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Eleições 2018

Jair Bolsonaro só poderia surgir no Brasil

Nenhum país está imune ao populismo à direita ou à esquerda

Rodrigo Tavares

O fenômeno é amplamente conhecido. A emergência de líderes populistas, tanto à esquerda quanto à direita, é estrumada pelo medo. É em momentos de decadência e de desânimo que a população sacrifica a prudência em nome da promessa do abatimento das suas dores.

A tríplice crise que o Brasil atravessa —econômica, de segurança e de ética pública— produziu o candidato Jair Bolsonaro, da mesma forma que as crises na Hungria, Itália e Filipinas criaram Viktor Orbán, Matteo Salvini e Rodrigo Duterte, respectivamente.

Mas se estes fatores estruturais explicassem integralmente a emergência do populismo, porque é que outros países, no redemoinho da crise, tiveram o discernimento de evitar o abismo?

No ano passado, a França, embrulhada numa crise identitária e econômica, escolheu Emmanuel Macron ante Marine Le Pen. Portugal, no meio da crise de 2011-2015, optou por António Costa e não pelas pontas extremas do espetro político.

Existem fatores, específicos ao Brasil, que explicam como é que um político abrutalhado nos modos, regional na influência, divisório nos valores e minguado no intelecto conseguiu-se nacionalizar em poucos anos, sem ter os tradicionais meios de comunicação à sua disposição.

Em primeiro lugar, Bolsonaro é o político que conseguiu, nestas eleições, ocupar, com mais eficácia, o submundo das redes sociais. O Brasil, é importante sublinhar, é um dos países com maior número de usuários de Facebook (4.º), Twitter (6.º) e WhatsApp (3.º) no mundo.

Enquanto líderes tradicionais se acotovelavam para conseguir espaço nas televisões ou nas ruas, Bolsonaro desenvolveu, ao longo dos anos, uma silenciosa e sofisticada infraestrutura de ataque e propaganda nas redes sociais.

Se os seus adversários limitam-se a postar, com regularidade, notícias nas redes, Bolsonaro adotou uma estratégia piramidal de difusão de propaganda, composta por até 300 mil grupos de WhatsApp, com ativistas regionais, municipais e internacionais (incluindo em Portugal).

Uma reportagem da Folha mostrou também que empresários pagam até R$ 12 milhões [2,8 mihões de euros] pelo envio pelo WhatsApp de centenas de milhões de mensagens contra o PT. Enquanto os outros candidatos têm pequenas equipas de especialistas em marketing político, Bolsonaro converteu eleitores em disseminadores de propaganda. Vítimas transformadas em algozes.

Nas últimas semanas entrei em quatro desses grupos de WhatsApp (Somos todos Bolsonaro, Bolsonaro 17 PSL, Bolsonaro17 Presidente e Vídeos de Bolsonaro). Não são grupos de discussão mas plataformas de encaminhamento de conteúdos —quase sempre vídeos e fotografias montadas, com informações falsas ou enviesadas.

Há também muitos áudios e links externos. Nestes quatro grupos, desde que comecei a escrever este artigo há 20 minutos, já recebi 76 mensagens —dezenas de vídeos antigos de líderes do PT com líderes venezuelanos e acusações que o Brasil vai tornar-se comunista; insultos grotescos a Fernando Haddad; pedidos de boicote a marcas ou a figuras públicas que não apoiam Bolsonaro.

É uma espécie de ditadura cibernética. Quem não é membro destes grupos fica surpreendido com o grau de beligerância com que os eleitores de Bolsonaro defendem publicamente ideias insensatas. O  aplicativo foi utilizado para difundir um nível alarmante de desinformação, boatos e notícias falsas, que transformam pessoas normais em soldados.

Se existe uma quase unanimidade fora do Brasil contra Jair Bolsonaro, mesmo entre movimentos de direita, há uma total unanimidade entre os membros desses grupos de que existe um complô internacional comunista para impedir a vitória do deputado nas urnas. A falta de sentido crítico é um indicador de manipulação.

