Tática de Temer de questionar áudio de Joesley vinga após dois anos

Ex-presidente se escorou em dúvida sobre diálogo com empresário e foi absolvido neste mês

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Brasília

Depois de uma noite sem dormir, Michel Temer chegou antes das 8h ao gabinete naquele 18 de maio de 2017. Abatido, disse a auxiliares que não sabia se teria condições de continuar no cargo.

O presidente repetia que não se lembrava de detalhes da conversa que tivera com Joesley Batista em março. A PGR (Procuradoria-Geral da República) afirmava que, num encontro gravado, Temer havia autorizado a compra do silêncio de potenciais delatores.

Um ministro perguntou ao presidente se, durante a noite, ele se lembrara de ter dito algo que corroborasse a acusação. Temer respondeu que não. O auxiliar sugeriu então que, enquanto a dúvida permanecesse, a melhor estratégia seria o enfrentamento.

O presidente se escorou nessa dúvida por dois anos e cinco meses. No último dia 16, Temer foi absolvido da imputação de obstrução da Justiça. O juiz Marcus Vinicius Reis Bastos afirmou que o conteúdo da gravação, de baixa qualidade, "não configura, nem mesmo em tese, ilícito penal". O Ministério Público recorreu.

A peça mais explosiva da delação da JBS, que quase derrubou um presidente da República, é parte de um processo cercado de polêmicas.

Quando a notícia da delação estourou no site do jornal O Globo, Temer juntava com dificuldade as peças do encontro com Joesley, ocorrido em 7 de março. O presidente disse a aliados que jamais dera aval a pagamentos para evitar as delações do ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ) e do operador Lúcio Funaro.

Temer contou, porém, que entendia, sim, que o empresário dava dinheiro à família de Cunha, preso em 2016, e que interpretava aquilo como um gesto de solidariedade.

O presidente rejeitou a hipótese de renúncia, mas cogitou outra opção. Auxiliares sugeriram que ele enviasse ao Congresso uma proposta para antecipar as eleições.

Temer foi demovido pelos ministros Moreira Franco (Secretaria-Geral da Presidência) e Eliseu Padilha (Casa Civil), que achavam possível vencer a batalha política.

A princípio, Temer optou por fazer uma defesa genérica. Apostou na incerteza pois, quando chegou ao púlpito do palácio, não conhecia ainda a gravação em poder da PGR.

O áudio foi liberado enquanto Temer falava. Ao ouvir a conversa, logo depois, o presidente soltou palavrões.

A sentença que absolveu o ex-presidente, em 16 de outubro deste ano, afirmou que os procuradores deram "interpretação própria" ao áudio.

"Afirmações monossilábicas, desconexas, captadas em conversa com inúmeras interrupções [...] não se prestam a secundar as ilações contidas na denúncia", escreveu o juiz.

A decisão cita 76 interrupções na gravação e 76 trechos ininteligíveis. Ao denunciar o então presidente, a Procuradoria transcreveu a conversa sem a anotação dessas falhas.

Temer é alvo de processos e investigações em outros oito casos. Um deles é o episódio da entrega da mala ao então deputado Rodrigo Rocha Loures (MDB-PR), gravada na delação da JBS. O ex-presidente é acusado de ser o destinatário final do dinheiro, propina em troca de vantagens para a empresa. Temer nega.

Dois livros lançados nos últimos meses reproduzem percepções diferentes dos investigadores em relação à gravação entre Joesley e Temer. Em "Why Not", a jornalista Raquel Landim, repórter associada da Folha, narra que o promotor Sérgio Bruno se mostrou decepcionado com o diálogo quando o áudio chegou à PGR, em 27 de março de 2017.

Janot, por outro lado, descreve a efusividade de sua equipe ao ouvir a gravação. "Ali estava o presidente da República em ação", escreveu em "Nada Menos que Tudo".

Ele afirma que aquela conversa se seguiu "num zigue-zague medonho". "Não por causa do sotaque carregado do ricaço da J&F, que fala como se estivesse lendo Guimarães Rosa de trás para a frente, mas pelo conteúdo do diálogo."

