Procurados desde fevereiro, nenhum dos 50 principais militares das Forças Armadas que integram o primeiro e o segundo escalões do governo de Jair Bolsonaro (PSL) se interessou em discutir pessoalmente ou por escrito motivos e características do golpe militar de março de 1964, que agora completa 55 anos.
Bolsonaro estimulou que a data fosse comemorada nas unidades militares do país.
O Ministério da Defesa elaborou, pela primeira vez nos últimos 20 anos, uma ordem do dia unificada que foi lida nos quartéis entre quinta (28) e sexta-feira (29). Neste dia, uma juíza de Brasília concedeu liminar a pedido da Defensoria Pública da União proibindo a comemoração da data pelo governo neste domingo (31), mas a decisão foi derrubada neste sábado (30).
Após repercussão negativa do anúncio de celebração, na quinta Bolsonaro disse que a intenção não era comemorar, mas "rememorar, rever o que está errado, o que está certo".
O Comando do Exército, também procurado pela Folha, manifestou-se só em uma nota de três parágrafos. Referindo-se ao golpe como "Movimento de 31 de Março", disse que ele deveria ser "enquadrado em um contexto mundial de Guerra Fria, onde dois blocos antagônicos se enfrentaram e que envolveu toda a nação brasileira, com a ativa participação das Forças Armadas".
"Como tal, deve ser estudado e melhor compreendido, levando-se em conta o contexto histórico em que está inserido", diz a nota.
Os Comandos da Marinha e da Aeronáutica responderam por notas com conteúdo semelhante. "O comandante da Marinha está disponível para abordar assuntos ligados ao preparo e emprego da Força. Demandas de cunho político devem ser tratadas diretamente com o Ministério da Defesa", disse a Marinha. "Os questionamentos de cunho político devem ser encaminhados ao Ministério da Defesa", afirmou a FAB.
A Folha procurou os militares entre meados de fevereiro e começo de março, apresentando um prazo de 20 dias. Indagava se o militar considerava um erro ou um acerto o envolvimento das Forças Armadas nos eventos de 31 de março de 1964 e se achava que os comandantes das três Forças agiram acertadamente naquele ano. Também perguntava o que o militar aprendera sobre o assunto, nas escolas militares, ao longo da carreira.
A reportagem pretendeu debater o assunto por meio de entrevistas pessoais ou por escrito, mas nenhum dos militares aceitou falar sobre a participação das Forças Armadas no golpe de 1964, incluindo o vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), Augusto Heleno, dois dos principais integrantes do governo Bolsonaro.
Mourão alegou falta de tempo. "Agradecemos a atenção e informamos que por indisponibilidade de agenda não foi possível responder a solicitação", diz a nota da assessoria.
Dos 50 militares procurados pela Folha, 26 ofereceram algum tipo de resposta e o restante nada respondeu. Foi o caso da Secretaria-Geral da Presidência (SGP), onde estão dois coronéis e três generais, incluindo Maynard Santa Rosa, que ocupa a secretaria especial de assuntos estratégicos.
Em 2010, em entrevista à Folha, Santa Rosa qualificou o golpe de 1964 como "um regime emergencial, um mal que livrou o país de um mal maior".
Segundo ele, o governo militar foi "autoritário, mas não totalitário", a tortura "nunca foi institucionalizada, é um subproduto do conflito" e "começou com os chamados subversivos. Inúmeros foram justiçados e torturados por eles próprios, porque queriam mudar de opinião".
O ministro da Controladoria Geral da União e da Transparência, Wagner Rosário, que se formou capitão de Exército, disse que se manifesta só em relação a pautas que estão sob a competência do órgão.
Outro general, Oswaldo Ferreira, atual presidente da EBSERH (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), disse não ter "nada a declarar sobre esses questionamentos".
Os cinco militares que ocupam cargos na Caixa Econômica Federal e nos Correios responderam de modo idêntico, por meio das assessorias de imprensa das duas estatais: "Os gestores optaram por não conceder entrevista".
No Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, os sete militares da Aeronáutica, incluindo o ministro Marcos Pontes, argumentaram que estão juridicamente impedidos de se manifestar sobre março de 1964.
Eles responderam nos mesmos termos, por meio da assessoria: "Por força da Lei 6.880/1980, que detalha o Estatuto dos Militares, esses não podem se pronunciar individualmente sobre temas políticos e militares de quando eram comandados ou comandantes. Dessa forma, não podemos responder a maioria das suas questões".
Augusto Heleno, procurado desde o dia 25 de fevereiro, respondeu na sexta (29), por meio de sua assessoria, que não iria se manifestar e que a ordem do dia elaborada pelo Ministério da Defesa "é a referência para o assunto".
Em março de 2014, quando já estava na reserva, o general chamou o golpe de "contrarrevolução" e, analisando o período todo da ditadura militar (1964-1985), disse que "erramos em muitos pontos, acertamos em muitos pontos".
Em 2011, na cerimônia de passagem para a reserva, ele citou seu pai e disse que "lutastes, em 1964, contra a comunização do país e me ensinastes a identificar e repudiar os que se valem das liberdades democráticas para tentar impor um regime totalitário, de qualquer matiz".
Além de Heleno, os comandantes da Marinha e da Aeronáutica mencionaram a Defesa. A ordem do dia foi elaborada e assinada pelo ministro, Fernando Azevedo, e pelos comandantes das três Forças.
Ela diz que "as Forças Armadas participam da história da nossa gente, sempre alinhadas com as suas legítimas aspirações. O 31 de março de 1964 foi um episódio simbólico dessa identificação". Afirma ainda que os eventos estavam inseridos "no ambiente da Guerra Fria, que se refletia pelo mundo e penetrava no país".
"As Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo", afirma o texto lido nos quartéis.
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