único instante de sua vida em que uma omissão resultaria decisiva: contraste entre presença e ausência.

Por trás do conteúdo sensacionalista (crime e sexo), por baixo de sua forma (propriamente sensacional), distinguimos a estrutura do contraste. Homem morde cachorro –famosa manchete imaginária utilizada para caricaturar o que é notícia para a imprensa – eleva-se à altura do estereótipo pelo contrastamento duplo que propicia: por um lado o que é normalmente mordido passa a morder, por outro, o que normalmente morde passa a ser mordido.

A vantagem de se examinar o jornalismo sensacionalista é que as características do jornalismo “sério” nele aparecem me toda a sua visibilidade, escancaradamente, como decorrência do estratagema expressionista que as amplia e exagera. A mesma estrutura de contraste está lá nos prestige-papers, embora dissimulada sob a elegância do estilo naturalista e sob o manto da sobriedade de propósitos. Em ambos os casos trata-se invariavelmente de contrastar dois polos (próximo e distante, secreto e devassável etc.) e ampliar ao máximo a separação entre eles. É dessa ampliação que vive a imprensa posto que a curiosidade do leitor, como de resto qualquer curiosidade, se alimenta na e da distância. O procedimento de esgarçar a notícia para exaurir suas possibilidades de contraste é o responsável pela sensação, muito comum, de que os jornais falam sempre a mesma coisa, de que dão as mesmas voltas intermináveis sobre os temas de sempre (vai faltar peixe na Semana Santa). Não obstante, tudo o que puder ser feito para insuflar o contraste ou para alargá-lo (introduzindo novos personagens, por exemplo, ou aduzindo aspectos insuspeitados no estilo revelações no caso tal!) será feito. Um dia a notícia, como uma flor, vai fenecer; os jornalistas somos como jardineiros que a mantêm em estufa para retardar a sua morte.

Ao contrário do grego famoso, atravessamos sempre e rigorosamente o mesmo rio. Em jornalismo somente o conteúdo muda, ou seja, o conteúdo do conteúdo é inalterável. Remexemos ao infinito o lixo ideológico em que se depositam os chavões (tresloucado gesto, corpo crivado de balas), os preconceitos (a multidão enraivecida, o japonês Fulano de Tal), a verdade petrificada do lugar-comum. A mãe do lugar comum é a pressa e os jornalistas têm pressa por definição. Colocamos em face do inédito o jornalismo recorre à analogia para aprisioná-lo na idéia-feita, para fixá-lo em clichês de linguagem que permitam seu rápido esgarçamento. Nada disso ocorre porque os jornais ou jornalistas sejam assim, mas porque é assim a estrutura da notícia. Ainda que o jornalismo seja uma técnica ideológica, como toda técnica ele possui uma lógica interna que ultrapassa ideologias e que se impõe a elas.

A relação de cumplicidade

Consta do mito de Drácula que o vampiro não pode entrar numa casa sem antes ter sido convidado; depois dessa primeira vez, contudo, pode entrar sempre que quiser. Este aspecto da lenda é uma metáfora sobre a relação de cumplicidade e ajuda a decompor o mito contemporâneo do marketing. Só é possível iludir quem manifesta o anseio de ser iludido, só é possível manipular quem desejou ardentemente ser manipulado (La Boétie).

O marketing jornalístico não manipula a curiosidade do público, pois lhe falta poder para tanto. Manipula, sim, a atribuição de uma curiosidade ao público e fica à espera de sua resposta, que será um convite ou uma proibição. Find a need and fill it, diz o adágio comercial americano, e é quase isso que a curiosidade pública diz todos os dias os jornais: I am a need, fill me; quero ser iludido; quero receber de manhã o vasilhame da verdade pasteurizada e engarrafada; quero satisfazer minha paixão pela fofoca, mais ou menos sublimada mas sempre fofoca; quero me colocar sob o véu diáfano da ideologia; quero que o jornal me diga o que é verdade e o que não é, o que está certo e o que está errado, porque a idéia de que não existe "verdade" nem "certo" é intolerável para mim e não consigo viver sem ela. Preciso ter certezas como preciso de um deus, cristão, muçulmano, seichonoiê. A força dos jornais é infelizmente o espelho da minha fraqueza, sou vampirizado na ideologia.