Como 44% dos brasileiros apoiam-se no WhatsApp para formar as suas decisões políticas, Bolsonaro dá-se ao luxo de criticar abertamente a média tradicional e, num gesto profundamente antidemocrático, recusar-se a ir a debates.

Em segundo lugar, ainda que o país tenha sido liderado, desde o início dos anos 90, por governos de centro ou de esquerda, com agendas progressivas nos costumes, os brasileiros são, em geral, conservadores. Quase pudicos.

O último condenado à pena de morte foi executado em 1876 mas, em 2018, 63% da população brasileira ainda é favorável à pena extrema. Apenas 14% defende a legalização da interrupção da gravidez em qualquer circunstância. Fazer topless é considerado um ato obsceno pelo Código Penal.

Quando questionados anualmente pelo instituto de sondagens Datafolha sobre as instituições mais confiáveis, os brasileiros escalam as forças armadas, as polícias e as igrejas ao cume das preferências.

O Brasil é, por detrás da agitação carnavalesca, uma espécie de Emirados Árabes Unidos dos trópicos. Não por acaso, Bolsonaro resgata valores conservadores, que estavam carentes de representatividade política, com o apoio das instituições em que os brasileiros mais acreditam.

A isto está associado o machismo, uma generalizada cultura de estratificação de gênero que outorga mais poder de influência ao homem e objetifica a mulher.

Segundo um estudo de 2017, 61% dos brasileiros homens assumem que têm atitudes machistas, ainda que apenas 17% reconheçam ser preconceituosos.

Para os homens, os comentários misóginos de Bolsonaro são considerados próprios de um patriarca, ao mesmo tempo que muitas mulheres tendem a reagir com indulgência. Se Jair fosse mulher e feminista, a sua aceitação social pelo eleitorado conservador seria recebida com mais glóbulos brancos.

(Recebo mais 64 mensagens com 28 vídeos: Haddad é pedófilo, Haddad tem uma Ferrari que comprou com dinheiro da corrupção, Haddad é um falso cristão, Haddad defendeu o incesto num livro que escreveu em 1989.)

Em terceiro lugar, o Brasil sofre um estio de líderes. Se do regime militar ecoaram vozes nacionais dissidentes que irrigaram com sensatez o debate nacional, seja na política ou nas artes, os últimos trinta anos não geraram lideranças em número e áreas suficientes para acelerar o desenvolvimento econômico e social do país.

Professor de fim de semana na Fundação Getúlio Vargas, costumo pedir aos meus alunos que enumerem anonimamente, num papel, aqueles brasileiros, em todas as áreas, cujas posições públicas contribuem para as decisões deles. Aqueles que servem de referência. Quase sempre as folhas são entregues em branco.

Quando agora se esperaria que despontassem das cavidades da sociedade todos os líderes necessários para defender a causa da liberdade, a maioria esquiva-se ao enfrentamento público, estando mais preocupados em manter uma neutralidade utilitarista que lhes dê latitude de opções para o futuro, com Bolsonaro na presidência.

A maioria dos jornais, das empresas brasileiras ou dos candidatos a presidente que perderam no primeiro turno têm padecido de afasia.

Se o Brasil tivesse líderes políticos defensores de uma direita moderada, o crescimento de Bolsonaro poderia ter sido estancado logo no início. Mas faltam forças políticas que, como o Partido Popular espanhol ou o Partido Conservador do Reino Unido ou do Canadá, defendam consistentemente valores conservadores, tradicionalistas e liberais.

O Brasil nunca teve um José Maria Aznar, uma Margaret Thatcher ou um Stephen Harper. Bolsonaro é criticado por líderes de direita globalmente —até pela extrema-direita de  Marine Le Pen— pela sua falta de consistência ideológica e discurso extremado tosco. Mas, dado o deserto de alternativas à direita, para os brasileiros o capitão reformado é um oásis de esperança.

(Tenho 125 mensagens recebidas nas últimas 3 horas. A última é uma foto de um tweet viral de autor anônimo: "Me perguntaram: se você é cristão, por que vota no Bolsonaro? A pergunta foi para afrontar. Minha resposta: porque prefiro Pedro que era impulsivo, falava besteiras e andava com uma espada mas amava Jesus, do que Judas com discurso mentiroso de ajudar os pobres, mas era ladrão e traidor.)

