Construção de Itaipu provocou graves violações de direitos indígenas, diz PGR

Relatório pode embasar ações judiciais para responsabilização da União e de demarcação de terras indígenas no PR

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Brasília

A construção da usina hidrelétrica de Itaipu durante a ditadura militar (1964-1985) gerou graves violações de direitos indígenas, com adulteração de procedimentos para subestimar o número de índios que habitavam a região.

É o que diz relatório produzido ao longo de três anos pela PGR (Procuradoria Geral da República) e divulgado nesta quinta-feira (25) pela procuradora-geral, Raquel Dodge. O relatório poderá embasar ações judiciais para a responsabilização da União e de demarcação de terras indígenas no Paraná.

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, participa de ato de plantio de uma árvore trazida por indígenas guaranis do Paraná na frente da PGR, em Brasília
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, participa de ato de plantio de uma árvore trazida por indígenas guaranis do Paraná na frente da PGR, em Brasília - Rubens Valente/Folhapress

Maior hidrelétrica do país, Itaipu foi projetada e construída de 1970 a 1982 durante os governos militares dos generais Emílio Médici (1905-1985), Ernesto Geisel (1907-1996) e João Figueiredo (1918-1999) —as obras em si começaram em 1975. Como é uma empresa binacional, pela lei uma eventual ação judicial contra a usina deve tramitar no STF (Supremo Tribunal Federal), daí a participação direta da PGR no caso.

Para criar o lago artificial, a obra inundou cerca de 135 mil hectares e transferiu 40 mil pessoas entre índios e não índios no Paraná. Na área afetada estavam diversos territórios considerados sagrados pelos índios guaranis, como as Sete Quedas.

O estudo concluiu que apenas uma pequena parcela da comunidade indígena de Ocoy foi reconhecida como indígena pela Funai, na época gerida por um general do Exército, e depois reassentada “em condições piores do que as que enfrentava antes”.

“Todas as demais localidades existentes entre Foz do Iguaçu e Guaíra foram completamente ignoradas e as famílias indígenas que nelas viviam foram tratadas como posseiros e invasores (porque não tinha documentos das terras), sendo delas expulsas sem nenhum ressarcimento”, diz o relatório organizado pelos procuradores da República Gustavo Kenner, João Akira Omoto, Julio José Araujo Junior e pela antropóloga Luciana Maria de Moura Ramos, nomeada analista pericial da PGR.

Para estabelecer o número de indígenas que viviam na região na época da obra, a Funai recorreu a um método abolido nos anos seguintes e, segundo o relatório, usado somente naquele empreendimento, a fim de “testar o grau de indianidade” de cada uma das pessoas que habitavam a região de Ocoy.

Na época da ditadura, testes para identificar uma suposta “indianidade” eram estimulados por um coronel do Exército que atuava na Funai.

“Esse era um procedimento que a maioria dos antropólogos não aceitaria realizar por fugir aos parâmetros antropológicos e por violar os procedimentos que eram, já naquela época, internacionalmente reconhecidos no que tange ao autorreconhecimento e ao reconhecimento pelos demais membros do grupo.

Ocorre que [o antropólogo] era filho de criação de Ernesto Geisel e estava profundamente vinculado ao regime militar”, aponta o relatório. O antropólogo e o coronel já faleceram.

A apuração da PGR se estendeu por cerca de 30 meses com a tomada de depoimentos de indígenas, viagens à região, uma perícia antropológica em diversas comunidades indígenas e acesso a mais de duas centenas de documentos e relatórios, dos quais oito produzidos por Itaipu, 13 pela Funai, sete em conjunto pela Funai e Itaipu e quatro documentos de entidades indigenistas, além da análise de mais de uma centena de pesquisas acadêmicas realizadas ao longo dos anos.

Para o procurador Gustavo Kenner, o relatório desmente a história oficial de que havia um “vazio demográfico” na região. “O primeiro e maior efeito desse relatório é o reconhecimento, talvez pela primeira vez pelo Estado brasileiro, de que houve ali uma violação grave dos direitos dos povos guaranis. E reconhecer que ali havia uma identidade e uma territorialidade, que não foi renunciada em nenhum momento pelos índios guaranis. Esse trabalho não é fruto de voluntarismo. Os índios guaranis nunca desistiram, nunca abandonaram essas áreas, embora tenham sofrido sérios processos de violência”, disse.