Porém exijo alguma coisa em troca. Quero ética, por exemplo, no mundo público do qual os jornais são as portas (agora sou eu-leitor o vampiro que aguarda um convite para entrar); me agrada assistir, no carrossel do noticiário, ao espetáculo estimulante da flagelação moral, aliás conveniente posto ser necessário que alguém seja culpado para que todos sejam inocentes. Não tem problema: os jornais providenciarão um escândalo por dia para que eu, como nas touradas, me deleite numa catarse de sonâmbulo. Quero que o meu jornal seja destemido; ele saberá dar a impressão de que é; quero que seja independente; é prá já, ele colocará a independência no seu dístico; quero que ele seja imparcial, ah pois não, a imparcialidade será o evangelho que ele vai pregar com toda a manha. O hábito é uma espécie de tensão entre a necessidade e a liberdade. Sintomaticamente, nós todos somos leitores de jornal por hábito.

Vai subir o preço do cigarro. A decisão é de origem pública e impessoal mas através da notícia eu-leitor a privatizo: terei que gastar mais para continuar fumando. Ao contrário, a atriz famosa que se separa do marido (para o jornalismo é sempre o mais famoso quem ocupa a voz ativa do verbo) pratica ato particular por excelência mas por intermédio dos jornais sua decisão irradia publicidade. A característica da imprensa que define sua função inevitavelmente política é o processamento dessas múltiplas mediações entre o público e o privado, em ambos os sentidos. Com o desaparecimento da distinção entre público e privado desapareceriam automaticamente os jornais.

O raciocínio acaba de nos devolver à técnica do contrastamento entre dois pólos. Com efeito, essa "lei de ferro" parece impor-se sob todos os ângulos. Vamos examinar um deles.

O prosaísmo do leitor e a improbabilidade do fato

Sabe-se que a notícia tem tanto maior interesse jornalístico quanto mais ela for improvável. Por que? Porque é de sua improbabilidade que vai resultar o apogeu da distância entre o prosaísmo do leitor e a extravagância acintosa do fato. Por isso o prestígio da coincidência é enorme no noticiário e na edição. A mola propulsora de qualquer pauta –o gancho– nada mais é que uma coincidência que se oferece ou que se forja. Coincidências são improváveis mais a rigor a função do gancho é impedir que o improvável desande em imponderável. O segredo jornalístico consiste em fazer com que uma base máxima de certeza (dada pelo gancho) seja recoberta por uma superfície de máxima incerteza (dada pela notícia). Bem se vê que a "lei" do contrastamento, irrecorrível em sua força, se desdobra e se reproduz também nesse plano.

Estendido diante dos olhos do leitor o texto jornalístico é um contrato entre cúmplices. Seu percurso é atraído pelas coincidência que o eletrizam e lhe conferem aquela voltagem que constitui sua marca registrada. O menor que assaltou fez há poucos anos o papel de assaltante num filme famoso. O ex-embaixador foi assassinado na mesma esquina onde em janeiro o jornalista alemão foi morto. Este é o quadragésimo navio atingido no golfo este ano. Há exatamente cem anos Freud nascia. O militante anticomunista foi socorrido por uma das mães da praça de Maio. Como você, Pascal era do signo de gêmeos.

A coincidência é uma grande organizadora. Não apenas o improvável faz sentido, como não existe sentido exceto na improbabilidade. A literatura, por exemplo, está carregada de sentido porque os arranjos que constrói são improváveis ou eles são improváveis, pelo contrário, porque estão repletos de sentido? De uma forma ou de outra, um mundo no qual todas as possibilidades fossem identicamente prováveis, onde nada fosse mais improvável do que qualquer outra coisa, seria um mundo infinitamente desorganizado, dissolvido sob o domínio de uma entropia lógica, se assim se pode dizer. As improbabilidades que o jornalismo explora metodicamente imprimem um sentido ao dia-a-dia dos fatos. Se há algum propósito menos frívolo naquela curiosidade que cimenta a solidariedade de interesses entre imprensa e público —essa relação de marketing— ele é a sede de sentido.

Os problemas aqui descritor são tanto mais crônicos quando se recorda que eles se prendem menos ao modo de realização da técnica jornalística, ou às condições particulares em que essa técnica pode realizar-se, do que a características que parecem constitutivas do jornalismo enquanto técnica. Nem sempre o conhecimento dos problemas é garantia de sua resolução (idéia que talvez não passe de uma fantasia cientificista) mas ele pode permitir o amadurecimento de uma atitude mais prática e mais prudente em relação ao objeto das nossas preocupações. A consequência útil é que nos tornamos menos suscetíveis à surpresa e menos vulneráveis à possibilidade, bem como soluções prontas, ou comprazer-se com a sua facilidade, ou permanecer hipnotizado pelas aparências.

Otavio Frias Filho
Otavio Frias Filho

Diretor de Redação

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