Tiradentes trabalhou durante 14 anos como representante da coroa portuguesa, responsável por reprimir a sonegação e o contrabando de ouro em Minas Gerais. Profundamente devotado ao trabalho em um ambiente militar confuso e dominado pela corrupção, passou essa década e meia como alferes, grau mais baixo na hierarquia militar da época, enquanto assistia a colegas menos eficientes e dedicados subirem na carreira.
Além da questão ideológica, a insatisfação gerada por essa falta de reconhecimento foi um dos estopins para que ele se envolvesse com a Inconfidência Mineira, movimento do século 18 que pregava o rompimento do Brasil colônia com Portugal.
É esse lado mais humano e menos mito que o jornalista Lucas Figueiredo diz ter tentado mostrar na biografia “O Tiradentes” (Companhia das Letras, 520 págs., R$ 79,90).
“O envolvimento dele com a Inconfidência acontece por essa insatisfação pessoal com a coroa portuguesa e também porque ele, que trafegava em todas as faixas sociais, já vinha tomando consciência da exploração que acontecia em cima dos mineiros”, afirmou o autor em debate promovido pela Folha e pela editora Companhia das Letras nesta segunda-feira (17).
No momento de seu ingresso na conspiração (1788-1789), o perfil do alferes era bem diferente do restante da cúpula do movimento, composta por representantes de intelectuais e das classes altas.
Joaquim José da Silva Xavier vinha de uma família de poder aquisitivo mais baixo e tinha pouca formação intelectual, mas aliava características pessoais como intuição, resiliência e capacidade de rápido aprendizado.
Um exemplo dessas qualidades seria a tradução da coletânea das leis constitucionais dos Estados Unidos, escrita em francês, idioma que Tiradentes não dominava. Segundo Figueiredo, o alferes traduziu o documento palavra por palavra, usando um dicionário da língua. A Revolução Americana, ocorrida em 1776, foi uma das maiores inspirações dos inconfidentes.
Tiradentes também foi o único dentre os conspiradores que demonstrou estar pronto para matar ou morrer por suas convicções, tendo defendido uma revolução com derramamento de sangue e requerido para si o trabalho de, após a suposta vitória, cortar a cabeça do visconde de Barbacena, então governador de Minas Gerais.
Uma das missões do alferes era convencer e recrutar pessoas para o movimento, o que ele fazia disseminando informações falsas de que a revolução estava cada vez mais forte e sua realização era iminente. Uma tática tirada do livro “A Arte da Guerra”, do chinês Sun Tzu, segundo Figueiredo.
“Esse modelo que temos de homens acima do bem e do mal não existe. Os grandes movimentos da humanidade não são feitos por homens iluminados, a vida não é assim”, afirmou Figueiredo.
A construção do mito passou também pela aparência. A figura imortalizada do alferes, de longos cabelos e barba à semelhança de Jesus Cristo, surgiu quase um século depois da Inconfidência, com o movimento republicano, que buscava uma personalidade nacional para representá-lo. Não há até hoje registro histórico de sua aparência real.
Questionado sobre a possibilidade de sua obra manchar a imagem mítica que ainda se tem de Tiradentes, o autor se mostrou cético. “O livro não vai conseguir nem arranhar a paixão pela figura dele. É a coisa do fake news, a mentira é muito mais saborosa do que a verdade.”
O evento aconteceu na Livraria da Vila da Fradique Coutinho, em São Paulo, e teve a presença do jornalista e escritor Oscar Pilagallo.
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