Descrição de chapéu Eleições 2018

O sabor amargo de votar já quase cinquentão

Collor foi o mais desabrido crítico do governo megaimpopular de José Sarney

Clóvis Rossi
São Paulo

​Este é o quinto texto da série "Minha Eleição", que todo sábado trará relatos de repórteres sobre a cobertura de eleições presidenciais brasileiras do passado.

 

Saí para votar, no dia 15 de novembro de 1989, com a desagradável sensação de que havia sido roubado. Estava com 46 anos, quase 47, mas votava pela primeira vez para presidente da República.

O fato de só poder votar nessa idade tardia deixava evidente que sofrera uma violação grave de meus direitos cívicos durante 29 anos. Afinal, a eleição presidencial legítima anterior fora em 1960. Eu tinha 17 anos e a idade mínima para votar era de 18 anos.

Para acentuar a sensação de roubo de direitos, o ambiente no dia da votação era de fato de alguma excitação, mas nada nem remotamente parecido com o porre cívico que eu testemunhara antes nas eleições de retorno à democracia na Argentina (1983), no Uruguai (1984) e no Chile (1988). No Chile, na verdade, em 1988, deu-se não uma eleição presidencial, mas o plebiscito que cravaria um rotundo "não" à continuidade da ditadura de Augusto Pinochet e, por extensão, determinara a eleição presidencial para 1989.

No Brasil, com o seu histórico atraso civilizacional, a saída da ditadura se dera em 1985, não pela via mais legítima, a do voto popular, mas por decisão do Congresso. Festa até houve, mas não nas ruas.
A campanha de 1989 foi a última que se deu em ambiente de Guerra Fria. O Muro de Berlim, em cujos escombros ficaria o comunismo, só cairia seis dias antes da votação no Brasil. Entende-se, por isso, que ainda houvesse temor ao comunismo (irracional, do meu ponto de vista).

O establishment estava em pânico com o que se batizou à época de "monstro Brizula", justaposição dos nomes de Leonel Brizola e Luiz Inácio Lula da Silva. Eram os esquerdistas mais notórios na enorme lista de pré-candidatos (chegaram às urnas 22 nomes).

Collor durante passeata, em agosto de 1989, em Niterói (RJ); na ocasião, houve desentendimento de apoiadores do candidato com brizolistas
Collor durante passeata, em agosto de 1989, em Niterói (RJ); na ocasião, houve desentendimento de apoiadores do candidato com brizolistas - Chico Ferreira/Folhapress

Os dois saltaram à frente nas pesquisas, enquanto o centro e a direita tinham dificuldade em concretizar um nome competitivo. Até que surgiu do nada um certo Fernando Collor de Mello. Quando começou a subir nas pesquisas, Brizola, em almoço nesta Folha, desprezou a hipótese de vitória de Collor, dizendo que seria "a-histórica".

Não deixa de ser verdade: Collor era o candidato de um partido que hoje seria batizado como "fake", o PRN (Partido de Reconstrução Nacional), governava um Estado (Alagoas) irrelevante na política nacional e era um desconhecido no resto do país.

Como evidência (mais uma) da leseira institucional do Brasil, o nome do partido de Collor era um sinal do desejo de refundar a República que assola a pátria de tempos em tempos. 

Tanto que Collor era o mais virulento crítico do governo de turno, por sua vez nascido com outro rótulo de refundação ("Nova República").

A ascensão de Collor, por ser insólita, levou os adversários e boa parte dos analistas a atribuí-la à Rede Globo de Televisão. Que a Globo fez o possível para eleger Collor, prova-o a manipulação do debate final do segundo turno, entre ele e Lula.

Mas, no início da campanha, a Globo parecia empenhada em colocar o governador paulista Orestes Quércia no lugar de Ulysses Guimarães como candidato do PMDB —afinal, o maior partido da República, que elegera, no pleito estadual e legislativo anterior (1986), todos os governadores, menos o de Sergipe, e a maioria absoluta dos senadores e deputados federais.

Collor passeia de jet ski no Lago Norte, em Brasília, em março de 1999
Collor passeia de jet ski no Lago Norte, em Brasília, em março de 1999 - Lula Marques/Folhapress

Ulysses era o candidato errado na hora errada. Se o presidente da época, José Sarney, tivesse se contentado com quatro anos de mandato, o pleito seria em 1988, e o velho cacique peemedebista estaria no auge, como o responsável maior pela Constituição que dava fim institucional ao período autoritário.

