Aeroporto de Aécio Neves foi o início da derrocada de um quase presidente

Repórter relembra como descobriu na cidade de Cláudio (MG) que o aeródromo local, construído pelo governo, servia à família do candidato

Lucas Ferraz
São Paulo

A seção “Minha Eleição” toda semana traz relatos de repórteres sobre a cobertura de eleições presidenciais brasileiras do passado.

 

Tudo indicava uma viagem trivial, com o intuito de prospectar pautas no terreno de um dos aspirantes à Presidência.

A campanha eleitoral ainda não havia começado oficialmente naquela manhã de 9 de julho de 2014, quando desembarquei em Belo Horizonte com a cidade num clima de velório coletivo. Na véspera, o Mineirão fora palco do 7 a 1, o pontapé de uma das mais longevas crises da nossa história —em gestação desde o ano anterior. 

A eleição que estava prestes a começar, em certo sentido, ainda não terminou. Marcada pela mentira (que ali feriu mortalmente a presidente reeleita, hoje uma tática eleitoral), pela tragédia que matou Eduardo Campos e por rachar ainda mais o país, seus efeitos ainda estão por aí e devem persistir por mais algum tempo. 

A radicalização é o aspecto mais visível. O outro é a transgressão da ordem institucional, com o impeachment de dois anos atrás relegando à história um momento brasileiro peculiar: o candidato derrotado nas urnas teve papel fundamental na posse do vice da vitoriosa na Presidência. 

O pleito que encerrou duas décadas de polarização entre PT e PSDB (uma era, afinal) confirmou que Minas Gerais estava onde sempre esteve: dois belo-horizontinos foram os protagonistas de um apertado segundo turno em que o voto dos mineiros —segundo maior colégio eleitoral do país— mais uma vez foi crucial (desde 1998 é assim, todos os presidentes eleitos venceram no estado). 

Um dos repórteres da Folha envolvido na cobertura eleitoral, minha função era cobrir Aécio Neves —não a sua agenda, os acordos partidários, que acompanhei superficialmente; buscaria reportagens que pudessem explicar o personagem e seu passado na vida pública. 

A curta viagem era uma movimentação —comum no ofício— que alguns colegas compararam à máxima futebolística de Gentil Cardoso: “quem se desloca recebe, quem pede tem preferência”.

Ex-governador de Minas, ex-presidente da Câmara dos Deputados, neto de Tancredo Neves com status de celebridade nacional e ex-colunista da Folha, o presidente do PSDB parecia mesmo talhado a chegar ao Planalto.

Aeroporto de Cláudio, localizado na fazenda de parente de Aécio Neves, com cadeado na entrada - Lucas Ferraz / Folhapress

Sobretudo naquele momento, com o desgastado governo Dilma Rousseff enfrentando sérios problemas econômicos e chamuscado pela Lava Jato. 

O PSDB vinha de três derrotas seguidas e tinha em Aécio um candidato com o perfil diferente do tucano tradicional. 

Distante da social-democracia originária da sigla, festeiro e muito cioso de sua imagem (a ponto de produzir com o jornal “Estado de Minas”, quando governador, a publicação de uma foto passeando na Praça da Liberdade ao lado da então namorada, hoje mulher, para anunciar a futura vida de casado), o político cultivava excelente relação com o mundo político, econômico, o andar de cima do show business, as colunas sociais, a imprensa. 

Com ares de modernidade (apesar de episódios como a da foto a la Caras), ele sempre ostentava um sorriso que emulava as velhas tradições mineiras, bossanovistas —Itamar Franco e Dilma, os últimos mineiros no Planalto, nunca foram simpáticos como o tucano fazia questão de ser. 

No segundo dia em BH, com a cidade ainda enlutada pelo Mineiraço, esbarrei no que seria uma das histórias da eleição: o aeródromo construído nas terras da família de Aécio em Cláudio, município com cerca de 25 mil habitantes a 150 km da capital. 

