Promessa de Bolsonaro sobre reforma agrária acelera despejo de sem-terra no PA

Juízes têm determinado reintegrações de posse após anúncio de paralisia de programa

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Eldorado do Carajás e Marabá

Após sonhar por 11 anos com a regularização da primeira terra própria de suas vidas, o casal de trabalhadores rurais Adeilson Vieira e Lenir da Conceição tem data e hora marcada para voltar à estaca zero: 9h do próximo dia 17 de setembro.

Esse foi o prazo fixado pelo juiz agrário de Marabá, Amarildo Mazutti, para o cumprimento da reintegração de posse da fazenda Maria Bonita, do grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas.

A área foi tomada em 2008 por famílias do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e  localizada em Eldorado do Carajás, palco do massacre de 19 sem-terra por PMs, em 1996.

“Não temos nada lá fora”, diz Conceição, 52, diante da casa de madeira que construiu em seu lote de 25 hectares. O marido, quatro anos mais novo, completa: “Se nós chegarmos a sair daqui, é debaixo de uma ponte ou a beira de uma estrada. Se permitirem ainda para nós, né?”

Em uma plantação, o casal Adeilson Vieira e Lenir da Conceição está com o filho Raidouglas. Eles estão de pé, olhando para a câmera. O filho está com uma blusa cinza estampada, calça jeans e um boné vermelho. O pai veste uma camiseta preta e uma bermuda jeans. Lenir veste uma camiseta amarela que vai até abaixo do quadril e shorts jeans. Ela está com o cabelo preso. Os três estão sérios.
O casal de trabalhadores rurais Adeilson Vieira e Lenir da Conceição e o filho Raidouglas em meio à plantação em lote dentro da fazenda Maria Bonita, tomada pelo MST, em Eldorado dos Carajás (PA); família corre o risco de ser despejada em setembro - Fabiano Maisonnave/Folhapress

A decisão liminar para reintegração de posse foi tomada em audiência no último dia 11. Para fundamentá-la, Mazutti se embasou na decisão do governo Jair Bolsonaro, logo após a posse, de paralisar o programa de reforma agrária.

Com a suspensão, o Incra interrompeu as negociações com a AgroSB (antiga Agropecuária Xinguara), do grupo Opportunity, para a compra da área, de cerca de 5.500 hectares. Ali o MST distribuiu lotes a cerca de 226 famílias, rebatizando o local de acampamento Dalcídio Jurandir, uma homenagem ao escritor e militante comunista paraense.

“A AgroSB negociou com o Incra e, apesar do empenho de ambos, a negociação não avançou para o objetivo proposto, e a AgroSB manteve a decisão de reivindicar na Justiça o cumprimento das liminares de reintegração de posse concedida há mais de dez anos”, afirmou a empresa, via assessoria de imprensa.

O juiz, em sua decisão em favor da AgroSB, afirmou: “O juízo não pode dispor de um direito que só cabe à parte [venda da área] nem tampouco cabe realizar políticas públicas de responsabilidade do governo federal e do Incra". 

Em entrevista à Folha em seu gabinete, no fórum de Marabá, o juiz repetiu o argumento: "Não podemos fazer reforma agrária. Não temos base legal para dizer: ‘Eu vou tirar a terra de você e vou dar pra você'”.

Mazutti diz esperar que o governo Bolsonaro reabra o programa de compra de terras. “Isso vai ajudar para a redução dos conflitos agrários aqui na região.”

Essa possibilidade, porém, não está no horizonte. Bolsonaro colocou a questão agrária nas mãos de dois ruralistas, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e o secretário de Assuntos Fundiários da pasta, Nabhan Garcia

Em 13 de julho do ano passado, ainda candidato, Bolsonaro defendeu os policiais militares condenados pelo massacre e atacou o MST, durante visita de campanha a Eldorado do Carajás.

“Quem tinha que estar preso era o pessoal do MST, gente canalha e vagabunda. Os policiais reagiram para não morrer”, discursou Bolsonaro, diante de um monumento erguido em homenagem aos sem-terra mortos, segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo.

Na campanha, Bolsonaro chegou a prometer que classificaria o MST como grupo terrorista, o que não aconteceu até agora.
 

