Eunice Paiva lutou incansavelmente por memória, verdade e justiça; conheça sua história

Trajetória de advogada que enfrentou a ditadura será contada em livro do Instituto Vladimir Herzog

Paula Sacchetta
São Paulo

A advogada Eunice Paiva, viúva do deputado federal Rubens Paiva e um dos símbolos da luta contra as arbitrariedades da ditadura militar no Brasil, morreu no último dia 13, marco dos 50 anos do AI-5. Tinha 89 anos e Alzheimer em estágio avançado.

O texto abaixo faz parte do livro "As Heroínas dessa História", que será lançado no ano que vem pelo do Instituto Vladimir Herzog. Organizado por Carla Borges e Tatiana Merlino, trará perfis de 15 mulheres que resistiram à ditadura e lutaram por memória, verdade e justiça depois que seus maridos foram assassinados ou desaparecidos durante o regime.


 

Os pés de Eunice atravessaram diferentes chãos. Tortuosos chãos. Da confortável casa, frequentada pela animada esquerda intelectual carioca, ao chão do DOI-Codi. Dos cômodos da casa em Santos, de onde ouvia seus filhos brincarem enquanto se trancava no quarto e enviava cartas aos generais, ao chão da Faculdade de Direito, ao piso frio do escritório de advocacia, ao porcelanato branco dos tribunais.

Aqueles mesmos pés de Eunice saíam, agora, da estação Sé do metrô de São Paulo e se encaminhavam para, talvez, um dos momentos mais significativos nas travessias de sua vida. Ao abrir a porta do cartório encontrou uma grande quantidade de repórteres, que a aguardavam para cobrir o momento. Seus pés atravessaram o cordão de jornalistas com alguma dificuldade e se detiveram na frente da mesa da escrevente que segurava nas mãos um atestado.

A história, às vezes, acontece em repartições apertadas, em meio aos birôs e carimbos de autenticação. O cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais no 1o Subdistrito da Sé ficou apertado, tamanha a quantidade de pessoas. A repartição abafada, acostumada a trâmites corriqueiros dos registros civis diários, estava descaracterizada devido à enorme quantidade de fotógrafos, cinegrafistas e jornalistas.

 

“Certifico que, em 23 de fevereiro de 1996, foi feito o registro de óbito de Rubens Beyrodt Paiva. Profissão, engenheiro civil. Estado civil, casado. Natural de Santos, neste Estado. Nascido em 26 de dezembro de 1929. Observações: Registro de Óbito lavrado nos termos do Artigo 3o da Lei 9.140 de 4 de dezembro de 1995”, atestava o Estado Brasileiro, 25 anos depois do desaparecimento de Rubens, marido de Eunice.

Os olhos da escrevente se detiveram por alguns segundos nos de Eunice. Apenas o suficiente para demonstrar que as duas estavam ali, de fato, naquele momento.

Eunice, segurando 25 anos de luta pela memória e pela verdade nas mãos, levantava o atestado acima da cabeça como um troféu para os repórteres. Sorria. Era o troféu de uma árdua batalha de luta por justiça, que caminhou junto com a reinvenção de uma mulher. “Minha mãe esteve na capa de todos os jornais no dia seguinte. Com o atestado de óbito erguido, alegre. Uma batalha foi vencida. V de vitória. Ela nunca faria uma cara triste. Bem que tentaram”, conta seu filho Marcelo. À Folha, Eunice disse, em edição publicada dia 24 de fevereiro de 1996: “É uma sensação esquisita sentir-se aliviada com uma certidão de óbito”.