As entrevistas de Janot para divulgar o lançamento de seu relato deram munição aos acusados. Ele disse a vários veículos que, furioso com Gilmar Mendes, chegou a ir armado ao STF (Supremo Tribunal Federal) para matar o ministro, mas desistiu.

A inclusão de Temer no rol de delatados foi considerada uma peça-chave nas negociações do acordo de Joesley e outros integrantes do grupo JBS, além de elemento fundamental para que eles recebessem imunidade —a garantia de não responder a processos.

"Se vocês tiverem algo contra o presidente da República, muda o jogo", disse Sérgio Bruno aos advogados do empresário, segundo Landim.

Embora admita que a delação ganhou corpo, Janot afasta interpretações políticas. O ex-procurador-geral escreveu que, na costura do acordo, jamais pensou na hipótese de Temer ser derrubado.

A defesa do ex-presidente investiu em levantar especulações sobre os interesses de Janot. Além de questões políticas, o grupo de Temer sugeria que o envolvimento do ex-procurador Marcelo Miller nas negociações da delação como advogado da JBS beneficiaria o então chefe da PGR.

A participação de Miller se tornou um dos pontos mais rumorosos do caso.

Investigadores que apuravam o uso de informação privilegiada pelos irmãos Joesley e Wesley Batista para operar no mercado financeiro descobriram, em junho de 2017, que Miller participava, antes de deixar oficialmente a Procuradoria, de um grupo de WhatsApp com os potenciais delatores, segundo "Why Not".

Meses depois, a PGR ouviu uma conversa gravada acidentalmente em que Ricardo Saud, lobista da JBS, falava sobre a atuação de Miller. Ele ainda dizia a Joesley que Janot se juntaria ao ex-procurador num escritório de advocacia depois de deixar o cargo.

Em seu livro, o ex-procurador-geral descreve aquele diálogo como "uma comédia pastelão protagonizada por dois bocós". A suspeita de que Miller fazia jogo duplo, porém, foi um dos fatores que levaram a Procuradoria a pedir a rescisão do acordo de delação.

Janot afirma que não havia "uma prova inconteste de que o ex-procurador tivesse cometido um crime" e que a questão foi explorada pela defesa de Temer "para esvaziar o verdadeiro escândalo".

Os questionamentos à atuação de Miller são flancos de ataque de outros acusados, como Aécio Neves (PSDB-MG). Gravado pedindo R$ 2 milhões a Joesley, ele se tornou réu por corrupção e obstrução da Justiça. O tucano perdeu o status de estrela, desistiu de disputar a reeleição ao Senado e voltou à Câmara. Em agosto, o PSDB rejeitou uma tentativa de expulsá-lo.

Miller se tornou réu por corrupção​, mas a ação penal foi trancada em setembro. Segundo a defesa dele, não houve crime e ele não recebeu pagamento pelo trabalho.

Com a delação suspensa, Joesley e Wesley foram presos. Depois, passaram a usar tornozeleira eletrônica, até o início deste mês.

A defesa de Joesley acredita que o STF julgará o pedido de rescisão do acordo de delação em 2020 e precisará decidir se as provas entregues por eles continuarão válidas. 

​ENTENDA O CASO JBS

A delação
Em abril de 2017, Joesley e Wesley Batista, da J&F, assinaram um acordo de delação premiada com o Ministério Público Federal. A dupla contou que recebeu benefícios em troca de recompensa a agentes públicos. Joesley gravou conversas com o então presidente Michel Temer (MDB) e o então senador Aécio Neves (PSDB). Pela delação, receberam garantia de imunidade

A crise
A divulgação, em maio, gerou uma crise política. Temer era acusado de incentivar Joesley a comprar o silêncio do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB) e do operador Lúcio Funaro. Cogitou convocar eleições para antecipar sua saída, mas seguiu no poder

A reviravolta
Uma gravação revelou que os irmãos omitiram crimes e deixaram de relatar atuação do então procurador Marcelo Miller nas tratativas do acordo como representante da J&F. O procurador-geral Rodrigo Janot pediu a rescisão do acordo e o fim da imunidade dos réus. Joesley e Wesley chegaram a ficar presos

