Clóvis Rossi por Clóvis Rossi: O dia em que o repórter se deixou entrevistar

Veja entrevista concedida em 2016 pelo decano da Folha, morto na sexta (14) ao 76 anos

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Daniela Francisca Martins Eduardo Muylaert
São Paulo

“Meu cardiologista diz que depois dos 60 a natureza é assassina. E eu noto a cada dia que ele tem absoluta razão”. Com essa frase irônica, o jornalista Clóvis Rossi se apresentou à turma de jornalismo sênior criada pela Folha em outubro de 2016. “Isso aqui é um bate-papo em que vocês podem fazer as perguntas que quiserem, sobre qualquer tipo de assunto, não tem restrição para falar de nada”. Numa evidente inversão de papéis, dessa vez o repórter se deixou entrevistar.

“Peço que não peguem minha avaliação tão a sério, pois ela está formada sobre uma desilusão muito profunda e eu prefiro que vocês adquiram essa desilusão por conta própria”. Clóvis Rossi não escondeu seu desencanto: “Fiz durante muito anos a cobertura de política brasileira, até o ponto de me tornar, mais do que cético, cínico a respeito do mundo político. Acho que é um mundo absolutamente interessado em si próprio, que trabalha para si próprio e que não tem projeto de país, tem projeto de poder. Isso vale para a esquerda e para a direita. Por isso, dei graças a Deus quando me transferiram para a página internacional, porque estava se tornando penoso conversar com aquelas pessoas, fazendo de conta que estava interessado no que elas tinham a dizer”.

“Do meu ponto de vista, a coisa mais fácil do mundo é fazer jornalismo, depende apenas de quatro verbinhos simples, que todo mundo tem de nascença: ler, ver, ouvir e contar. Quem conseguir dominar esses quatro verbinhos com competência e com talento faz bom jornalismo”.

O ceticismo, para Rossi, também é uma qualidade absolutamente indispensável: “Você tem que duvidar de tudo o que te dizem. Agora, ser cínico te complica a vida, porque você descrê de tudo aquilo que está noticiando”.

Sobre a atual crise de valores, foi incisivo: “Pós-verdade não é verdade, é mentira. Os caras embaralham de uma maneira elegante. O Trump dizer que Obama não nasceu nos EUA não é pós-verdade, é mentira. Mas enfim, o mundo hoje é assim, ainda mais nessa era de redes sociais. Começam a aparecer os que se dizem antipolíticos, anti-establishment, como é o caso do João Doria e do Trump, como vários outros exemplos que você tem na Europa. Não é impossível que outros Trumps sejam eleitos”.

Rossi começou a trabalhar às vésperas do golpe de 1964 e teve reportagens censuradas durante o regime militar. “Tenho 53 anos de profissão, fiz tudo que podia fazer, desde radioescuta, no tempo em que não havia videotape. Comecei no Correio da Manhã, cobrindo a conspiração que desaguaria no golpe de 64. Eu sou antigo. Passei a noite de 31 de março rodando no DKW azul do meu pai entre o palácio dos Campos Elíseos, que era sede do governo paulista na época, até o comando do II Exército, onde o general Amaury Kruel ficava decidindo se haveria ou não a conspiração, contando canhões”.

Uma de suas primeiras missões internacionais foi cobrir a Revolução dos Cravos, em 1974, o que considerou “uma irresponsabilidade, porque não sabia nada sobre Portugal”. Acabou batendo às portas do jornal Expresso, onde foi recebido por um rapaz que lhe deu uma aula: “Esse rapaz se chamava Marcelo Rebelo de Sousa e hoje, por acaso, é presidente de Portugal. Mas você tem que ajudar a sorte, tem de ter trabalho também. Cultivem as fontes e não desprezem fonte nenhuma”.

“Devo ter um recorde mundial, absolutamente inútil, de coberturas de transições do autoritarismo para a democracia”, relatou Rossi. “Fiz essa transição na Argentina, no Brasil, no Paraguai, no Chile, na Bolívia, no Peru, na América Central toda —Guatemala, Nicarágua e El Salvador—, Portugal, Espanha e África do Sul —nesse caso a transição do regime de apartheid para a nação multirracial implantada a partir de 1994”.

O período mais conflituoso e desagradável de sua carreira, afirmou, se deu durante a candidatura de Fernando Collor, em 1990, quando chegou a ser ameaçado ao mostrar os problemas da administração em Alagoas. “Toda a grande mídia embarcou na candidatura dele, porque era o único candidato capaz de derrotar o monstro 'Brizula', que era a mistura do Brizola com o Lula. Um erro dramático”.

Mas não contemporizou com a esquerda também: “Eu escrevi mais de uma vez que a esquerda não conseguiu sair dos escombros do Muro de Berlim. Se tiveram alguma ideia antes, foi com Karl Marx no século retrasado. Desde então, você não vê, especialmente no Brasil, uma única ideia dos filósofos ditos de esquerda que se aproveite. Eu não sei o que a esquerda quer fazer, até porque eles não dizem. Precisa aparecer alguém que diga”.

 “Boa sorte e divirtam-se!”, essas foram as palavras que fecharam nosso encontro na sede do jornal. O coração de Clóvis Rossi parou na madrugada do dia 14, em São Paulo. Ele tinha 76 anos.

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