Matilha do bolsonarismo está sempre atiçada, diz especialista da UFBA

Para professor que pesquisa democracia digital, grupo se move por fantasias e inimizades

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Salvador

Após mais de cinco meses de governo, os grupos que orbitaram em torno do presidente Jair Bolsonaro (PSL) vivem um movimento de afluxo e colisões internas, com impacto na administração federal, nas ruas e também nas redes.

O diagnóstico é de Wilson Gomes, 55, professor titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital.

Wilson Gomes posa para foto no campus da UFBA
Wilson Gomes, professor titular da UFBA - Raul Spinassé/Folhapress

O professor classifica o bolsonarismo como uma matilha digital ultraconservadora, uma espécie grupo identitário que se move por fantasias e inimizades e orbita em torno de si mesmo.

Destaca ainda que a militância digital e nas ruas do núcleo duro do bolsonarismo não deve ser subestimada como instrumento de pressão: "As pessoas estão envolvidas nisso como se valesse a vida".

O país teve uma série de manifestações contra e a favor do governo. O sr. vê esse cenário como reflexo da solidez da democracia no país ou como motivo de preocupação?

A democracia se mostrou mais resiliente do que pensavam os pessimistas. No final do ano passado, alguns grupos temiam o pior com a entrada no governo federal de enxames de militares e de extremistas com grande desapreço pela democracia e por minorias. 

Outros achavam que o presidente Bolsonaro seria domesticado pelo sistema político, que haveria peias [freios], pesos e contrapesos provenientes de dentro do sistema político. Até agora não se confirmou nem uma coisa nem outra.

E como vê a atuação do governo Bolsonaro nestes primeiros cinco meses?

O governo Bolsonaro continua forçando limites do que pode ser feito para desafiar o sistema de pesos e contrapesos da democracia liberal, que vem da separação de Poderes. Vivemos num momento muito interessante que é uma espécie de encruzilhada. A democracia nunca foi tão testada nesse limite desde a restauração democrática em 1985.

O sr. vê um encolhimento da base de apoio do governo?

O bolsonarismo não ganhou a eleição sozinho, ele parasitou um movimento muito forte que foi o antipetismo. Tanto que agora começou a surgir como tendência do outono-inverno o sujeito que diz 'não sou bolsonarista' ou 'eu votei no [João] Amoêdo'. O antipetista não bolsonarista é o primeiro grupo que já vai se desgarrando de Bolsonaro.

A matriz contra a corrupção se afasta porque o combate à corrupção não é mais um argumento que o bolsonarismo possa brandir. Os liberais oportunistas, que dariam um cheque em branco ao diabo pelas reformas, também se afastam. O olavismo contribui para produzir repulsa dos militares. As placas tectônicas que formam o bolsonarismo estão colidindo.

Quem fica é aquele bolsonarismo mais hardcore que não deve ser subestimado. Bolsonaro só encolhe até certo ponto, como nós vimos nas manifestações.

Acredita que esta base bolsonarista mais sólida tem condições de, sozinha, servir como instrumento de pressão?

Pode fazer pressão na dobradinha entre os ambientes digitais e atos de rua. Mas não sei se é suficiente para governar. O bolsonarismo é basicamente uma matilha digital ultraconservadora. São pessoas que estão mais preocupadas com coisas como o avanço do comunismo na escola, em ser contra a balbúrdia, contra o sexo, contra as chamadas pautas liberais do ponto de vista moral. É um grupo identitário, profundamente tribal e que se move por fantasias e inimizades. Possui uma identidade existencial quase que religiosa e se une contra inimigos em comum.

Inimigos que incluem outros Poderes como Congresso e Supremo.

É daí que vem a ideia de crise epistêmica, que é um comportamento que consiste em desacreditar as instituições as quais a sociedade atribui a capacidade de arbitrar sobre fatos, sobre o direito, sobre a verdade. É uma espécie de ceticismo artificialmente induzido com propósito de desqualificar as instituições dizendo que elas foram conquistadas pela esquerda. Isso inclui não só os demais Poderes, mas também o jornalismo, a ciência, os intelectuais, os professores.

