Descrição de chapéu Eleições 2018

Otimismo dos anos dourados marcou eleição presidencial de 1960

Sensação da campanha, Jânio era um figuraço, acima da média dos políticos de então, mas talvez com um parafuso a menos

José Hamilton Ribeiro
São Paulo

Este é o segundo texto da série "Minha Eleição", que todo sábado trará relatos de repórteres sobre a cobertura de eleições presidenciais brasileiras do passado.

 


“Varre, varre, vassourinha
Varre, varre a bandalheira”

O clima da campanha e da eleição de 1960 era bem diferente do de hoje. O Brasil vivia o que se chamou depois de “os anos dourados”, fruto do otimismo de Juscelino Kubitschek. O povo não levava sustos na política, com um governo sereno e popular. O país crescia mais de 7% ao ano, havia estabilidade democrática e a liberdade como que se respirava no ar. 

Em sua campanha de 1955, JK prometera, com seu “Programa de Metas” (todas cumpridas, dizia ele em 1960, a começar pelo que parecera uma miragem, a construção de uma nova capital no sertão), que o país avançaria 50 anos e em cinco. 

O ex-governador de São Paulo Jânio Quadros desembarca em Santos e é recebido por correligionários, em setembro de 1959
O ex-governador de São Paulo Jânio Quadros desembarca em Santos e é recebido por correligionários, em setembro de 1959 - 22.set.1959 - Acervo UH/Folhapress

JK indicava os sinais: os primeiros carros “fabricados no Brasil” chegavam às ruas; geladeira, aspirador de pó, aparelho de TV atingiam a casa do remediado e do pobre; com Garrincha e Pelé, a seleção vencera a Copa do Mundo de 1958 e estava “na ponta do casco” para levar também a de 62; no cinema, “Os Cangaceiros”, de Lima Barreto, impressionava a Europa; na arquitetura, os traços de Niemeyer se tornavam marca registrada do Brasil; na música, a bossa nova encantava Frank Sinatra e se espalhava pelo mundo. 

Entre nós, o que era moderno, pra frente, virava logo “bossa nova”, e até JK, que atraía Inezita Barroso ao Palácio para passar horas ouvindo e cantando canções de seresta, virou “Presidente Bossa Nova”, numa composição de Juca Chaves:

“Bossa Nova mesmo é ser presidente/
Desta terra descoberta por Cabral/
(...)
Depois desfrutar da maravilha/
De ser o presidente do Brasil/
Voar da Velhacap pra Brasília/
Ver alvorada e voar de volta ao Rio/”

A campanha para presidente em 1960 refletiu esse clima. Havia confiança do povo, havia esperança no ar, ainda que uma oposição qualificada e feroz já culpasse Juscelino por fazer um governo de espetáculo, voltado para a mídia, sem cuidar dos problemas reais do país. E sobretudo, apontava que nas grandes obras do governo, principalmente na “farra” que se fez para construir Brasília a toda pressa, rolava corrupção e produção diária de novos milionários, mascarados na poeira das retroescavadeiras e do canteiro de obras. 

Tijolo e bloco de cimento iam de avião, a Força Aérea caçava trabalhadores (os candangos) em todo canto, ministérios inteiros esqueciam sua função para cuidar de uma agenda só, a construção da nova capital. 

Com apoio das forças militares (as mesmas que tinham tentado em vão impedir sua posse) e do funcionalismo, para quem oferecia salário em dobro e mordomias várias, JK racionalizava as críticas da oposição, dizendo que muito dela vinha do Rio de Janeiro, que estava demorando para perdoar o que dizia ser seu grande pecado: tirar da “Velhacap” o status de capital do Brasil.  

Brasília permitira abrir o país para a Amazônia, criando novas fronteiras de produção, com a Belém-Brasília. O povo ainda andava apertado e o pobre, cheio de carências, mas havia esperança no ar. Em todo canto as pessoas pareciam imbuídas de um espírito empreendedor e voltado a aceitar desafios.

(Vivi pessoalmente um fato desses. Então repórter da Folha, fui enviado para cobrir a primeira missa de Brasília. Além do cardeal Mota, primaz do Brasil, que seria seu oficiante, acorreram à futura capital embaixadores de muitos países, convidados ilustres, empresários, políticos e centenas de jornalistas de TV, rádio, jornais e revistas.