Em 1989, o que abundavam eram as tratativas para decapitá-lo como candidato. Houve até uma reunião de governadores no apartamento de Ulysses em Brasília, convocada com a explícita finalidade de fazê-lo desistir. 

Mal começou a reunião, o governador de Minas, Newton Cardoso, saiu às pressas e, ao passar pelos jornalistas que fazíamos plantão, deixou escapar sonoro peido.

Forneceu-me a abertura do texto sobre a reunião: dizia que a tentativa de afastar Ulysses "terminara literalmente em um traque".

Com Quércia fora do páreo, aí sim a Globo "colloriu", assim como a maior parte da mídia (a exceção foi a Folha, entre os grandes) e do establishment. Até artistas com passado de esquerda e de oposição ao regime militar (Marilia Pêra, por exemplo) aderiram a Collor, que Brizola chamava, com razão, de "filhote da ditadura".

As relações da Folha com Collor foram tempestuosas para dizer o mínimo. Ainda mais que o jornal, no cumprimento do mais básico princípio jornalístico (investigar estrelas ascendentes em qualquer ramo de atividade), despachou três repórteres para Alagoas (eu, Gilberto Dimenstein e Elvira Lobato).

O que trouxemos de volta como balanço do governo dele era um retrato bastante ruim.
Em determinado momento, Collor me convidou (e a Dimenstein) para um café da manhã em um hotel de Brasília que só terminou depois da hora do almoço. No dia seguinte, escrevi que ele me parecia um novo Jânio Quadros, candidato a salvador da pátria (não é necessário lembrar o estrago que Jânio fez como presidente e com a renúncia ao cargo).

A ascensão de Collor só se consolidou mesmo quando começou o horário eleitoral de propaganda na TV, graças ao talento do marqueteiro Chico Santa Rita, que falsificou um Collor estadista quando era apenas um aventureiro.

Empurrou Collor também o fato de ter sido o mais desabrido crítico do governo de turno, o do megaimpopular José Sarney.

Pescadores com bandeira de Collor em Maceió (AL)
Pescadores com bandeira de Collor em Maceió (AL) - Jorge Araújo/Folhapress

Fora da TV, a campanha de Collor era igualmente feérica. A chegada de sua comitiva à cidades médias em que faria comícios lembrava cenas de filmes de guerra, em que avionetas chegam em penca, uma atrás da outra.

Enquanto isso, Lula, que ainda não havia se amasiado com construtoras como a Odebrecht, penava em aviões de carreira. Um dado dia, a comitiva do petista ficou travada em um aeroporto do interior do Paraná, esperando uma conexão que não chegava.

A horas tantas, José Carlos Espinoza, um metroviário que fazia as vezes de segurança de Lula, corpo de lutador de boxe, alma de filósofo, aproximou-se do chefe e desabafou: "Lula, se tudo der certo, absolutamente certo, e nada, nada der errado, nós estamos é ferrados" ("ferrados" não foi bem a palavra usada).

No dia da eleição, se acordei me sentindo roubado, fui dormir angustiado: a pesquisa boca de urna do Datafolha dava, como imaginado, o primeiro lugar para Collor, mas, no segundo lugar, havia empate técnico entre Lula e Brizola, com vantagem para o petista.

Otavio Frias Filho, o diretor de Redação, convocou uma reunião atrás da outra para decidir a manchete do dia seguinte.

No limite para o fechamento, Antonio Manuel Teixeira Mendes, então responsável pelo Datafolha, explicou que o empate técnico estava no limite da margem de erro. Otavio bateu o martelo, e a manchete foi que Collor e Lula iriam para o segundo turno.

Era um risco, claro, ainda mais evidente quando as primeiras apurações colocaram Brizola à frente de Lula. Mas acabou sendo um acerto.

A "minha" eleição terminou ali. No segundo turno, fui cobrir o pleito no Chile e só voltei para votar.

A eleição de 1989

Data
15 de novembro de 1989

Candidatos a presidente
Fernando Collor (PRN)
Lula (PT) 
Brizola (PDT) 
Covas (PSDB)
Maluf (PDS) 

Slogan do vencedor
“O caçador de marajás”

População à época
142,3 milhões

PIB
alta de 3,2%

Inflação
1972,91%

Urbanização
78,2%

Expectativa de vida
66,9 anos

Músicas
“Entre Tapas e Beijos” (Leandro & Leonardo)
“Bem que se quis” (Marisa Monte)

Escola vencedora do Carnaval do Rio
Imperatriz Leopoldinense


Fontes: IBGE, TSE

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