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Eunice Paiva, acompanhada do filho Marcelo Rubens Paiva, recebe, em 1996, a certidão de óbito de Rubens Paiva (seu marido desaparecido desde 1971) - Eduardo Knapp - 23.fev.1996/Folhapress
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Eunice Paiva exibe a certidão de óbito de seu marido Rubens Paiva, desaparecido durante a ditadura militar - Eduardo Knapp - 23.fev.1996/Folhapress

Às vezes, faz um silêncio ensurdecedor por dentro das coisas

Dois capuzes cobriam o rosto de uma mãe e de uma filha. A cabeça das duas enfiadas em capuzes negros, no banco de trás de um carro da polícia. Por dentro do capuz, o silêncio que faz por dentro das coisas quando estão em estado de sítio. Um país inteiro coberto por um capuz negro, impedido de ver sua própria trajetória. Ao tirarem as vendas, a revista dos corpos, uma cadeira de madeira para o interrogatório, uma cela apertada, um colchão. “Depois soube que mamãe ficou dois dias sem se mexer, imóvel. Eles disseram que ela ficou estendida no colchão”, conta Eliana, no livro "Infância Roubada - Crianças Atingidas pela Ditadura Militar no Brasil". Era dia 21 de janeiro de 1971 quando Eunice Paiva foi levada junto da filha, então com 15 anos, às dependências do DOI-Codi carioca, no quartel da rua Barão de Mesquita, na Tijuca, após 24 horas de prisão domiciliar. Eliana passou um dia no local; Eunice, doze.

Eliana e Eunice foram presas a duas celas de distância. “Durante a noite foram colocadas pessoas na frente da cela, gente amordaçada, gente encapuzada, amarrada, imobilizada. Não dava para ver quem eram. Estavam todos estranhamente quietos e eu só ouvia a respiração. Era uma respiração muito difícil por causa do capuz. Tinha um colchonete pequeno e imundo no chão”, relembra Eliana.

Durante os doze dias em que Eunice permaneceu no DOI-Codi, os amigos da família Paiva se reuniam diariamente para pensar estratégias de ação contra a sua prisão e o sequestro de seu marido, Rubens Paiva, que havia sido retirado de casa um dia antes da prisão de sua esposa e do qual não se sabia o paradeiro. Nas dependências da polícia do Exército, Eunice viu a foto de seu marido na lista de presos. Conta que sentiu um alívio: “ele está aqui, está vivo”.

Eunice foi, então, liberada. Já seu marido continuou desaparecido. Pesando 20 quilos a menos, disse ao jornal O Estado de S. Paulo, em rápida entrevista publicada dia 4 de fevereiro de 1971: “Fui solta mas, evidentemente, falta uma peça na família. Há uma angústia profunda em Marcelo e Beatriz, os (filhos) mais novos”.

Os dias dos Paiva, a Pátria e as cartas

“Não é possível que, mais de 60 dias decorridos, conserve-se assim desaparecida uma pessoa humana. Recusamo-nos a acreditar no pior”. Assim inicia a carta de Eunice Paiva escrita dia 21 de março de 1971 e direcionada ao general Emílio Garrastazu Médici, então presidente do Brasil. Depois de deixar as dependências do DOI-Codi, Eunice inicia um processo incessante de busca e pressão política para descobrir o paradeiro de seu marido. A carta foi a primeira de muitas direcionadas aos chefes de Estado na busca desesperada por informações.

Rubens Paiva foi eleito deputado federal pelo estado de São Paulo, aos 34 anos de idade, compondo as primeiras gerações a entrar no Congresso Nacional em Brasília, depois da era Vargas. Antes disso, como engenheiro civil, ajudou a construir Brasília. Quando os militares deram o Golpe de Estado em 1964, teve seus direitos políticos cassados e exilou-se na Iugoslávia e na França por alguns meses. Voltou ao Brasil de surpresa, cinco meses depois. “Entrou em casa pela cozinha dizendo para quem ali estava, 'oi, eu cheguei'. Foi um dos maiores sustos da minha mãe quando, de repente, surge aquele pai de família de cinco filhos na porta da cozinha, dizendo 'voltei, estou de volta'”, conta Vera. Rubens se muda com a família de São Paulo para o Rio de Janeiro, onde volta a exercer suas atividades como engenheiro.

A situação da família era instável, mas Rubens fazia questão manter a alegria dentro de casa. “O estilo do meu pai era e sempre foi da continuidade da vida. Do prazer pela vida. Então, o que ele fez? Alugou um sobradinho em frente à praia do Leblon”, conta Eliana.

