1998: Crise russa e mercados indóceis marcam a reeleição de FHC

Presidente e candidato à reeleição, o tucano elevou, a menos de um mês da votação, a taxa de juros a 49,75%; equipe de campanha temia derrota para o adversário Lula caso a disputa chegasse ao segundo turno

Catia Seabra
São Paulo

Este é um texto da série "Minha Eleição", que todo sábado traz relatos de repórteres sobre a cobertura de eleições presidenciais brasileiras do passado.

 

A crise era a russa. E no dia 12 de setembro de 1998, uma manhã de sábado, o presidente-candidato, Fernando Henrique Cardoso, admitiu pela primeira vez seu estrondoso impacto na economia brasileira.
A confissão ocorreu apenas 22 dias antes de sua reeleição em primeiro turno, no dia 4 de outubro. Diante de 150 políticos alagoanos, no Hotel Jatiuca, em Maceió, FHC reconheceu ter elevado, dois dias antes, a taxa de juros a estratosféricos 49,75% sob pressão do mercado. 

"Ainda ontem ou anteontem, eu dizia: 'olha, acho que não vou aumentar os juros'. Mas o mercado é forte. Ele decide. Eu não queria, mas fazer o quê? Deixar que vá embora a nossa moeda?", justificou.

O candidato-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 1998 - Antônio Gaudério - 5.out.1998/Folhapress

Na Baixada Fluminense, seu adversário petista, Luiz Inácio Lula da Silva, acusava FHC de estar "enchendo a pança dos agiotas internacionais" :

"Não falta dinheiro, falta vergonha na cara", discursou Lula, em um comício improvisado no calçadão de Nova Iguaçu (RJ).

FHC deu sua resposta logo depois em um comício na Praia de Sete Coqueiros. Exaltou sua capacidade de "dialogar com aqueles que têm poder no mundo". "Não adianta agourar falando coisas que não têm sentido", reagiu.

Ainda não existia wifi. Munida de um computador de 600 gramas, apelidado de marmita, corri até um "orelhão" no calçadão da praia para transmissão da reportagem. Desatarraxei o bocal do fone e instalei no seu interior dois ganchos (jacarés) na extremidade de um fio ligado ao micro.

Introduzi um cartão telefônico no aparelho e disquei o número à espera do sinal para dar início à transmissão. A notícia chegou às páginas dos jornais no domingo, 13.

Em 24 de setembro, dez dias antes de sua reeleição, com 53% dos votos válidos, FHC reconheceu, em um discurso no Itamaraty, a necessidade de fortes ajustes para deter a crise. 

Cerca de duas semanas antes, o então ministro da Fazenda, Pedro Malan, alertara FHC e o coordenador de sua campanha, Euclides Scalco, para o risco de derrota caso a eleição chegasse a segundo turno, tamanha era a crise.

Do Palácio do Planalto, Scalco convocou uma reunião de emergência com os coordenadores da campanha para traçar uma estratégia para a vitória em primeiro turno.

Primeiro presidente a experimentar o direito à reeleição no Brasil —com aprovação garantida graças à compra de votos no Congresso— FHC nunca pisou no comitê eleitoral de sua campanha, um prédio de 2.700 metros quadrados no Setor Comercial Norte, a 4 km do Palácio do Planalto.

Seu vice, Marco Maciel, visitou o comitê uma única vez. Nas viagens, o tucano revezava a agenda de presidente com a de candidato. Os custos com transporte aéreo eram calculados pela Aeronáutica e o dinheiro, devolvido aos cofres públicos. 

Apesar das regras, eram constantes os conflitos de agenda. No Ceará, a coordenação de campanha cancelou às pressas uma visita de FHC a uma obra pública, acompanhado da produção de programa eleitoral, para que não fosse caracterizada como uso da máquina.

Há 20 anos, a campanha era bem mais ruidosa, com circulação de carros de som sem a presença de candidatos e showmícios. FHC contou, por exemplo, com a atuação de Chitãozinho e Xororó em seus comícios.

Também era autorizado o financiamento privado das campanhas, além de participação de atores e apoiadores na propaganda eleitoral. 

Como eram permitidos o uso da imagem do candidato à Presidência nas diferentes campanhas estaduais, desde que dentro de uma mesma coligação nacional, a disputa de 1998 foi marcada por conflitos entre aliados nos estados.

Em São Paulo, Paulo Maluf provocou tremores entre FHC e o então governador de São Paulo, o tucano Mário Covas, que disputava a reeleição. 

Adversário de Covas em São Paulo, mas integrante da aliança com o PSDB nacional, Maluf espalhou pelas cidades outdoors com sua foto ao lado de FHC. Covas fez o mesmo.

Foram os arranca-rabos estaduais que animaram a morna disputa presidencial. 

Mesmo desanimado após derrota para FHC em 1994, Lula decidiu concorrer à eleição na expectativa de que a crise econômica fosse cenário propício para sua eleição. Prevaleceu, no entanto, a tese da necessidade de estabilidade para a condução da crise. 

Já abatido pela perspectiva de derrota, Lula convocou uma reunião entre aliados no dia 3 de outubro, véspera da eleição. Mas nem seu vice, o pedetista Leonel Brizola, foi a seu encontro.

FHC venceu em 4 de outubro, apesar da forte crise externa e fuga de dólares do país (que chegou a US$ 600 milhões ao dia). O Brasil padecia com a política de valorização da moeda, mantida às custas de alta dos juros.

Passada a eleição, o Brasil recorreu ao FMI e organismos internacionais atrás de US$ 41,5 bilhões emprestados do FMI. Em janeiro de 1999, FHC anunciou a maxidesvalorização do real na tentativa de sobreviver à especulação financeira.

Em 2016, o livro de memórias de FHC registrou o teor das "reflexões ultrassecretas" feitas por ele, dez dias antes da reeleição. 

"Não que não exista déficit a ser combatido, mas a questão que nunca foi posta [pelo governo] é a cambial. É a questão central", gravou.

A ELEIÇÃO DE 1998

Data
4 de outubro de 1998

Candidatos a presidente
Fernando Henrique Cardoso (PSDB) 53,1%
Lula (PT)  31,7%
Ciro Gomes (PPS) 10,9%
Enéas Carneiro (Prona) 2,1%

Slogan do vencedor
“Gente em primeiro lugar”

População à época
169 milhões

Crescimento do PIB
0%

Inflação do ano
1,65%

Urbanização
79,92%

Expectativa de vida
69,66 anos

Músicas
“Erguei as Mãos” 
(Padre Marcelo Rossi)
“Um Sonhador” 
(Leandro e Leonardo)

Escola vencedora do Carnaval do Rio
Empate entre Mangueira, com o enredo “Chico Buarque da Mangueira”, e Beija Flor, com “Pará, o mundo místico dos Caruanas nas águas do Patu-Anu”

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