Com hiperpolarização, iniciativas em defesa do consenso se multiplicam

Grupos de esquerda e de direita buscam conversar em contraposição ao radicalismo de Bolsonaro

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São Paulo

Um ano atrás, os deputados federais Sâmia Bomfim (PSOL-SP) e Kim Kataguiri (DEM-SP), membro do MBL (Movimento Brasil Livre), trocavam ofensas em um debate pré-eleitoral na USP.

Em maio deste ano, lançaram farpas mútuas nas redes sociais. Com ironia, Sâmia deu apoio a Kim, após ele ser criticado por bolsonaristas. O deputado devolveu insinuando que a colega está acima do peso.

Nesta segunda (9), os dois vão estrelar um vídeo do site Quebrando o Tabu, em que se sentam para conversar e responder a perguntas em comum.

Os deputados federais Kim Kataguiri (DEM-SP), do MBL e de direita, e Sâmia Bonfim (PSOL-SP), de esquerda - Antonio Cruz/Agência Brasil e Roque de Sá/Agência Senado

Num momento de intensa polarização no país, iniciativas como esta têm se multiplicado. O objetivo declarado é buscar pontos de contato entre adversários e pregar tolerância mútua.

“Quando fazemos o convite, a gente acha que a pessoa não vai topar, mas eles ficam até felizes”, diz Guilherme Melles, diretor de criação e conteúdo do Quebrando o Tabu.

Já estiveram no chamado “Fura Bolha”, feito em parceria com a Plataforma Democrática, os deputados Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e Janaina Paschoal (PSL-SP).  

“Juntamos pessoas extremas, e a gente acha que vai dar uma treta incrível. Mas quando conversam olho no olho, são simpáticos. Não necessariamente mudam de ideia, mas fica provado que a internet engana bastante no quanto a gente se odeia”, comenta Melles.

Sâmia diz que o debate foi respeitoso. Esquentou em alguns momentos e teve concordâncias nas críticas a Bolsonaro.

“Minha aposta era que o debate serviria para mostrar que não é porque tenho posições firmes, consideradas por alguns radicais, que sou intolerante ou não consigo respeitar as diferenças”, diz a deputada.

Freixo, colega de partido dela, diz que o debate com Paschoal foi aprovado por 95% das pessoas que comentaram com ele a iniciativa. O deputado diz que o contato com adversários pode ser útil.

"Aqui na Câmara tenho muito diálogo com o Alexandre Frota [PSDB-SP]. Estou sempre dando material para ele sobre as contradições do governo. Se ele fala as mesmas coisas que eu, o impacto às vezes é maior, por ele ser uma pessoa de direita. Tomara que fale mais", afirma.

Mais recentemente foi a vez de o próprio MBL defender maior abertura ao diálogo. Assim como o Quebrando o Tabu, o movimento traçou o diagnóstico de que ao tentar "lacrar”, fortalecia o inimigo, que também tinha aprendido a usar essa tática.

Ao baixarem o tom, ambos relatam ter perdido engajamento ou seguidores. Viralizar convergências, afinal, é mais difícil.

"A gente percebeu que ficou estéril o debate, os dois lados não se ouviam. O desafio é construir, através da boa discordância, um espetáculo capaz de fazer com que as pessoas convivam com o contraditório e que tenha apelo suficiente para atraí-las", diz Renan Santos, coordenador do MBL. 

Depois do mea-culpa, o grupo começou a construir pontes com quem pensa diferente. Santos participou de debate com outros movimentos de renovação política. Na plateia, nomes antes atacados pelo MBL, como Marina Silva e Marina Helou, da Rede. 

Já Kim, além do vídeo com Sâmia, elogiou a deputada petista Erika Kokay (PT-DF) em plenário e costuma conversar com Freixo. 

A postura de Bolsonaro na Presidência, ao escolher voltar-se apenas a seu núcleo duro de apoio, também provocou união de setores opositores.

É o caso do grupo Direitos Já, lançado na última segunda (2), e que reuniu representantes de 16 partidos, do PC do B ao PL.

O movimento, endossado por 1.500 pessoas, pretende atuar como observatório na defesa de valores como direitos humanos e liberdades individuais.

“Um país não pode caminhar dividido, uma democracia pressupõe o espaço de diálogo. Nós não negamos as divergências, muito pelo contrário. Estamos lutando porque a democracia é o instrumento que permite a diversidade”, diz Fernando Guimarães, sociólogo do PSDB que coordena o movimento.

Nomes como Flávio Dino (PC do B) e Ciro Gomes (PDT) estiveram presentes. Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Gilberto Kassab (PSD) enviaram vídeos.

Num exemplo da dificuldade para construir convergências, houve representantes do PT, mas Fernando Haddad (PT) não compareceu. A militância do partido critica o Direitos Já por não abraçar a causa “Lula Livre”, que não tem o apoio de todos os demais participantes.

 
Lançamento do Direitos Já, no Tuca, em São Paulo, em 2 de setembro de 2019
Lançamento do Direitos Já, no Tuca, em São Paulo, em 2 de setembro de 2019 - Ricardo Durand/Divulgação Direitos Já

Na mesma linha, o Pacto pela Democracia, surgido em 2018, reúne 87 organizações que defendem valores básicos de tolerância e convivência.

"Quando começamos, a ideia era debater a nova democracia. Mas percebemos que, com o clima do jeito que está, primeiro é preciso preservar a democracia e depois debater seu aprimoramento", afirma Ricardo Borges, coordenador-executivo do Pacto. 

Em 15 de setembro, a entidade vai promover o Dia Pela Democracia na avenida Paulista, com debates e apresentações defendendo respeito aos princípios democráticos.

Um ponto positivo da atual polarização, segundo ele, é a quantidade de pessoas preocupadas com o tensionamento da sociedade. "Quanto mais radicalizado se torna o discurso oficial, mais gente percebe a importância de um diálogo e de afirmar os princípios de convivência", afirma.

Criado em 2014, o site Spotniks é um dos veículos que mais têm investido em iniciativas contra a polarização. Desde maio, vêm publicando em seu canal no YouTube diversos quadros com essa temática.

O carro-chefe é o "Mude Minha Opinião", no qual uma pessoa se aventura em um ambiente ideologicamente hostil e desafia adversários para um debate. Exemplos recentes foram um defensor da reforma da Previdência num evento sindical e um ateu na Marcha para Jesus.

"A gente não quer sacanear, quer ser respeitoso, as pessoas percebem isso", disse Felipe Hermes, um dos sócios da empresa.

Nunca, segundo ele, houve algum episódio de tensão, no máximo xingamentos ocasionais. "Na Marcha para Jesus, algumas pessoas até nos ajudavam, pedindo para ninguém passar em frente da câmera", afirma. 

Para ele, "existe um mercado de ideias bastante aberto para consensos". "Você sempre teve extremos, o que ocorria é que os extremos falavam sozinhos. Quando há um choque entre os dois, abre-se espaço para iniciativas como essas", afirma. 
 

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