O pequeno sobrado localizado no número 80 da Rua Delfim Moreira se agitava com a circulação de políticos, militantes, ex-deputados, ex-ministros e todo o pessoal ligado ao governo João Goulart. “Não havia espaço para tristeza ou depressão, a vida era uma festa naquela casa. Até o dia em que foi assinado o Ato Institucional nº 5. Quando começaram prisões, torturas e mortes, meu pai achou que a coisa era séria e começou a ajudar militantes engajados na luta armada, uma nova geração constituída”, relembra a filha.

Com o AI-5, a dureza do regime recrudescia cada dia mais. A resposta da esquerda acompanhava os passos de radicalização e grande parte de seus membros, já na clandestinidade, partiram para a guerrilha urbana. O ex-deputado preocupava-se com a segurança destes grupos de esquerda, que já vinham sendo perseguidos e, muitos de seus integrantes, desaparecidos ou torturados. “Outros presos e interrogados eram intelectuais, parte integrante do vasto grupo de políticos, em sua maioria cassados. Artistas e intelectuais, que circulavam em casa”, relembra Eliana.

Na manhã do dia 20 de janeiro de 1971, alguns homens que se diziam da Aeronáutica entraram na casa da família Paiva, sem mandado judicial, e levaram Rubens para o quartel do comando da 3ª Zona Aérea, no Rio de Janeiro. De lá, ele foi transferido para o Destacamento de Operações Internas (DOI), no quartel da Polícia do Exército (PE) e nunca mais retornou à sua casa.

Na segunda carta enviada ao presidente Médici, Eunice relata: “Rubens foi preso na minha presença e dos seus cinco filhos; foi visto por testemunhas ao longo do dia 20 de janeiro no quartel da 3ª Zona Aérea de onde foi transportado, no fim da tarde, para o Quartel da Polícia do Exército na Barão de Mesquita; sua fotografia no livro de registro de prisioneiros no referido quartel da PE eu mesma vi, ao lado da minha própria e da de minha filha Eliana”.

Em 22 de fevereiro de 1971, Eunice escreveu ao Deputado Pedroso Horta, na carta em que denuncia a prisão de Rubens Paiva e a subsequente ausência de informações sobre seu paradeiro. Num dos trechos, relata: “assegurou-nos o ministro Buzaid (refere-se a Alfredo Buzaid, ministro da Justiça do governo Médici) que Rubens está vivo, que estaria bem tratado, conquanto isso não signifique que possa afirmar tenha deixado de sofrer alguns 'arranhões'; e, afinal, que é prisioneiro do 1º Exército”. Apesar da assertiva, seu marido nunca mais retornou ao convívio familiar.

Até hoje, não se sabe ao certo o que exatamente ocorreu nas dependências do Exército, tampouco onde estão os restos mortais de Rubens Paiva, declarado morto por desaparecimento político 25 anos depois de seu desaparecimento físico.

Durante esse tempo, coube a Eunice a incessante missão de lutar pela verdade e memória de seu marido, tendo sido umas das principais forças de pressão que culminou na promulgação da Lei nº 9.140, de 1995, que reconhece como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, durante os anos de regime militar. A lei foi um importante marco para as famílias dos perseguidos e desaparecidos políticos do regime militar brasileiro.

A Anistia e a Constituinte

As batalhas empreendidas por Eunice foram, com o passar do tempo, se tornando cada vez mais coletivas. A luta pela apuração do caso Rubens Paiva tomou uma proporção de luta pela verdade histórica de um período que finalmente apresentava sinais claros de falência. Começava a redemocratização no Brasil.

Eunice engajou-se no movimento das Diretas Já e também foi uma das primeiras críticas à Lei de Anistia, que propunha perdão amplo, geral e irrestrito aos crimes cometidos durante o regime militar, permitindo, de um lado, o retorno de exilados políticos ao país, mas de outro, deixando impunes agentes do Estado que haviam cometido graves violações de direitos humanos, que torturaram, mataram e desapareceram com corpos, dentre eles, o de Rubens Paiva.