Resultado: não havia acomodação para todos. Com mais um colega participei de uma busca frenética para encontrar onde tomar banho e dormir. Acabamos na “Cidade Livre”, área fora do Plano Piloto, onde, meio num faroeste, pessoas tentavam de alguma forma participar do “milagre de Brasília” e fazer dinheiro.

Num hotelzinho de madeira em construção, o dono perguntou: “A que horas vocês querem dormir?”. Pra lá de meia noite, dissemos. “Então podem vir, até lá eu faço um quarto pra vocês.” E fez!)

A campanha, uma alegria, com música e tudo 

Eleições naquele tempo eram uma festa. As leis eleitorais, elaboradas então por quem entende de povo (e precisa dele), os políticos, transformavam os comitês e os comícios numa forma de congraçamento popular, com animação de artistas e grandes cantores. 

Para camadas da população era o acontecimento do mês —ou da semana—, esperado com ansiedade. Sabe o que é ver de perto (às vezes tocar) um importante cidadão que será amanhã governador do estado, presidente?

Havia um aspecto menos nobre. Em grotões do Brasil profundo era o tempo de o pobre conseguir algum dinheiro como claque ou cabo eleitoral, de uma gente que não vira antes e talvez não visse mais —o candidato. Não estou certo se essa distorção acabou.  

As leis eleitorais de hoje, feitas por tribunais cujos juízes não reconhecem o senhorio do povo sobre os servidores e agem não raro com prepotência e vã-glória, transformaram o ato de votar numa obrigação maçante, enjoada.

A campanha de 1960 foi uma comemoração de Norte a Sul.  O povo vivia num rescaldo do otimismo de JK e tinha esperança de um Brasil ainda melhor: bastava aos políticos combater a corrupção e serem honestos. O eleitor acreditava que seu candidato era sério e iria certamente cumprir as promessas. O clima do país era quase o de música de Carnaval. Dá até para fazer uma síntese da campanha com as musiquinhas dos comitês.

Marchinha animada, com som de caixas de uma fanfarra colegial:

“De Leste a Oeste, de Sul a Norte,
É uma Bandeira o Marechal Teixeira Lott.”

Teixeira Lott era o candidato do PSD —leia-se Juscelino— e do PTB, dos herdeiros de Getúlio Vargas. Significava o escolhido do governo. 

Militar da reserva de perfil severo e discreto, bem considerado na mídia e no meio político, Lott impunha respeito, mas tinha pouca ligação com o povo. 

Se José Simão escrevesse naquela época, talvez dissesse claramente o que todos sabiam e não ousavam publicar: o papel do marechal Lott era só o de esquentar cadeira, pois JK, com alta popularidade, já deixara claro que seria candidato em 1965. Não podia ser candidato em 60 porque não havia reeleição para presidente, mas o movimento “JK-65”já estava na rua.

Vozeirão de Nelson Gonçalves num samba sincopado:

“Quem não conhece, quem não ouviu falar/ 
Na famosa “Caixinha do Ademar”/
Que deu livro, deu remédio, deu estrada/
Caixinha Abençoada!/Já se comenta de Norte a Sul/
Com Ademar tá tudo azul... ” 

Tradicional adversário de Jânio, Ademar de Barros era um expressivo líder paulista, com seu PSP (“Partido Social Progressista”). 

Foi um precursor do “Rouba, Mas Faz” na medida em que suas obras, tanto no governo estadual quanto na prefeitura, tinham fama de que só saíam porque as empreiteiras davam a ele uma comissão, a tal “Caixinha do Ademar”. (“Nada de novo sob o Sol...”) Ademar dizia que isso era conversa, vinha de gente que perdia eleição e “não tinha o que fazer”. 

Saído da empresa privada (atuava no ramo de chocolates), invocava seu slogan “Para Cima e Para o Alto” para anunciar grandes obras, como o Hospital das Clínicas (maior hospital do Brasil), via Anchieta (pioneira ligação moderna de São Paulo com o mar), Rodovia do Oeste (hoje “Castelo Branco”, a melhor estrada do país, ligando a capital paulista a Mato Grosso e Goiás).

