Família de Adélio carrega estigma da facada e só tem notícias dele pela TV

Parentes de Montes Claros (MG) nunca visitaram autor de ataque a Bolsonaro e afirmam que ele não é um monstro

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Montes Claros (MG)

​“Quando eu escutei aquilo, parei e pensei: é tio Tuca. Aumentei a televisão até o último volume e ouvi: Adélio Bispo de Oliveira acabou de furar Bolsonaro.”

Fazia uns dois anos que Jenifer Poliana Dias de Oliveira, 21, não via o irmão de seu pai. Na tarde de 6 de setembro de 2018, a foto surgiu inesperadamente na tela, revelando à família seu paradeiro e o crime que tinha acabado de cometer.

Em Montes Claros, cidade de 400 mil habitantes no norte de Minas, o homem que esfaqueou o então candidato Jair Bolsonaro (PSL) é lembrado pelos parentes como Tuca, o tio e irmão religioso, correto e trabalhador, que em condições normais, na opinião deles, nunca teria feito o que fez.

Nos relatos feitos à Folha, três dos quatro irmãos de Adélio, uma cunhada e duas sobrinhas narraram a angústia da falta de notícias e a luta para mostrar que ele não é o monstro apontado por tantos, mas, sim, alguém com uma doença mental que precisa se tratar.

Sem estudo e sem dinheiro, a família do homem que quase matou o hoje presidente da República é aterrorizada pelo medo de que o irmão mais velho de Adélio, que é doente cardíaco e se afundou em tristeza desde o ocorrido, morra sem vê-lo uma última vez.

Aldeir Ramos de Oliveira, 52, ultimamente só tem notícias do irmão pela mesma TV que informou à filha Jenifer o esfaqueamento durante o ato de campanha em Juiz de Fora (MG), que completa um ano na sexta-feira (6).

“A gente não sabe como ele está e não tem como ir lá visitar”, diz Aldeir, cabisbaixo. Ninguém da família teve como viajar a Campo Grande (MS), onde Adélio está preso desde o ataque, em penitenciária federal de segurança máxima. A transferência é descartada pela Justiça, que vê risco à integridade física dele fora dali.

Quando a reportagem explica as condições da prisão —cela individual, duas horas de sol por dia, ambiente 100% controlado e vigiado—, a mulher de Aldeir, Maria Inês Dias Fernandes, 49, se espanta: “Numa cela individual? Aí é que ele vai enlouquecer mesmo. Não tem ninguém para conversar, para desabafar”.

Ela, então, sai em defesa do cunhado, que conhece desde jovem. “Eu não acho ele seja esse monstro, não. De jeito nenhum. Ele é uma pessoa muito boa. Uma pessoa calada, que, se a gente precisar dele, ele ajuda”, diz a faxineira.

O maior sonho deles é dar um jeito de Aldeir visitar o irmão na prisão, mas faltam recursos e informações. A Defensoria Pública da União pode ajudá-los a pelo menos falar pelo telefone com o preso, mas para isso depende que os interessados oficializem o pedido e façam um cadastro.

Os advogados particulares que cuidam do caso poderiam facilitar o caminho, mas só respondem esporadicamente à família, que diz não ter ideia de quem os contratou. A fonte de financiamento da defesa é alvo de investigação da Polícia Federal. Até agora os indícios levam a crer que o advogado Zanone Manuel de Oliveira assumiu o processo de graça, só por publicidade.

“Nós somos tão pequenininhos, moço. A gente gostaria pelo menos de poder ouvir a voz do meu tio”, diz Jussara Ramos, 32, sobrinha de Adélio, sentada sob sol forte do lado de fora do barraco de tijolos aparentes onde vive com o marido e dois filhos, em um bairro distante do centro.

Com ensino fundamental incompleto, ela enfrenta um câncer e mantém a casa graças a doações e ao benefício de R$ 998 que o INSS lhe paga desde que a doença a deixou inválida. Apesar de tudo, ainda sorri. “Peço a Deus que reconstrua o altar dele [Adélio]”, clama ela, que é evangélica.

“Não tive pai, então meu tio é a minha referência paterna. Ele ensinou a gente a não fazer mal para os outros, a trabalhar para conseguir o que quer. Dizia que os nossos sonhos um dia vão se realizar.”

Em outros momentos de crise, era a Adélio que os familiares recorriam quando precisavam resolver algum problema grave ou faltava dinheiro. Agora, não têm ninguém.

A facada (que eles evitam nominar, substituindo por termos como “esse problema”, “o que ele fez”, “o ocorrido”) trouxe como consequência imediata os ataques à família. Jussara não esquece o dia em que, ainda na época da campanha, uma mulher que ela acredita ser apoiadora de Bolsonaro foi à sua porta ameaçá-la.

“Essa dona veio lá de longe, num sol mais quente que esse [de 31°], e gritou: ‘Aqui que o esfaqueador de Bolsonaro morava’. Eu virei e falei: ‘Ô, dona, a senhora não tem roupa para lavar em sua casa, não?’. Eu sou curta e grossa mesmo”, diz a sobrinha, contando como botou fim à provocação.

Ao lado dela, Maria Aparecida Ramos, 39, que é irmã de Adélio, confirma a perseguição: “Em muitos lugares a gente é apontado”. E recorda um episódio do dia da eleição.

