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Igreja contribuiu no sumiço de povos indígenas nas Américas

Encontro sobre o tema se tornou foco de atrito entre governo Bolsonaro e religiosos

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São Carlos

A relação entre a Igreja Católica e os povos indígenas foi complexa e cheia de ambiguidades desde os primeiros contatos entre europeus e nativos das Américas, há mais de 500 anos.

Embora nunca tenha aprovado a escravização e o massacre indiscriminados de índios, representantes do catolicismo acabaram contribuindo para que muitas das etnias nativas desaparecessem ou adquirissem status servil.

A discussão em torno desse tema ganha peso agora com a aproximação do sínodo (assembleia) de 250 bispos convocado pelo papa Francisco em outubro no Vaticano. O encontro discutirá a ideia da igreja de formar padres indígenas para ampliar a sua presença na Amazônia e se tornou foco de atrito neste ano entre o governo Jair Bolsonaro (PSL) e religiosos. 

Membros do governo alegam interferência na soberania do país, ao tratar de questões ambientais e indígenas, enquanto a igreja diz que a principal motivação do encontro é avaliar a presença missionária

Sínodo para a Amazônia

  • O que é: encontro de bispos convocado pelo papa Francisco para o período de 6 a 27 de outubro no Vaticano 
  • Objetivo: Discutir a presença da igreja na região, incluindo a formação de padres
  • Polêmica: Integrantes do governo Jair Bolsonaro (PSL) se dizem receosos com interferências na soberania do Brasil ao tratar de questões ambientais e indígenas. Já a igreja afirma que a principal motivação é avaliar a presença missionária

No século 15, quando portugueses e espanhóis começaram a se aventurar pela costa da África, a cultura de ambas as regiões ainda estava muito influenciada pela luta contra os invasores muçulmanos na península Ibérica. 

Os papas, que sempre tinham abençoado a luta contra os “infiéis” islâmicos, viam a expansão pelo Atlântico como uma extensão dessas guerras, concedendo aos europeus o direito de subjugar e escravizar os africanos que resistissem a eles caso fossem seguidores do Islã ou de religiões pagãs.

A partir de 1492, com a chegada de Colombo às Américas, um raciocínio similar começou a ser aplicado aos índios.

No entanto, os crescentes abusos perpetrados pelos colonizadores, que acabaram dizimando as populações indígenas das Antilhas e de outras regiões invadidas pelos espanhóis, fizeram com que alguns religiosos, com destaque para membros da ordem dos dominicanos, como Bartolomé de las Casas (1484-1566), passassem a condenar a escravização e os maus-tratos.

A controvérsia levou o papado a se pronunciar. Na encíclica “Sublimis Deus”, por exemplo, o papa Paulo 3º declarou, em 1537, que “os ditos índios, mesmo que estejam fora da fé em Jesus Cristo, podem e devem gozar de sua liberdade e da posse de suas propriedades, nem devem ser de modo algum escravizados”.

Ao mesmo tempo em que barravam a transformação generalizada dos indígenas em escravos, no entanto, as normas da igreja abriam espaço para o cativeiro dos índios que fossem derrotados em “guerras justas” —nas quais eles tivessem atuado como agressores contra os europeus ou tentassem impedir a propagação da fé católica, digamos.

Esses princípios ambíguos guiaram a ação dos missionários católicos, em especial os jesuítas, durante a colonização do Brasil. Figuras como o espanhol José de Anchieta (1534-1597) foram os primeiros a dominar o idioma das tribos tupis do litoral, usando a língua e aspectos da cultura nativa para tentar converter tais grupos ao catolicismo e se opondo a expedições escravistas dos colonos.

Mas a criação dos aldeamentos ou reduções jesuíticas, onde não era incomum que indígenas de diferentes etnias ficassem concentrados, favoreceu a desagregação cultural e o alastramento de doenças infecciosas do Velho Mundo, contra as quais os índios não tinham defesas naturais.

Isso acabou esvaziando a maior parte dos aldeamentos de São Paulo e outros núcleos antigos de colonização ao longo do século 17. Nesses locais, a mão de obra indígena também era empregada pelos religiosos ou arrendada por eles aos outros colonos.

Ao sul e ao oeste de São Paulo, em regiões que englobam trechos de Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul, Argentina e Paraguai, reduções jesuíticas em que viviam principalmente grupos guaranis chegaram a florescer, graças, em parte, ao relativo isolamento.

Os jesuítas dessas regiões chegaram a organizar exércitos indígenas para resistir aos ataques dos bandeirantes paulistas, que preferiam capturar guaranis como escravos, graças à habilidade agrícola desse povo.

A partir do século 19, depois da expulsão dos jesuítas das Américas e da dissolução dessa ordem religiosa por ordem do papa, outros missionários, em especial os frades capuchinhos, passaram a assumir os aldeamentos, atuando de forma muito similar à de seus predecessores do início da colonização.

Uma mudança significativa nesse sistema só veio em meados do século 20. O Concílio Vaticano 2º, assembleia de bispos do mundo todo que rediscutiu os rumos da Igreja Católica entre 1962 e 1965, foi responsável pelas transformações mais importantes na relação entre o catolicismo e os povos indígenas desde a época colonial.

De um lado, os documentos do concílio, adotados como diretrizes por todos os papas desde então, deram peso cada vez maior ao conceito de inculturação, segundo o qual é preciso que a fé cristã se insira de forma orgânica nas novas culturas que a recebem.

Ou seja, em vez de simplesmente substituir as culturas indígenas com a tradição cultural europeia no processo de conversão religiosa, a ideia de inculturação propõe que os aspectos essenciais do cristianismo sejam “traduzidos” de modo que façam sentido dentro da sociedade nativa.

Os documentos conciliares permitiram ainda maior espaço para o diálogo inter-religioso (envolvendo fés não cristãs), antes visto com muita desconfiança por Roma.

Além disso, o Concílio Vaticano 2º também abriu espaço para abordagens como a Teologia da Libertação, corrente de pensamento que vê a luta pela justiça social e a “opção preferencial pelos pobres” como elementos essenciais da atividade missionária católica.

Para os adeptos de tal linha teológica, impedir a marginalização dos povos indígenas e defender seus direitos seria uma consequência lógica dessa crença.

No Brasil, essa nova visão acabou entrando em confronto com os grandes projetos de infraestrutura gestados na Amazônia pela ditadura militar, colidindo também com o ideário de integração nacional do governo, que enxergava com desconfiança a existência autônoma de comunidades indígenas.

Essas tensões levaram à criação do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) em 1972. O órgão, ligado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), não busca conversões em massa de grupos que ainda não são católicos, mas afirma promover o protagonismo dos povos indígenas, atuando como “um aliado nas lutas pela garantia de seus direitos históricos”.

O Cimi promove o diálogo intercultural e inter-religioso e oferece assessoria jurídica, teológica e de comunicação aos indígenas.

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