Jurisprudência

Mazutti não foi o único juiz a citar suspensão da reforma agrária para decidir contra os sem-terra. Em março, o colega Haroldo Silva da Fonseca determinou a reintegração de posse da fazenda Santa Lúcia, em Pau d’Arco (PA), palco de chacina de dez trabalhadores sem-terra por policiais civis e militares em maio de 2017

Na decisão liminar, Fonseca aceitou o argumento do proprietário, Honorato Babinsk Filho, que incluiu nos autos a circular do governo Bolsonaro de paralisia da reforma agrária. No último dia 25, em uma audiência, ele suspendeu a reintegração e marcou uma vistoria judicial para este mês.

Segundo estimativa da CPT (Comissão Pastoral da Terra) em Marabá, somente no sul e sudeste do Pará há pelo menos 20 áreas em situação semelhante e, portanto, sujeitas à reintegração de posse. Com isso, cerca de 4.000 famílias correm o risco de ser despejadas nos próximos meses.

Neste ano, já houve duas reintegrações de posse na região. Para setembro, além da fazenda Maria Bonita, há outra reintegração marcada no município de Breu Branco, de acordo com a CPT.

“Durante um tempo, a gente conseguia comprovar que existia um acordo, que as famílias que seriam assentadas eram as mesmas que seriam retiradas se acontecesse a reintegração de posse”, afirma advogada da CPT em Marabá Andréia Silvério, que defende os sem-terra de Eldorado do Carajás. 

“Agora, por causa dessa determinação de suspender a reforma agrária, os juízes estão entendendo: ‘Já que isso não vai ser resolvido administrativamente, então a decisão é de devolver o suposto direito de posse pra pessoa que se identifica como proprietário da área’”, afirma.
 

Trabalho perdido

Caso a reintegração seja de fato cumprida, o casal Vieira e Conceição e o filho do casal, Raidouglas, 22, perderão as plantações de mandioca, banana, feijão, abacaxi, maracujá e cana, além do pasto que alimenta as vacas leiteiras da família.

Maranhense, evangélico e com ensino fundamental incompleto, o casal se sustentava trabalhando em fazendas da região, em serviços como limpeza de pasto e colocação de cercas de arame. No lote, pela primeira vez conseguiu trabalhar por conta própria. 

“Estou com 22 anos de movimento e venho lutando pra ganhar um pedaço de terra. A única chance que eu tive foi aqui, aí vai tudo água abaixo”, afirma Vieira.

Sob um céu lilás, uma placa aparece em primeiro plano, do lado esquerdo da fotografia, em uma estrada de terra que leva a uma casa de madeira. A placa, também de madeira, tem como principal cor a vermelha. Nela está escrito "Acampamento Dalcídio Jurandir, 25/julho/2008". Embaixo, há o logo do MST, que é o mapa do Brasil de onde saem dois camponeses, um homem, com um facão na mão, e uma mulher. Na parte de baixo da placa lê-se: "lutar construir reforma agrária popular".
Entrada de assentamento do MST em Eldorado do Carajás (PA); parte das famílias deverá desocupar a área após liminar concedida pela Justiça em favor da AgroSB, do grupo Opportunity - Fabiano Maisonnave/Folhapress

Nem todo o acampamento será despejado. Pela decisão liminar, a vila ficou de fora da reintegração de posse, assim como a fazenda Caroço do Olho, área contígua também de propriedade da Agrosb, empresa ligada ao grupo Opportunity. 

Com isso, estima o MST, a liminar provocará o desalojo de metade das 226 famílias.

​A fazenda foi tomada pelo MST durante o escândalo da Operação Satiagraha, que prendeu Dantas, acusado de corrupção e lavagem de dinheiro. Em 2009, a Justiça Federal chegou a determinar o sequestro de 500 mil hectares do grupo Opportunity no sudoeste do Pará, área equivalente a pouco mais do que três municípios de São Paulo.

Dois anos depois, porém, as provas que levaram à condenação de Dantas foram anuladas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob a justificativa de participação irregular de agentes da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) nas investigações. 

Via assessoria de imprensa, a AgroSB informou que, dos 500 mil hectares, 250 mil hectares estão preservados e outros 70 mil hectares, invadidos. A empresa diz que tem 20 mil hectares de plantações e 170 mil cabeças de gado.

“Criada em 2005, a AgroSB, empresa dos fundos de investimentos geridos pelo Opportunity, tem como objetivo ser um modelo na produção de proteína animal e vegetal aproveitando as condições naturais positivas do sul/sudeste do Pará para a atividade."

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