Ademar era médico que gostava de atender a pobreza, e sua mulher, dona Leonor, tocava obras de benemerência com muito vigor. 

A oposição dizia que era tudo populismo, mas o fato é que Ademar comandava um partido forte, com plano de ter hegemonia no país. Como sua imagem era muito paulista, tentou na campanha de 60 ganhar votos no Rio com um sambinha bem carioca:

“Nega, meu Bem!/Me passe meu terno branco/
Me compre um par de tamanco/Pra eu poder votar/
E avise o pessoal do morro/Que o homem é o Ademar!/

Homem agradável e espirituoso, Ademar era desses que perdia o amigo para não perder a piada. Uma vez, quando prefeito de São Paulo recebeu em seu gabinete Nelson Rockefeller, futuro governador de Nova York, os dois deram uma entrevista coletiva à imprensa, com transmissão ao vivo pela TV. 

Um repórter, todo solene, perguntou se os jornalistas estavam ali diante de dois futuros presidentes , um do Brasil, outro dos EUA. Ademar adiantou-se: 

“Quanto a mim já sou presidente, presidente da Lacta!”

Sua carreira na política foi interrompida pelo golpe militar de 1964, que apoiara no começo e contra o qual se voltou quando viu o país transformar-se “num cemitério dos ideais democráticos”. 

Foi cassado como “corrupto e subversivo” e nunca mais se recuperou.

Convite para jangar

César de Alencar, da Rádio Nacional do Rio de Janeiro então com alcance hegemônico em todo o país, era um apresentador-celebridade, de rádio e TV, com voz inconfundível. Após dizer que cada artista estava escolhendo seu candidato, pedia o depoimento da cantora Elizete Cardoso, “A Divina”. Ela cantava:

“Jangar é muito mais do que votar,
Eu vou jangar. É Jango é Jango, 
É o Jango Goulart.”

Na época, eleição do vice não era atrelada à do presidente, então você votava num, depois no outro. João Goulart, o Jango, era vice de JK, e continuava candidato a vice de Lott, mas tinha comitês próprios de “Jan-Jan”, Jânio e Jango. Gaúcho, herdeiro de Getúlio e ligado aos sindicatos, a chapa mista “Jan-Jan” acabou eleita. Deu-se então essa novidade: o presidente era de um grupo partidário, o vice de outro.

Jânio, um furacão eleitoral  

“O homem da vassoura vem aí,
Já sei pra onde ir com a família.
Eu só queria, eu só queria
Ver o homem da vassoura em Brasília.”

Jânio Quadros foi a sensação da campanha de 60, com seu moralismo, ataque aos corruptos e promessa de austeridade nas contas públicas, como fizera em São Paulo. Acabou com mais de 48% dos votos. Se fosse hoje, seria eleito no primeiro turno, com 16 pontos à frente do segundo colocado. Repetiu sua fama de “furacão eleitoral”, usando os partidos sem ser usado por eles (saiu apoiado pela UDN), numa corrida que o levou de obscuro candidato a vereador a presidente da República em 13 anos. No item de conexão com as massas, no Brasil, só apareceria outro —Lula da Silva— décadas depois. 

Dos quatro candidatos —Lott, Ademar, Jango e Jânio—, foi de quem eu mais cheguei perto. Quando governador de São Paulo, coube a mim ser o repórter de política da Folha com a missão de cobrir o Palácio. 

Via-o quase todos os dias; algumas vezes, no fim da tarde, ele me punha na rodinha do balanço do dia e então rolavam assuntos os mais variados, quase sempre na descontração de um uisquinho. 

Eu o achava um figuraço, muito acima da média dos políticos de então. Preparado, inteligente, com visão de mundo (gostava muito de Londres), arguto, espirituoso. 

O sotaque, mistura de mato-grossense com Paraná (onde nasceu e viveu até à mocidade), o gestual de olhos e mãos, a articulação meticulosa das frases e a valorização das pausas, faziam com que sua conversa fosse sempre encantadora. As respostas não raro eram desconcertantes. Numa entrevista coletiva, uma repórter de rádio fez uma pergunta tratando-o por você. Sem tocar no assunto em questão, virou-se para ela:

“Minha Senhôra. A intimidade causa aborrecimento —e filhos. Como não quero aborrecimentos com a Senhôra, muito menos filhos, trate-me por Senhor, por gentileza.”

