Gestão Alckmin construiu viaduto que liga estrada a fazenda de empreiteira

Obra custou R$ 3 milhões e beneficiou apenas propriedade do grupo responsável pela construção da via

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Viaduto liga novo trecho da rodovia Tamoios a fazenda da empreiteira Serveng, responsável pela obra

Viaduto liga novo trecho da rodovia Tamoios a fazenda da empreiteira Serveng, responsável pela obra    Eduardo Anizelli/Folhapress

Caraguatatuba (SP)

Durante a administração de Geraldo Alckmin (PSDB), o Governo de SP gastou cerca de R$ 3 milhões em um viaduto que liga uma estrada a uma fazenda, obra sem nenhuma utilidade pública.

A fazenda, em Caraguatatuba, no litoral norte, pertence ao grupo que é dono justamente de uma das empreiteiras responsáveis pela construção da estrada sobre a qual passa o viaduto, a Serveng.

Dito de outra forma, os donos da Serveng ganharam um viaduto de R$ 3 milhões, segundo interpretação de técnicos da Dersa, a estatal paulista que cuida de infraestrutura rodoviária e é a responsável pela obra.

Levantamento feito pela Folha na Justiça mostra que o grupo recebeu pelo menos R$ 60 milhões do estado por terras desapropriadas para a abertura da estrada. Em nenhum dos processos de desapropriação há referência à construção do viaduto como eventual compensação pelo uso das terras.

A fazenda é do grupo Soares Penido, que teve uma receita de quase R$ 1 bilhão em 2018 e tem duas das herdeiras do negócio na lista de bilionários da revista Forbes, com US$ 3,2 bilhões. Além do grupo de engenharia, a família detém 15% da CCR, a maior empresa de concessões do país.

O viaduto foi construído numa obra chamada Nova Tamoios Contornos, uma estrada de 33,9 km que vai ligar Caraguatatuba ao porto de São Sebastião e servirá para evitar engarrafamentos quando a duplicação da rodovia Tamoios na serra estiver pronta.

A nova estrada foi licitada em 2012 por R$ 1,32 bilhão, um valor que o governo comemorou por ter ficado 32% abaixo do preço de referência da obra, de R$ 1,9 bilhão.

Serveng e Queiroz Galvão, ambas acusadas de corrupção na Lava Jato, foram as empresas vencedoras. O valor final da obra, porém, deve ultrapassar R$ 3,2 bilhões, após aditivos e mudanças no projeto.

A obra está parada desde julho do ano passado, com acusações de ambas as partes: o governo diz que as empreiteiras a abandonaram, enquanto as empresas acusam o governo de não respeitar o contrato.

As últimas medições apontam que 76,4% da estrada foi construída, mas o governo de João Doria (PSDB) decidiu contratar a Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), ligada à USP, para checar o que foi feito e se os pagamentos correspondem às obras realizadas.

Laurence Casagrande, que foi secretário de Logística e Transportes e presidente da Dersa no governo Alckmin, disse inicialmente, por meio de seu advogado, não se lembrar desse viaduto, mas que não havia ilegalidade na obra. Depois, alegou ter havido exigência do licenciamento ambiental (leia abaixo). 

Por causa de suspeitas de desvios de R$ 625 milhões no Rodoanel Norte, Casagrande ficou preso por cerca de 90 dias. Ele nega ter cometido irregularidades nessa obra.

O primeiro projeto de uma nova rodovia ligando São Sebastião a Caraguatatuba data de 2008. O plano do DER (Departamento de Estradas de Rodagem) era fazer uma rodovia próxima ao mar. Foi esse projeto que a Dersa licitou em 2012.

O problema é que o traçado original tinha um grande impacto ambiental e a Cetesb, agência ambiental do estado, ameaçava não aprovar a obra. Como passava na área urbana, os gastos com desapropriação seriam elevados.

Um novo traçado foi apresentado em 2016, quando a obra já havia começado. Com a estrada alocada mais perto da Serra do Mar, aumentaram os quilômetros de túneis (de 5,6 para 6,7) e de pontes e viadutos (de 4,5 para 5,8).

Viaduto que a Dersa construiu ao custo de R$ 3 milhões, em Caraguatatuba, só serve uma fazenda que pertence à empreiteira que fez a obra, a Serveng
Viaduto que a Dersa construiu ao custo de R$ 3 milhões, em Caraguatatuba, só serve uma fazenda que pertence à empreiteira que fez a obra, a Serveng - Eduardo Anizelli/ Folhapress

Apesar de ser uma obra mais complexa (e mais segura) do que o projeto original, Casagrande dizia que não haveria aumento no valor da obra, o que se provou equivocado. Só um dos aditivos de 2016 aumentou o valor de um dos lotes da Serveng em R$ 53,7 milhões e alterou o prazo de entrega da obra, que deveria estar pronta em 2015, para 2017.

Em vez de uma nova licitação, porque a obra mudara completamente, a Dersa decidiu continuar a estrada com as empreiteiras que haviam vencido a licitação de 2012, a Serveng e a Queiroz Galvão.

“Se o projeto da estrada mudou, o governo deveria ter feito uma nova licitação. É o que manda a lei”, diz o advogado Toshio Mukai, especialista em concorrências e autor de livros sobre o tema.

“Com tantas mudanças no projeto, não dá para saber se o menor preço de 2012 continuava valendo.”

Tanto em 2012 quanto em 2016 não houve questionamento por parte do governo sobre eventuais conflitos de interesse de contratar a Serveng para fazer uma estrada que iria valorizar suas terras.

