Falta de reconhecimento na carreira militar motivou revolta de Tiradentes, diz escritor

Em debate, autor de biografia afirmou que imagem de revolucionário hoje tem pouca relação com homem real

Leonardo Neiva
São Paulo

Tiradentes trabalhou durante 14 anos como representante da coroa portuguesa, responsável por reprimir a sonegação e o contrabando de ouro em Minas Gerais. Profundamente devotado ao trabalho em um ambiente militar confuso e dominado pela corrupção, passou essa década e meia como alferes, grau mais baixo na hierarquia militar da época, enquanto assistia a colegas menos eficientes e dedicados subirem na carreira.

Além da questão ideológica, a insatisfação gerada por essa falta de reconhecimento foi um dos estopins para que ele se envolvesse com a Inconfidência Mineira, movimento do século 18 que pregava o rompimento do Brasil colônia com Portugal.

É esse lado mais humano e menos mito que o jornalista Lucas Figueiredo diz ter tentado mostrar na biografia “O Tiradentes” (Companhia das Letras, 520 págs., R$ 79,90).​

Tiradentes em litografia de Décio Villares (1890)
Tiradentes em litografia de Décio Villares (1890) - Divulgação/Museu Histórico Nacional

“O envolvimento dele com a Inconfidência acontece por essa insatisfação pessoal com a coroa portuguesa e também porque ele, que trafegava em todas as faixas sociais, já vinha tomando consciência da exploração que acontecia em cima dos mineiros”, afirmou o autor em debate promovido pela Folha e pela editora Companhia das Letras nesta segunda-feira (17).

No momento de seu ingresso na conspiração (1788-1789), o perfil do alferes era bem diferente do restante da cúpula do movimento, composta por representantes de intelectuais e das classes altas.

Joaquim José da Silva Xavier vinha de uma família de poder aquisitivo mais baixo e tinha pouca formação intelectual, mas aliava características pessoais como intuição, resiliência e capacidade de rápido aprendizado.

Um exemplo dessas qualidades seria a tradução da coletânea das leis constitucionais dos Estados Unidos, escrita em francês, idioma que Tiradentes não dominava. Segundo Figueiredo, o alferes traduziu o documento palavra por palavra, usando um dicionário da língua. A Revolução Americana, ocorrida em 1776, foi uma das maiores inspirações dos inconfidentes.

Tiradentes também foi o único dentre os conspiradores que demonstrou estar pronto para matar ou morrer por suas convicções, tendo defendido uma revolução com derramamento de sangue e requerido para si o trabalho de, após a suposta vitória, cortar a cabeça do visconde de Barbacena, então governador de Minas Gerais.

Uma das missões do alferes era convencer e recrutar pessoas para o movimento, o que ele fazia disseminando informações falsas de que a revolução estava cada vez mais forte e sua realização era iminente. Uma tática tirada do livro “A Arte da Guerra”, do chinês Sun Tzu, segundo Figueiredo.

“Esse modelo que temos de homens acima do bem e do mal não existe. Os grandes movimentos da humanidade não são feitos por homens iluminados, a vida não é assim”, afirmou Figueiredo.

A construção do mito passou também pela aparência. A figura imortalizada do alferes, de longos cabelos e barba à semelhança de Jesus Cristo, surgiu quase um século depois da Inconfidência, com o movimento republicano, que buscava uma personalidade nacional para representá-lo. Não há até hoje registro histórico de sua aparência real.

Questionado sobre a possibilidade de sua obra manchar a imagem mítica que ainda se tem de Tiradentes, o autor se mostrou cético. “O livro não vai conseguir nem arranhar a paixão pela figura dele. É a coisa do fake news, a mentira é muito mais saborosa do que a verdade.”

O evento aconteceu na Livraria da Vila da Fradique Coutinho, em São Paulo, e teve a presença do jornalista e escritor Oscar Pilagallo.

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