Em 1988, Eunice integrou a Constituinte, que promulgou a Constituição Federal brasileira, no dia 5 de outubro e sedimentou nosso processo de redemocratização.

A militância

Eunice Paiva compôs, por um período, a Comissão de Mortos e Desaparecidos, formada no governo de Fernando Henrique Cardoso, após pressão capitaneada pela própria família Paiva, a partir de texto-denúncia de Marcelo Rubens Paiva na revista Veja.

Após a repercussão da matéria, José Gregori, ministro da Justiça, elaborou a minuta da Lei no 9.140. Durante o processo de aprovação da lei, os familiares das vítimas redigiram um documento onde declaravam que “É direito de toda a sociedade brasileira, e não exclusivamente das famílias, resgatar a verdade histórica. Essa não é uma questão humanitária entre os familiares e o governo – é uma exigência e um direito da sociedade”.

A batalha pela lei foi árdua. Ela foi promulgada após intensos debates públicos em sessões no Congresso Nacional. Era um pedido da própria Comissão de Mortos e Desaparecidos: que a discussão fosse feita a partir do processo legislativo regular para aprovação de leis – e não fosse fruto de uma medida provisória – como forma de tornar o processo de elaboração legislativa uma revisão histórica do passado recente brasileiro.

Marcelo conta, em seu livro "Ainda Estou Aqui", que quando a lei foi promulgada, chamaram Eunice Paiva para a cerimônia, que ocorreu no Palácio do Planalto. “Ela ficou sentada ao lado do presidente, diante de ministros militares. Ao final, todos se levantaram, abraçaram-se. Fotos. No dia seguinte, vejo na capa dos jornais minha mãe abraçada ao chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso, do Exército brasileiro. É uma das fotos mais importantes do longo e infindável processo de redemocratização brasileira. Tempos de reconhecimento. Um lado sai da trincheira e cumprimenta o outro."

Sobre o abraço, Eunice confidenciou ao filho: “Todos se levantaram, abracei o Fernando Henrique, que estava ao meu lado, virei, tinha um militar, eu não sabia o que fazer, era o general, acabei abraçando-o também”.

Foi a partir da promulgação da Lei nº 9.140 que Eunice e a família Paiva puderam, finalmente, pôr termo à completa ausência de resposta de 25 anos do desaparecimento de Rubens Paiva. E não só a família Paiva, mas diversas outras pessoas presas, torturadas e perseguidas e outros familiares de mortos e desaparecidos políticos.

Para Marcelo, ela não viveu à sombra de Rubens Paiva, “não incorporou o papel da viúva”. Com o desaparecimento do marido, deu uma reviravolta na vida e de dona de casa do Leblon foi estudar direito e se formou aos 47 anos de idade, para ter nas mãos as ferramentas que precisaria para lutar por memória, verdade e justiça incansavelmente. E lutou até o fim.

Eunice Paiva, mulher de Rubens Paiva, em sua casa. À esquerda, um retrato de 1970 do deputado desaparecido - Jorge Araújo/Folhapress

Eunice Paiva morreu no último dia 13, marco dos 50 anos do AI-5. Tinha 89 anos e Alzheimer em estágio avançado. Chico, seu neto, conta que toda a trajetória de luta da avó marcou profundamente a família, afetada e transformada pelos fatos que viveram. Para ele, que tem 30 anos, quando nasceu "a questão já estava resolvida". Mas afirma: “Quando eu digo que está resolvida, é porque está resolvida de certa forma como sofrimento, no pessoal, porque enquanto crime cometido pelo Estado não está nem resolvida nem esclarecida de fato. Mas quem sempre tocou as coisas dessa forma prática em casa e ensinou, primeiro minha mãe e meus tios e depois, nós, os netos, que não cabiam lágrimas para lidar com essa história, mas luta, foi a minha avó".


Colaborou Maíra do Nascimento

Paula Sacchetta é documentarista.

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