Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Defesa das liberdades democráticas foi uma das maiores marcas de Otavio

Morte de jornalista que foi diretor de Redação da Folha durante 34 anos completa um mês

Uirá Machado
São Paulo

Defender a liberdade de expressão é fácil quando se está no campo teórico. Basta inspirar-se nos ideais iluministas e repetir a frase atribuída a Voltaire: "Discordo de tudo o que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-lo". Passar das palavras aos atos, no entanto, exige um esforço que poucos conseguem suportar.

Otavio Frias Filho foi uma dessas pessoas raras. Morto há um mês aos 61 anos, o homem que dirigiu a Folha durante 34 anos deu inúmeras demonstrações de seu apreço genuíno pela opinião alheia, pela multiplicidade de pontos de vista, pela variedade de visões sobre um mesmo aspecto da realidade.

Otavio, de pé, participa de almoço que comemorou os 60 anos da Folha; sala é utilizada até hoje como espaço para discussão de opiniões que o jornal veiculará em seus editoriais - 20.fev.81/Folhapress

O Projeto Folha, que Otavio elaborou nos anos 80 e conduziu desde então, ergueu-se a partir daquela máxima, sem a qual apartidarismo e pluralismo seriam conceitos vazios numa carta de intenções.

Ao lado da disposição crítica e da independência editorial, esses princípios têm guiado o jornalismo da Folha há mais de três décadas, mas é na seção Tendências / Debates que o espírito do pensador francês encontra sua melhor tradução. Criado em 1976, o espaço até hoje estimula o debate intelectual e procura refletir a diversidade do pensamento brasileiro.

Otavio, que frequentava a Folha cotidianamente desde 1975, sempre acompanhou o que ali se publicava, e sua proximidade com a seção aumentou ainda mais a partir de 2006, quando seu pai, Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), afastou-se do jornal.

No período em que editei Tendências / Debates (2005-10), pude ver como o então diretor de Redação transformava em prática concreta o que para a maioria jamais deixa de ser uma reflexão abstrata.

Da extrema esquerda à extrema direita, as mais variadas correntes da sociedade já encontraram abrigo na página 3 da Folha. Quem quer que leia a seção de forma rotineira se lembrará de artigos dos quais discordou veementemente e de tantos outros com os quais concordou de imediato.

Pouco importava se Otavio gostava ou não dos argumentos apresentados, e muito menos se concordava com eles; o que ele exigia era o respeito aos princípios jornalísticos da Folha. Toda opinião deveria ser exposta, desde que não incitasse à violência ou incorresse em crime evidente.

Defender o direito do outro de dizer o que pensa e oferecer o jornal como veículo para o exercício desse direito tem um preço: leitores eventuais com frequência confundem essa abertura com uma simpatia pela causa específica defendida pelo articulista. Nada mais enganoso, pois naquele espaço a única causa é a da liberdade de expressão.

Isso não significa que a Folha não tenha suas opiniões —significa apenas que estas são apresentadas em outro local: não nos artigos de colunistas nem nas reportagens, mas nos editoriais.

Também aqui foram muitas as lições. Para começar, embora houvesse coincidência de pontos de vista em diversas questões, as posições defendidas pelo jornal não necessariamente espelhavam as dele. 

Os editoriais sempre expressaram —e expressam— o que a Folha pensa. Otavio não impunha sua posição; atuava como gestor de um processo de debates internos nos quais eram inegociáveis apenas certos princípios gerais, como Estado de Direito, liberdades democráticas e economia de mercado, entre outros.

Ao editor de Opinião —cargo que exerci de 2013 a 2017— cabe, à luz de fatos novos e situações determinadas, harmonizar tais princípios com apreciações pregressas do jornal.

No mais das vezes, Otavio era um partícipe das discussões, que podem envolver apenas a equipe de editorialistas ou, em circunstâncias espinhosas, agregar um número maior de pessoas do jornal. Se fosse necessário arbitrar, sempre o fazia em torno das mesmas premissas que valiam para todos —e, mesmo nesses casos, era sua sabedoria que se impunha.

Sua abertura para ouvir outras reflexões, sua vocação para estimular o debate franco, sua generosidade para ceder à opinião alheia e sua coragem para seguir em frente são características de valor inestimável num jornal. 

Mas a defesa intransigente da liberdade de expressão e a busca incessante pelo consenso razoável a partir daqueles princípios inegociáveis não são apenas lições para a Folha, em particular, ou para o jornalismo em geral. 

São também —e sobretudo— lições de cidadania, especialmente relevantes num momento em que a própria ideia de democracia tem sido questionada por uma parcela da população.

Secretário-assistente de Redação, trabalhou nas páginas de Opinião da Folha durante dez anos
 

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