Novas conversas e um pouco de pesquisa depois, surgia um quadro promissor antes mesmo da final da Copa do Mundo. Além de inédito, era assunto inflamável, logo ficou claro. Estendi a permanência em Minas para visitar o município o quanto antes —e, para a minha surpresa, o enredo ao chegar lá seria ainda melhor. 

O caso da pista de pouso apropriada pela família do tucano estava maduríssimo, saltando aos olhos para o primeiro repórter que aparecesse bem posicionado. 

Políticos costumam esconder bem situações ou episódios que possam desgastá-los. Há até profissionais na praça com expertise para ajudá-los nessas situações, embora muitas vezes as coisas saiam do controle (vide Jair Bolsonaro e sua vendedora de açaí). 

Ao viajar para Cláudio, na manhã da primeira segunda-feira pós Copa, esperava encontrar alguma blindagem (sobretudo conhecendo o histórico dos irmãos Neves com a imprensa mineira, onde havia trabalhado), mas consegui resolver a apuração no mesmo dia.

Isso só foi possível graças à maneira —alguns considerariam agressiva, com certa razão— que decidi investigar a história. 

Após ir à pista de pouso (fechada) e rodar as estradinhas que levam às fazendas de seu entorno (cheguei na porteira da fazenda de Aécio, classificada por ele como “meu Palácio de Versalhes”, a cinco minutos de carro do aeródromo), me apresentei na Prefeitura de Cláudio —que, ouvi de moradores, deveria ser a responsável pela estrutura— como um interessado em usar o local. 

Omiti, naquele momento, minha condição de repórter. Era —e é— uma tática legítima, utilizada há décadas no jornalismo desde que voltada para o interesse público. 

O método facilitou o trabalho e me permitiu documentar sem filtros o funcionamento da pista. Os simbolismos ficaram patentes: a chave do aeródromo estava sob o poder da família do político que o construiu. Minha decisão, suponho, acendeu ainda mais a ira do candidato e de seu entourage, como veria depois. 

Meu figurino cabia perfeitamente no script: era mineiro (dei até minha condição de itabirano), vivia em São Paulo, telefone 011. Disse que representava uns paulistas que queriam visitar a região, num jatinho, para possíveis negócios agropecuários. 

Com um gravador ligado na mochila, conversei com o chefe de gabinete da prefeitura, que contou quase tudo: quem controlava o aeródromo era a família de Aécio, e não o estado ou a prefeitura, e somente ela poderia autorizar o uso —o mimo custou R$ 14 milhões e nem havia sido inaugurado, além de funcionar irregularmente, sem a autorização da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).

Ele ainda mencionou o processo na Justiça em que o tio de Aécio pedia mais dinheiro pela desapropriação (valor muito acima do mercado local) e as confusões pela posse do terreno, que era público e foi anexado ilegalmente pelo tio na década de 1980, quando ele foi prefeito. Na época, se construiu no mesmo local uma modesta pista de terra bancada pelo governo mineiro durante a gestão de Tancredo Neves, no biênio 1983-84. 

Mais tarde, por intermédio do funcionário da prefeitura, conversei com o primo de Aécio que tinha a chave. Gentil, ele se dispôs a abrir o aeródromo e disse que o primo-candidato sempre o usava nas visitas a Cláudio: “O aeroporto é público, mas ainda é nosso”. 

Antes de deixar a cidade, tive de voltar às pressas para a prefeitura. Tinha esquecido de fotografar um quadro no gabinete com a vista aérea do aeródromo, a única imagem disponível nesse ângulo para ilustrar a matéria. 

À funcionária que me atendeu, disse que precisava mostrar ao piloto dos tais paulistas a condição da pista em que ele iria pousar. 

Ao retornar para São Paulo, tinha praticamente pronta a reportagem que ajudou a minar a imagem do tucano de zelo e decência com a coisa pública —a Lava Jato, até então, mirava apenas na roubalheira do PT e aliados. 

