'Ministério Público não serve a governos', diz decano do STF às vésperas de mudança na PGR

Celso de Mello discursou por ocasião da despedida de Dodge; Aras foi indicado ao cargo por Bolsonaro

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Brasília

O decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, disse nesta quinta-feira (12), na última sessão plenária com participação da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que o Ministério Público deve atuar com independência, sem servir a governos ou grupos ideológicos.

O mandato de Dodge na PGR (Procuradoria-Geral da República) termina na próxima terça (17). O escolhido por Jair Bolsonaro (PSL) para sucedê-la no cargo foi o subprocurador-geral Augusto Aras, que deve ser sabatinado no Senado no próximo dia 25. Ele enfrentou críticas de colegas ao manter discurso alinhado às ideias do presidente.

“O Ministério Público não serve a governos, não serve a pessoas, não serve a grupos ideológicos. O Ministério Público não se curva à onipotência do poder, não importa a elevadíssima posição que autoridades possam ostentar na hierarquia da República”, discursou Celso de Mello por ocasião da despedida de Dodge.

O ministro Celso de Mello, decano do STF
O ministro Celso de Mello, decano do STF - Pedro Ladeira - 25.jun.19/Folhapress

A procuradora-geral poderia ter sido reconduzida, mas acabou preterida por Bolsonaro. Ele também abriu mão da lista tríplice feita a partir de eleição da categoria —e que vinha sendo acolhida desde 2003.

No Supremo, Dodge fez discurso pedindo "um alerta para que fiquem atentos a todos os sinais de pressão sobre a democracia liberal".

Aras, que correu por fora, foi indicado pro Bolsonaro após encampar ideias conservadoras semelhantes às do presidente, que disse achar estar fazendo "um bom casamento" com sua escolha. 

“O Ministério Público também não deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer que seja, ou o instrumento de concretização de práticas ofensivas aos direitos básicos das minorias, sob pena de se mostrar infiel a uma de suas mais expressivas funções, que é, segundo a própria a Constituição, a de defender a plenitude do regime democrático”, afirmou Celso de Mello.

Para o decano, Dodge foi fiel, durante seu mandato na PGR, a seus objetivos constitucionais.

Em sessões recentes do STF e em notas à imprensa, Celso de Mello tem feito discursos críticos a ações de governos que, em sua visão, ameaçam direitos fundamentais de minorias.

Aras, indicado para ser o próximo procurador-geral, declarou em agosto, entre outros pontos, ser contrário à decisão do Supremo que definiu a homofobia como crime de racismo. O relator de um dos processos sobre o tema foi Celso de Mello, que votou pela criminalização.

“É preciso não desconsiderar as lições da história e reconhecer que o Ministério Público independente e consciente de sua missão constituiu a certeza e a garantia da intangibilidade dos direitos dos cidadãos, da ampliação do espaço das liberdades fundamentais, especialmente em um país como o nosso", disse o decano.

No Brasil, segundo ele, lamentavelmente ainda "se evidenciam relações antagônicas e conflituosas que tendem a patrimonializar a coisa pública, o que submete pessoas indefesas e grupos minoritários ao desprezo de autoridades preconceituosas, sem falar na massa enorme de despossuídos, como os povos da floresta e os filhos da natureza”.

Antes de indicar Aras para a PGR, Bolsonaro declarou à imprensa que procurava um nome de alguém que não fosse um “xiita ambiental”.

As declarações do presidente para justificar a escolha do próximo procurador-geral motivaram críticas de membros do Ministério Público, que dizem temer que a instituição perca sua independência.

“Sabemos que regimes autocráticos, governantes ímprobos, cidadãos corruptos e autoridades impregnadas de irresistível vocação tendente à desconstrução da ordem democrática temem um Ministério Público independente”, afirmou o decano. 

“O Ministério Público, longe de curvar-se aos desígnios dos detentores do poder –tanto do poder político quanto do poder econômico ou do poder corporativo ou, ainda, do poder religioso–, tem a percepção superior de que somente a preservação da ordem democrática e o respeito efetivo às leis
desta República laica revelam-se dignos de sua proteção institucional”, completou.

Dodge, por sua vez, teceu elogios ao Supremo e agradeceu aos ministros pelo período em que atuou na corte.

"Meu plano de trabalho era fortalecer a democracia liberal e agir com ética e firmeza. Afinal, como primeira mulher neste honroso cargo, queria poder inspirar as brasileiras a realizarem seus sonhos, e, com exemplo, zelo e dedicação, nutrir a esperança de todos no trabalho feminino”, disse Dodge.

Ela também destacou a atuação do Ministério Público na defesa das minorias e do meio ambiente e terminou seu discurso falando de ameaças à ordem democrática.

“Permitam-me fazer um alerta para que fiquem atentos a todos os sinais de pressão sobre a democracia liberal, vez que no Brasil e no mundo surgem vozes contrárias ao regime de leis, ao respeito aos direitos fundamentais e ao meio ambiente sadio também para as futuras gerações”, disse Dodge.

“Neste cenário, é grave a responsabilidade do Ministério Público e do Supremo Tribunal Federal, seja para acionar o sistema de freios e contrapesos, seja para manter leis válidas perante a Constituição, seja para proteger o direito e a segurança de todos, seja para defender minorias.”

O presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, também lembrou que Dodge foi a primeira mulher a chefiar o Ministério Público Federal e afirmou que ela exerceu a função com maestria e firmeza.


“Sem um Ministério Público forte, os valores democráticos e republicanos desenhados na Constituição de 1988 estariam permanentemente ameaçados. O Judiciário não age de ofício. É preciso um ator [para provocá-lo]”, disse Toffoli, enumerando, em seguida, ações ajuizadas por Dodge.

Os exemplos citados pelo ministro foram uma ação que levou o STF a declarar inconstitucional um trecho da reforma trabalhista que permitia que grávidas trabalhassem em locais insalubres e outra ação que resultou na proibição de a Justiça Eleitoral fazer buscas e apreensões em universidades, na época da campanha eleitoral de 2018.

Naquela ocasião, disse Toffoli, Dodge “fez uma defesa contundente das liberdades de expressão, de manifestação do pensamento, de reunião e de cátedra, bem como do pluralismo de ideias”.

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