Tinha vindo a São Paulo para estudar Direito, mas com mesada curta, lecionava para sobreviver. E foram seus alunos de colégio que o ajudaram na primeira campanha. 

Punham mesinhas na avenida Paulista com fotos e santinhos para atrair as pessoas, aí Jânio chegava. 

Vestido simplesmente, muito magro, bigode farto e toda hora se livrando dos cabelos lisos e compridos que lhe caíam no rosto, ia buscando votos e apoio. A roda de pessoas só aumentava quando começava a falar. Passaram a pipocar, aqui e ali, comitês voluntários de “JQ Vereador”. E o desconhecido professor de português acabou primeiro suplente, logo assumindo a vereança.

O mandato de vereador foi o início do furacão. Tornou-se fonte diária das manchetes, tanto pelo que fazia —visitas de surpresa a repartições—quanto pelo que falava. 

Passou a cultivar a imagem de que era mais pobre do que a situação real e chegava nos comícios comendo sanduíche.

Orador teatral (alguns diziam histriônico), seus comícios entusiasmavam o povo e o faziam rir com o jeito que Jânio dizia que ia pegar os ladrões “pela goela”. 

Candidato a deputado estadual, teve o maior número de votos. Dali ao governo do estado foi um pulo.

Carlos Lacerda, conhecido algoz de políticos, que o apoiou para presidente e depois tornou-se seu inimigo terrível, dizia que Jânio era “uma mistura de Hitler com Macunaíma”.

Terror dos burocratas

Agora, na eleição presidencial, assombrava o país de Sul a Norte com o convite-ameaça “Jânio Vem Aí”, sempre tendo a vassoura como arma para atacar ladrões do povo e funcionários relapsos. Sua mensagem levava esperança, o povo confiou.

Tanto pelo que era como pelo que parecia ser, e até pelo que não era, Jânio virou folclore. Seu modo de falar rebuscado levou à história de que, perguntado por que bebia uísque, respondeu:

“Bebo porque líquido é. Sólido fosse, comê-lo-ia.”

Essa eu não presenciei, mas vi outra. Numa recepção a ministros europeus que visitavam São Paulo, chamou atenção a mulher de um embaixador: muito loira, muito decotada, linda. Alguém pediu opinião de Jânio:

“É uma garrafa de champanhe no exato momento em que se desenrola o arame e a rolha sai. Prontinha para o amor.”

Também atribuíram a Jânio a expressão “Fi-lo porque qui-lo”. Foram checar, ele disse: “Essa não é minha porque o português está errado. Se fosse dizer, diria o certo: ‘Fi-lo porque o quis’.”

A oposição dizia que Jânio tinha um parafuso a menos. Talvez tivesse: renunciou com apenas sete meses, abrindo uma crise militar que iria durar mais de 30 anos.

José Hamilton Ribeiro é jornalista e escritor, ganhador de sete prêmios Esso e autor de “O Gosto da Guerra” (Objetiva)


A eleição de 1960

Data
3 de outubro

Candidatos a presidente

  • Jânio Quadros (PTN): 48%
  • Henrique Teixeira Lott (PSD): 33%
  • Ademar de Barros (PSP): 19%

Candidatos a vice-presidente*

  • João Goulart (PTB): 36%
  • Milton Campos (UDN): 34%
  • Fernando Ferrari (PDC): 17%

Slogan do vencedor
“Jânio vem aí!”

Jingle do vencedor
“Varre, varre, 
vassourinha
Varre, varre 
a bandalheira
Que o povo 
já está cansado
De sofrer 
dessa maneira”

População à época
71 milhões

PIB
alta de 9,4%

Inflação
31%

Urbanização
44,7%

Expectativa de vida
54 anos

Músicas
“Banho de Lua”, Celly Campello
“Theme from a summer place”, Percy Faith

Escola vencedora do Carnaval do Rio
Portela 
Tema:
Rio, capital eterna do samba

*Votação para presidente e vice ocorria de forma separada
Fontes: IBGE, TSE, FGV, Banco Mundial

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