No domingo seguinte, 20 de julho, o jornal trouxe em sua manchete: “Minas fez aeroporto em fazenda de tio de Aécio”. 

Reportar campanha eleitoral é um momento de grande aprendizado para um jornalista, além de permitir ver um Brasil profundo —em muitos sentidos— desconhecido da maioria. 

Em Minas, naquela viagem e nas seguintes, a experiência foi rica graças à variedade de personagens e situações: políticos do interior, primos, tios, sobrinhos e concunhados, velhas raposas, publicitários, homens da roça etc.

No entorno da candidatura tucana, sobrava otimismo e, em certos momentos, pitadas de empáfia quando o assunto era o aeródromo construído nas terras familiares. 
Aécio exibiria ali a “impaciência imperial” demonstrada em 2017, quando o furacão da Lava Jato o abraçou definitivamente. 

No segundo turno de 2014, ao encontrar um preocupado Danilo de Castro no comitê do PSDB em Belo Horizonte, entendi que a situação em Minas não era tão simples como eles pintavam. 

O semblante entregava, certamente por ver nas pesquisas encomendadas o cenário posteriormente confirmado nas urnas. Secretário do tucano no governo e coordenador de sua campanha no Estado, Danilo diria depois que Minas “falhou com um grande estadista”. 

Fotos que já entraram para os anais da crônica política de nosso tempo mostram um desolado Aécio no que era para ser a festa de sua vitória. Para tristeza de muitos, o resultado mudou de última hora. Houve quem o cumprimentasse como novo presidente da República. 

Poucos candidatos à Presidência desde a redemocratização tinham em sua carreira tantos “fios desencapados” como Aécio (a lista é vasta, vai da construção da milionária sede do governo mineiro ao mensalão tucano, passando pela atuação em estatais como Furnas até seus operadores). O político, no entanto, quase virou presidente do Brasil sem ter sido devidamente escrutinado pela imprensa. 

São eloquentes os perfis publicados naquela eleição sobre Andrea Neves, a principal estrategista política do irmão, que acabaria presa. Todos têm em comum a brandura e a falta de rigor que não faltaram a outros personagens.

A opinião pública poderia ao menos ter sido apresentada antes ao modus operandi da família —não faltavam à época elementos e fatos para tal registro. À luz da delação da JBS e dos processos nos quais Aécio ainda é alvo, vale o exercício de imaginar como seria o enredo brasileiro caso ele tivesse sido eleito em 2014.

A reportagem sobre o aeródromo de Cláudio acabou sendo uma das raras exceções —e, por isso, alvo de um intenso bombardeio por parte do grupo de Aécio, que pressionou o jornal, destacou jornalistas-amigos para desqualificá-la e difundiu ataques nas redes (já existia o jogo sujo para desacreditar o jornalismo, hoje em outro patamar). 

A história acabou por carimbar a biografia do político, da Folha e da própria eleição. Três anos depois, grampos do processo que afastou o político do Senado mostraram que a pista ainda era controlada privadamente por sua família. Com a blindagem em Minas, nunca houve uma investigação séria do Ministério Público a respeito. 

No futuro, quando se escrever a história destes (e daqueles) tumultuados dias, o capítulo dedicado a Aécio Neves e seu papel na anarquia institucional renderá uma grande aula de Brasil. 

Hoje transformado em político radiativo (e rebaixado a mais novo integrante da bancada do PSDB na Câmara dos Deputados), o mundo deu as suas voltas: Ronaldo Fenômeno aposentou as camisas “a culpa não é minha”, Luciano Huck apagou as fotos ao seu lado e até Antonio Anastasia, sua cria política, passou a evitá-lo. 

No país das pedaladas biográficas, será impossível deixar de reconhecer, contudo, que Minas estava onde sempre esteve.

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