Em quarto lugar, o Brasil tem um problema com a sua história.

Uma viagem a São Vicente, no litoral do estado de São Paulo, é reveladora. Foi a primeira cidade fundada pelos portugueses no Brasil (em 1532) e é considerada o berço da democracia nas Américas —foi lá que se instalou o primeiro parlamento e foram realizadas as primeiras eleições. Mas o único vestígio deste passado é a Casa Martim Afonso, um local pequeno e quase improvisado com uma exposição de objetos da época.

No Brasil, o futuro é construído apenas a partir do presente, numa permanente revoada inventiva e incessante procura pelo novo.

Para não repetir os erros da história, seria necessário saber que erros foram esses, mas a cultura brasileira é negligente sobre o passado. São poucos os heróis nacionais celebrados coletivamente. São poucas as conquistas da História que se entranharam na memória do brasileiro comum. É pouca a curiosidade pela vida estrangeira dos avós imigrantes.

O meu filho adolescente, estudante no Brasil, conhece melhor o império romano de há 2 mil anos do que a história do império brasileiro de há cinco gerações passadas.

O país também ainda não tratou as feridas da ditadura militar (1964-1985).

Não houve nenhum processo terapêutico como o proporcionado pela Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul, que examinou os crimes do apartheid (1960-1994). A Comissão da Verdade brasileira, instituída mais de 25 anos após o fim do regime militar, não conseguiu universalizar a condenação pública às violações dos direitos humanos.

Ninguém foi preso, ao contrário do que aconteceu na Argentina e no Chile, que condenaram centenas de pessoas pelas atrocidades cometidas durante os regimes militares. Ainda hoje, o golpe brasileiro de 1964, que depôs o presidente eleito João Goulart, é cunhado por alguns, de forma mais benevolente, como uma "revolução" ou um "movimento".

Aqui em Buenos Aires, de onde escrevo esta coluna, alguns intelectuais argentinos dizem-me que seria difícil emergir no país um líder populista que fosse abertamente apoiante do regime militar ou da tortura, como Bolsonaro.

Vale lembrar que o presidenciável foi ovacionado quando, ao declarar na Câmara dos Deputados o seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff, homenageou Carlos Brilhante Ustra, um torturador que chefiou o DOI-CODI, uma espécie de PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) brasileira.

Finalmente, para a tempestade ser perfeita, só faltaria que o adversário no segundo turno das eleições fosse o PT. E foi isso que aconteceu.

Líderes populistas procuram inimigos públicos para neles cristalizar o somatório dos medos e, a partir deles, galvanizar o apoio das massas. Os judeus estão para Hitler, os ciganos para Matteo Salvini ou os imigrantes muçulmanos para Le Pen como o PT está para Bolsonaro. É neste partido, que comandou o Brasil de 2002 a 2016, que se condensam, aos olhos do capitão, todos as virulências.

O fato do partido não ter ainda feito uma autocrítica pelo seu envolvimento em escandalosos casos de corrupção nem ter-se rejuvenescido com novos líderes só asfalta a propaganda de Bolsonaro.

Se o PT tivesse sido derrotado no primeiro turno e o adversário de Bolsonaro fosse Ciro Gomes, Geraldo Alckmin ou Marina Silva, a tese "os brasileiros contra o PT" seria desconstruída. Mas a manutenção do PT na eleição só reforça o bipolarismo e a tese do inimigo coletivo.

Nunca um ato eleitoral foi tão segregador e hostil. Nunca houve tanta animosidade política no país desde a democratização. E nunca os brasileiros foram obrigados a escolher entre um presidente que descriminará metade da população (Bolsonaro) ou será descriminado pela outra metade (Haddad).

(423 mensagens em 24 horas, a maioria com vídeos insultuosos. Nenhuma proposta concreta sobre como enfrentar as crises que abatem o Brasil.)

Rodrigo Tavares
é fundador e presidente do Granito Group. A sua trajetória acadêmica inclui as universidades de Harvard, Columbia, Gotemburgo e California-Berkeley. Foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial.

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