“Eu estava na fila para votar, e um senhor, sem saber que sou irmã dele, começou a falar que tinha que matar [Adélio], que era perigoso a família dele toda morrer aqui em Montes Claros. Aí comecei a me sentir mal. Nem consegui assinar direito meu nome. Dói, sabe?”

Nenhum dos parentes quis ser fotografado, sob a justificativa de que já estão marcados demais. Maria Aparecida, que vive de bicos, diz que o estigma prejudica até a busca de emprego. Ela também não anda bem da cabeça, acha que ficou com depressão por causa de tudo que vem acontecendo.

“Tenho uma menininha de três anos que nem carrego mais comigo”, conta, meio constrangida, antes de falar a razão: dia desses, esqueceu a filha em uma loja. “Ela subiu para o segundo andar, me deu um branco e saí sem ela.”

Com tantos problemas de um ano para cá, política é o último assunto que os familiares de Adélio querem comentar. Eles evitam revelar preferências. Alguns dizem que nem participaram do pleito ou que anularam o voto. Brasília parece longe demais.

Afirmam, contudo, que não concordam com o ataque nem apoiam violência. “Independentemente do que ele [Bolsonaro] seja ou pense, ele tem filhos, tem família. Igual o Adélio tem. A gente também tem sentimentos”, diz Jussara.

“Se ele tivesse morrido, ia acabar a família Oliveira. Nós morreríamos junto com ele. Ele é um ser humano e merece viver. Quem tem direito de tirar a nossa vida é só Deus.”

Para ela, se o autor concluísse o plano de matar o presidenciável, todos teriam que ir para longe de Montes Claros, por questão de segurança.

Adélio nasceu e cresceu na cidade mineira, mas não é possível dizer que as pessoas lá, mesmo seus familiares, ainda o conheçam bem. Quando ele apareceu na TV no dia do atentado, já não punha os pés na terra natal pelo menos desde 2016 (os parentes têm dificuldade em precisar a data).

A sobrinha Jenifer nem o reconheceu quando ele, naquela última visita, bateu no portão pedindo para entrar. “Só vi ele quando eu era criança. Como ficou muito tempo fora, acompanhava a vida dele mais pelo Facebook”, diz.

Pela rede social ela via as fotos de quando o tio trabalhou como garçom em um cruzeiro e de quando morou em Uberaba (MG) e em Santa Catarina.

Adélio, que hoje tem 41 anos, desde os 16 saía “para o mundo e só voltava na hora que queria”, segundo sua irmã Maria das Graças Ramos, 45. Quando ia a Montes Claros, trabalhava no que surgisse: servente de pedreiro, garçom, balconista, carregador na Ceanorte (central de abastecimento).

E à noite ia orar. Virou evangélico na juventude e chegou a ser pregador em uma das denominações que frequentava, a Igreja Missionária Resplendor da Glória de Deus.

“Eu acho que ele estava fora de si [ao dar a facada]. Ele era até evangélico, entendeu? E de repente ele cismou...”, palpita Maria das Graças. “Aquilo ali foi um atentado suicida. A pessoa em sã consciência jamais faria aquilo”, diz Jussara.

Ele afirmou que cometeu o crime por discordar politicamente de Bolsonaro e porque ouviu uma ordem de Deus.

Alguns sinais ao longo da vida já davam indicações de seu perfil sistemático. Adélio adquiriu cedo senso de responsabilidade. Perdeu a mãe aos 12 anos. O pai era alcoólatra.

Costumava ser rígido consigo mesmo e com os mais próximos. Certa vez disse a Maria Aparecida que cortaria a mão dela se a irmã entrasse em casa com algo de outra pessoa.

Tinha obsessão por ver data de validade de alimentos. Quando esteve com Jenifer pela última vez, fez a sobrinha jogar fora o leite que ela guardava na geladeira. O produto estava vencido, mas era a única comida que ela tinha para oferecer à filha pequena.

Esse contato mais recente com Adélio foi suficiente para mostrar à família que o quadro mental dele estava se agravando —o diagnóstico depois do crime apontaria transtorno delirante persistente.

Ele falava sozinho e tinha certeza de que era vigiado (ora pela maçonaria, ora por outras forças). Chegava a proibir os parentes de ligar a televisão. “Eles estão ouvindo tudo do outro lado”, justificava.

Quando a TV exibia o noticiário, se irritava ao ver políticos. “Ele sabia o nome de todo o mundo. Com alguns ele concordava, com outros não. Ele estava por dentro da política”, diz a cunhada Maria Inês.

“A ignorância dele era só com política. Tirava ele do controle”, acrescenta Aldeir.

Em outros momentos, dizia que tanto seu celular quanto os das pessoas ao redor estavam grampeados. “Mandava a gente desligar na hora”, lembra a irmã Maria das Graças.

“Às vezes ele entrava para o quarto, começava a conversar, ‘sapateava’. Dava aquela impressão que ele estava discutindo com alguém. Quando você ia ver, estava sozinho”, completa ela. “Mas ele nunca se abriu com a gente.”

Os parentes, então, sugeriram a ele que fosse atrás de um psicólogo ou psiquiatra. Adélio se enfureceu. “Vocês estão achando que estou doido? Vocês é que estão”, respondeu, segundo os relatos.

Pouco depois, repetiu o que fez dezenas de vezes desde a juventude. Avisou que havia arranjado um emprego no sul do país e que ia embora. Dias antes de esfaquear Bolsonaro, ele ligou para Aldeir e disse que iria para São Paulo. Quando foi visto de novo, pela TV, já era outro Adélio.

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