Absolvição
A Câmara rejeitou duas denúncias contra Temer. Ao fim do mandato, ele foi preso duas vezes em outro processo. Passou poucos dias encarcerado. Neste mês, foi absolvido sumariamente da acusação de obstrução da Justiça, pela compra do silêncio de presos. Ele responde a outros oito processos

MICHEL TEMER

2017: Crise no governo e quase renúncia
Viveu o momento mais grave de seu governo após a divulgação de gravação por Joesley. Perdeu apoio no Congresso e não conseguiu levar adiante projetos de reformas à época

2019: ‘Afirmações desconexas’
Fora do governo desde janeiro, Temer foi absolvido da acusação de obstrução da Justiça em decisão dentro de processo que corria no Distrito Federal. O Ministério Público vai recorrer

JOESLEY BATISTA

2017: ‘Nós não vai ser preso’
Acuados, os irmãos Batista prepararam a delação, na qual envolveram 1.800 candidatos de todo o país. Joesley foi gravado comemorando: “Nós não vai ser preso”

2019: Prisão e tornozeleira 
Em 2017, Janot pediu a rescisão do acordo. Os irmãos foram presos e posteriormente libertados. Usaram tornozeleiras eletrônicas até o início do mês

RODRIGO JANOT

2017: ‘Lá vai flecha’
O procurador investiu o fim do mandato na delação da JBS e em duas denúncias contra Temer. “Enquanto houver bambu, lá vai flecha”, disse em julho de 2017. A primeira frustração veio com questionamentos sobre a atuação de Miller.

2019: ‘Foi a mão de Deus’
Ao lançar livro, Janot disse que foi armado ao STF para matar Gilmar Mendes. Hoje, advogado, está impedido de entrar no tribunal

AS GRAVAÇÕES DE JOESLEY E A CRISE POLÍTICA

2017: ‘TEM QUE MANTER ISSO, VIU?’ 
O então presidente da República foi gravado em 7 de março por Joesley Batista, da JBS, em encontro no Palácio do Jaburu fora da agenda oficial. O empresário disse aos investigadores que pagava pelo silêncio do ex-deputado federal Eduardo Cunha e do operador Lúcio Funaro. Temer cogitou se afastar do cargo, mas permaneceu e disse que jamais havia instigado Joesley

Transcrição do diálogo na denúncia do Ministério Público

Joesley
O negócio dos vazamentos. O telefone lá do EDUARDO com o GEDDEL, volta e meia citava alguma coisa meio tangenciando a nós, a não sei o quê. Eu tô lá me defendendo. Como é que eu, o quê que eu mais ou menos dei conta de fazer até agora: Eu tô de bem com o EDUARDO.

Temer 
Tem que manter isso, viu?

Joesley
Todo mês...

Temer 
(...) É.

2019: ‘AFIRMAÇÕES DESCONEXAS’ 
Temer foi absolvido da acusação de obstrução da Justiça. Para o juiz Marcus Vinícius Reis Bastos, a denúncia ignorou interrupções na gravação e usou “afirmações monossilábicas, desconexas”. O ex-presidente responde a outros oito processos e chegou a ser preso duas vezes depois de deixar o cargo

Transcrição feita na perícia citada pelo juiz

Joesley
...ooo... telefone lá do... Eduardo, com Geddel, volta e meia citava alguma coisa meio tangenciando a nós, a não sei o que... eu tô lá me defendendo.

(Descontinuidade)

Joesley
(Ininteligível) Como é que eu... o que que eu mais ou menos dei conta de fazer agora: eu tô...

(Descontinuidade)

Tô de bem com Eduardo.

Temer
Muito bem.

(Descontinuidade)

Joesley
...e...

Temer
Tem que manter isso, viu?

(Descontinuidade)

Joesley
 ...oooo...

Joesley
(Ininteligível)

(Descontinuidade)

(Ruídos típicos de movimentação do dispositivo de captação)

Joesley
(Ininteligível) Todo mês...

Temer
O Eduardo também, né?

Joesley 
Também.

Temer 
É...

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior desta reportagem afirmava que Marcelo Miller foi preso. Miller se tornou réu por corrupção, mas não chegou a ser preso. O texto foi corrigido.

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