Um especialista em licitações que pediu anonimato diz que a Serveng pode ter oferecido um preço baixo irreal para valorizar a sua fazenda.

Ex-secretário nega irregularidades, e gestão não comenta

O ex-secretário de Logística e Transportes Laurence Casagrande disse inicialmente por meio de seu advogado, Eduardo Carnelós, que não se lembrava desse viaduto, mas ressaltou não haver irregularidade na obra.

Segundo Carnelós, a estrada é fechada e não permite que seja acessada a partir de alças. No trecho que a reportagem da Folha visitou, era possível chegar à fazenda pelo viaduto a partir da estrada.

“O que talvez haja é a preservação de caminhos preexistentes e a manutenção da conectividade de propriedades que foram segmentadas pela instalação da nova rodovia, evitando, assim, o aumento desnecessário das desapropriações”, disse Carnelós em email.

"E isso, friso, certamente ocorreu em todo o traçado, independentemente de quem fossem os proprietários das áreas atingidas.”

Segue: “Enfatizo que eventuais viadutos ou outros dispositivos construídos com esse propósito não podem permitir o acesso privado à rodovia, que é fechada, conforme eu já esclareci. Portanto nenhum benefício foi proporcionado aos proprietários cujas áreas foram cindidas pela obra”.

Posteriormente, Laurence enviou nota à Folha nesta quinta (05/09) dizendo que o viaduto buscou atender a uma exigência do licenciamento ambiental feita em relatório da Cetesb (agência ambiental do governo paulista) datado de agosto de 2012.

Foi o único documento que ele apresentou para justificar a construção do viaduto para atender a uma fazenda privada.

“Uma das exigências contidas na licença prévia ambiental do Contorno Sul de Caraguatatuba foi para que a Dersa apresentasse solução para evitar ’a obstrução da estrada particular de acesso à propriedade’. A não solução desse problema poderia resultar no surgimento de remanescentes isolados que, além de aumentar o custo das desapropriações, induziriam indesejadas invasões”, afirma a nota.

Como não havia opção, de acordo com Laurence, os técnicos da Dersa buscaram “a solução de menor gasto”. “Escolheu-se fazer a ligação em um local que favorecia a passagem da estrada interna sobre a rodovia, em vez de elevar as duas pistas da nova rodovia, pois isso resultaria em dois viadutos. Portanto, o citado viaduto não é ‘obra sem nenhuma utilidade pública’."

Laurence negou na nota ter dito que “não se lembra desse viaduto”. A expressão correta, segundo ele, foi que “não sabe a qual viaduto o senhor refere-se”.

Nessa área da obra na Fazenda Serramar, afirma o ex-secretário de Alckmin, há várias pontes e viadutos. A reportagem da Folha especificou que se tratava do viaduto que ligava a nova estrada à entrada da Fazenda Serramar.

Laurence disse na nota que não foi feita uma nova licitação para a estrada quando foi mudado o seu traçado porque a obra já tinha começado e que a Cetesb liberou as licenças por trechos, não do empreendimento completo. O desconto obtido na licitação, ainda segundo Laurence, foi de 32%, o melhor índice conseguido "nas contratações de obras da Dersa naquele período” (2012).

Prossegue o texto: “Portanto, fazer uma nova licitação implicaria em rescisão unilateral de contratos parcialmente executados (com custos novos contra o erário) e o risco de a nova licitação não trazer preços tão vantajosos”.

A nota de Laurence também critica os valores usados na reportagem —todas as cifras citadas são da Dersa. Segundo a estatal, a estrada foi licitada por R$ 1,9 bilhão, mas deve ultrapassar os R$ 3,2 bilhões quando ficar pronta —a obra está parada desde dezembro, por abandono por parte das empreiteiras, segundo o governo, e ainda falta cerca de 15% para a estrada ser concluída.

Diz a nota: “A comparação entre o valor ‘licitado’ e ‘final’ da obra, na forma como foi publicada pela reportagem, está imprecisa. O leitor não consegue saber que os valores estão em datas bases diferentes. Os reajustes de preços nos contratos públicos em razão da inflação são uma imposição da Lei de Licitações, e não uma decisão do contratante. Portanto, deveria ser desprezado para efeito de comparação ou seu percentual informado ao leitor”.

Preso por cerca de 90 dias na Operação Pedra no Caminho, do braço paulista da Lava Jato, Laurence é réu na Justiça Federal em ação penal na qual é acusado, junto com outros 13 executivos, de ter desviado R$ 625 milhões na obra do Rodoanel Norte. Sua defesa diz que as acusações vão se provar infundadas ao final do processo.

A Secretaria de Logística e Transportes de SP não quis comentar o caso do viaduto. Em nota, disse que vai contratar a Fipe “para produzir um estudo sobre a atual situação dos trechos referentes aos lotes que compõem as obras da Nova Tamoios Contornos”.

Segundo a secretaria do governo Doria, “a decisão foi tomada para assegurar o bom uso dos recursos públicos. É um passo para que o estado possa retomar e concluir este empreendimento, dentro da forma da lei, com segurança”.

Na visão do governo, “as construtoras paralisaram os serviços unilateralmente em dezembro passado”. A nota afirma que a nova diretoria da Dersa ”apoia toda e qualquer investigação e vai colaborar de forma integral com a Justiça e outros órgãos de controle para a elucidação de dúvidas em busca do interesse público”.

Após a nova manifestação de Laurence em 05/09, a secretaria foi questionada pela Folha sobre as alegações dele e não quis se pronunciar.

Alckmin e a Serveng não se manifestaram. O grupo recomendou que a Folha buscasse as informações na Dersa.

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