Descrição de chapéu

Constituição deu centralidade aos limites do Estado

Carta, que completou 30 anos em outubro, privilegiou em seus artigos dispositivos sobre finanças públicas

O deputado federal Ulysses Guimarães, à época presidente da Assembleia Constituinte, apresenta o livro da Constituição de 1988 ao plenário da Câmara
O deputado federal Ulysses Guimarães, à época presidente da Assembleia Constituinte, apresenta o livro da Constituição de 1988 ao plenário da Câmara - Lula Marques - 3.out.1988/Folhapress

A Constituição chegou ao aniversário de 30 anos com quase 260 artigos.

Como eles se relacionam? Usando ferramentas de análise de redes, identificamos ligações pouco óbvias. A rede de artigos da Carta não possui em seu centro direitos e liberdades clássicos, mas principalmente limites mais estruturais ao poder do Estado.

Uma ligação entre dois artigos da Constituição existe quando um faz referência ao outro. Por exemplo, a primeira ligação observada se dá no artigo 5º, que diz: "não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84".

Assim, há conexão entre o 5º, sobre os direitos e garantias fundamentais, e o 84, sobre competências do presidente.

Construímos uma rede com 177 ligações do tipo, envolvendo 108 artigos que se conectam. Eles tendem a estar mais próximos quanto mais referenciados forem entre si.

Tomemos como exemplo os limites ao poder de tributar (art. 150) e os impostos da União (art. 153). O dispositivo das limitações do poder de tributar remete oito vezes ao dos impostos da União.

Por outro lado, nota-se a ampla distância entre o artigo sobre propriedade de empresas de comunicação e recursos da educação. Apesar da proximidade de ordem numérica da Constituição (são os artigos 222 e 213), não fazem referências entre si.

Os três mais centrais são os que tratam de disposições gerais sobre administração pública (artigo 37), o de vedações em matéria orçamentária (167) e o de limites ao poder de tributar (150). Não é estranho que tratem de organização do Estado e dos Poderes.

Das matérias tradicionalmente constitucionais, só direitos fundamentais ganharam pouco espaço em termos de remissões na Constituição.

O artigo 37, o mais central, trata de ampla gama em suas dezenas de dispositivos. São mais lembrados os incisos referentes à remuneração dos servidores públicos —revisão anual e o teto.

São citados nos artigos sobre governadores, municípios, servidores públicos, competências do Congresso, estatuto da magistratura, garantias de juízes, Ministério Público e Forças Armadas.

É bastante simbólica a centralidade de um artigo sobre administração pública em nosso esquema. Isso pode decorrer da força de sindicatos na própria Constituinte. Pode ainda decorrer de emendas como reformas da Previdência, que aproximaram regras de servidores de categorias especiais (políticos, juízes).

Pode ter também natureza ideológica, herança cultural de Constituições que sempre reservaram um lugar de destaque ao Estado. Apesar de a Constituição começar suas disposições por direitos e garantias fundamentais, conscientemente ou não, o constituinte deu papel central aos dispositivos sobre Estado, governo e administração pública.

O artigo de vedações em matéria orçamentária (167) é o segundo mais central: faz referência a 12 artigos tão distintos quanto os de administração pública, medidas provisórias, SUS, Previdência, piso da educação. Assim, se a Constituição ampliou as previsões de direitos a serem assegurados pelo Estado, tornou ainda mais centrais os dispositivos sobre finanças públicas.

O terceiro artigo mais central é sobre os limites do poder de tributar (150). Em contexto de fortalecimento de direitos, tais limites funcionam como garantias aos direitos fundamentais à propriedade, à liberdade, à igualdade e da própria segurança jurídica.

A análise de redes ainda possibilita identificação de "comunidades": grupos de artigos que possuem mais ligações entre si do que com o resto da rede. São úteis por confrontarem a divisão formal do texto constitucional.

Isto é, embora os artigos sejam divididos em capítulos e seções, as comunidades permitiriam uma forma mais orgânica de visualizar os dispositivos, uma vez que é determinada pela menção entre eles.

"A Constituição não cabe no PIB" é uma afirmação comum no debate brasileiro. A rede aqui apresentada sugere que o texto constitucional é mais liberal do que se pensa —ao menos no papel.

Pedro Fernando Nery, João Trindade Cavalcante Filho e Rafael Silveira e Silva
Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.