Mas estes grupos buscam novos mediadores ou querem que não exista mediação?

Eles querem fazer a desintermediação. Substituíram o sistema de mídia tradicional por uma ecologia midiática própria na qual produzem verdades para eles mesmos com base em fake news e em fake philosophers, como Olavo de Carvalho. São céticos em relação a aquilo que não controlam e crédulos diante de qualquer coisa que seja produzida por um deles. Desde que seja um deles, porque é um sistema de vigilância. Quando alguém começa a ir numa linha diferente, logo vai para o index de comunistas, que agora inclui até o Kim Kataguiri.

As redes ajudam a retroalimentar esses discursos?

Retroalimentam de uma forma horizontal, mas não exatamente espontânea. Há uma indústria da produção da informação. Esses grupos de WhatsApp são coordenados, a gente estuda isso. São duas ou três pessoas por grupo que são responsáveis por ficar inserindo conteúdo. Há ali um novo tipo de mediador que publica o que é bom para a tribo, o que é bom para manter a matilha atiçada e pronta para luta. Se não tiver um fato para motivar, eles inventam.

O sr. acompanha a atuação dos grupos neoconservadores nas redes digitais. Quais mudanças enxerga de 2013 para cá?

O primeiro movimento que junta essas pessoas numa espécie de militância precede 2013. Já havia em 2010 militantes anti-homossexuais em torno de uma discussão sobre a criminalização da homofobia, grupos ligados a evangélicos como Marco Feliciano e Silas Malafaia. A partir de 2013, esse negócio explode e começam a surgir os grupos que a gente monitora, que chamo de 'os feios, sujos e malvados'.

São grupos de pessoas contra direitos humanos, de misóginos, de gente com preconceito contra nordestinos, os intervencionistas militares. Eles saem do armário com uma posição mais rude, mais agressiva. 

A partir de 2014, quem ganha relevância nesse meio é o [ex-deputado] Eduardo Cunha. Mas a partir do momento que ele morre politicamente, esse espaço fica em aberto. E Bolsonaro e seus filhos percebem que ali tinha um público, percebem que havia uma demanda por um pensamento conservador de direita. Depois de eleito, o presidente passa a agir como uma espécie de populismo digital. Ele ganhou a eleição no WhatsApp e governa baseado no Twitter. Ali ele monitora o clima e toma as decisões dele.

Mas o Twitter não pode ser visto como uma bolha?

Pensar isso é o erro que a esquerda cometeu. O Twitter não é irrelevante. Ali, não apenas você pode se expressar, mas também sentir o pulso, descobrir tendências. O Twitter é a ponta de um ecossistema digital. A informação que sai dali vai para o Youtube, vai para WhatsApp, há um fluxo grande entre as várias plataformas. A direita percebeu isso e ganhou a eleição com uma gambiarra formada por grupos de WhatsApp.

A esquerda continua patinando nesse segmento?

A esquerda continua pensando em greve, passeata e organização sindical. Temos pesquisas que buscam identificar quais são as vozes da esquerda nas redes digitais. Não tem. Não é o Ciro [Gomes], não é o [Fernando] Haddad. Não há uma figura que seja capaz de articular. A esquerda precisa entender que 2018 está para as arenas digitais no Brasil o que 1989 esteve para a televisão. O pêndulo da relevância saiu de um lado e foi para o outro. Isso não pode ser subestimado. 

Esse novo ecossistema veio para ficar?

Na nossa cultura digital é arriscado fazer previsões porque as coisas mudam muito rápido. O que dá para afirmar é que a digitalização, a datificação e a desintermediação vieram para ficar. Em qual plataforma, ainda não sabemos. Outro problema é o fato de que os brasileiros decidiram de repente participar intensamente da política. Desde 2013, o Brasil enlouqueceu por política. As pessoas estão envolvidas nisso como se valesse a vida.

Raio-X

Wilson Gomes, 55
Professor titular da Universidade Federal da Bahia e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital. Pesquisa comunicação política e democracia digital há mais de duas décadas. O seu livro mais recente é "A Democracia no Mundo Digital", de 2018

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