As obras da hidrelétrica provocaram danos que se estenderam por toda a comunidade indígena e estão na raiz dos problemas atuais de fome, desemprego e dificuldades.

“Isso colocou o grupo numa situação de marginalidade e discriminação. Produziu uma imagem negativa a partir da perda do território e da busca permanente por um espaço para sobreviver. Gerou uma imagem negativa do grupo guarani perante toda a sociedade envolvente na região. Nós estamos falando de violações que foram sedimentadas e construídas num processo histórico que se inicia ainda no final do século 19 e se acentua muito a partir das décadas de 60 e 70 com o processo de instalação da usina de Itaipu, que efetivamente consolida esse processo", disse o procurador Akira.

A procuradora-geral, Raquel Dodge, afirmou na entrevista que o estudo poderá “iluminar essa realidade difícil que o povo guarani enfrenta hoje”. “É um conflito presente, permanente, e que o relatório sirva de base para atuação que o Ministério Público pode empreender em favor deles”, disse Raquel. “A realidade dos guaranis no território brasileiro é uma realidade de conflito, de exclusão, de fome, de necessidades e de extrema vulnerabilidade.”

Bullying

A procuradora-geral disse que há relato de que o bullying escolar levou ao suicídio de uma criança guarani na mesma região. “Essa fricção entre as populações e comunidades é preciso ser relatada e superada porque todos nós queremos para crianças que convivem numa mesma escola é a convivência harmônica e pacífica. E isso resulta muito da visão externa que a sociedade tem dos povos indígenas e que ainda é uma visão que ainda precisa superar aspectos de discriminação, de exclusão, de enfrentamento”, disse Dodge.

A morte foi confirmada pelo tio da criança, Crídio Medina, guarani da aldeia de Ivyraty Porã, no município de Terra Roxa (PR), também presente ao evento na PGR. Ele disse que seu sobrinho Gabriel Morales, de 12 anos, matou-se enforcado com a própria camisa na época do Natal do ano passado.

Crídio disse que o menino vinha se queixando e às vezes chorava porque estava sendo discriminado na escola que frequentava na cidade de Terra Roxa. Segundo o tio, a criança disse aos líderes indígenas da aldeia que estava sendo humilhada na escola porque usava apenas chinelos, seria “sujo” e com roupas mal lavadas e não tinha recursos que as outras crianças tinham, como telefone celular. A fonte de água mais próxima da aldeia fica a cerca de 8 km, por isso as dificuldades das famílias com lavagem das roupas.

Segundo Crídio, os índios relataram o bullying à escola, mas não sabe se alguma providência foi tomada. De acordo com o índio guarani, o pai do menino estava tentando melhorar sua renda para adquirir calçados e roupas melhores para o filho, quando ocorreu o suicídio.

“Disseram para o Gabriel que ele não podia estudar no meio dos brancos, que tinha que ficar na aldeia. Ele estava sentindo vergonha. Isso ele contou para as irmãs pequenas dele”, disse o tio. Ele reivindica a criação de uma escola indígena dentro da aldeia para evitar a repetição do bullying com outras crianças indígenas.

O cacique da aldeia Ocoy, Celso Jopoty Alves, disse que os guaranis necessitam da demarcação de terras na região para sua sobrevivência. Ele afirmou que o discurso do governo de Jair Bolsonaro contra demarcação de terras indígenas “estava previsto antes da eleição”.

“Muitas vezes no governo, na fala deles, tem muita cosa que a gente não gosta. Porque diz que a gente está tomando terra, que [o Brasil] está perdendo terra para indígena. Mas na verdade é totalmente diferente. Quando sai a demarcação da terra, a gente está ganhando, porque está reflorestando e vai cuidar do meio ambiente”, disse Jopoty.

Júlio Garcia, da Comissão Guarani Yvyrupá, disse que a maioria da população brasileira “bate palma” para as declarações do governo de que as demarcações de terras indígenas “vão ter um fim, nenhum centímetro de demarcação de terras indígenas”.

“Quando se fala 'não, vai ter que acabar os povos indígenas'. Olha, o que você sente se nós indígenas falarmos assim para vocês: 'Nós temos que acabar com os não indígenas'. O que você sentiria nessas palavras? Mas nós recebermos [isso] do governo federal brasileiro dizendo que os povos indígenas têm que acabar... Mas nós estamos aqui, sempre resistiremos e lutaremos pela demarcação”, disse Garcia.​

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