Vida na Amazônia nunca esteve tão ameaçada, diz dom Cláudio no sínodo

Cardeal brasileiro, que é próximo do papa Francisco, citou desmatamento e ameaça a índios

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Cidade do Vaticano

No primeiro dia de trabalhos do Sínodo da Amazônia, no Vaticano, o cardeal dom Cláudio Hummes, relator-geral do evento, afirmou nesta segunda-feira (7) que a vida nessa região nunca esteve tão ameaçada, devido a problemas gerados por situações que contam com a "conivência" ou a "permissividade" de governos e até autoridades indígenas.

A fala fez parte da sua apresentação dos principais temas que serão abordados pelos 250 participantes da assembleia que reúne bispos, especialistas e outros convidados da região amazônica. Junto com o Brasil, são nove países que se espalham pelo bioma —do total de 185 bispos, 57 são brasileiros. 

"A vida na Amazônia talvez nunca tenha estado tão ameaçada como hoje, pela destruição e exploração ambiental, pela violação sistemática dos direitos humanos elementares da população amazônica, de modo especial, a violação do direitos dos povos indígenas", disse o cardeal, sentado ao lado do papa Francisco.

O brasileiro preside a Comissão Episcopal pela Amazônia da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e a Repam (Rede Eclesial Pan-Amazônica) e é um dos cardeais mais próximos do papa.

"Segundo o processo de escuta sinodal da população, na Amazônia a ameaça à vida deriva de interesses econômicos e políticos dos setores dominantes da sociedade atual, de maneira especial de empresas que extraem de modo predatório e irresponsável, legal ou ilegalmente, as riquezas do subsolo e da biodiversidade", afirmou dom Cláudio.

Ele acrescentou que isso ocorre "muitas vezes em conivência ou com permissividade dos governos locais e nacionais e por vezes até com o consenso de alguma autoridade indígena".

Apesar de não citar nenhum país ou governante especificamente, o relatório do cardeal ecoa dados divulgados recentemente sobre o aumento do desmatamento na floresta e o crescimento de invasões e violência contra moradores da porção brasileira do bioma.

O evento do bispos no Vaticano foi alvo de críticas do governo Jair Bolsonaro (PSL), que o avalia como uma tentativa de questionar a soberania nacional na Amazônia.

O sínodo, que segue até o dia 27 de outubro, tem como ponto de partida o "instrumentum laboris", um instrumento de trabalho que, na prática, funciona como uma pauta para o início das discussões.

Essa sequência de temas foi elaborada a partir da escuta da população dos noves países da Amazônia, com mais de 87 mil pessoas oficialmente consultadas.

Dom Cláudio fez uma lista dos motivos que estão, segundo relatos colhidos nas comunidades, ameaçando vidas na região: criminalização e assassinato de líderes e defensores do território, presença de madeireiras legais e ilegais e grandes projetos como hidrelétricas

A relação apresentada por ele contabilizou ainda: desmatamento para produzir monoculturas, narcotráfico, uso indevido da água e contaminação causada por indústrias extrativistas, além de problemas sociais, como violência contra mulher e tráfico de pessoas.

O cardeal também destacou a precariedade da vida urbana da Amazônia, causada por fluxos migratórios, tanto entre países da América Latina quanto pelo movimento de indígenas que se mudam para as cidades.

"Eles [indígenas] necessitam de uma lúcida e misericordiosa atenção para não perecerem culturalmente e mesmo humanamente na cidade, enfrentando miséria, descaso, desprezo e rejeição e consequentemente provando um vazio interior desesperador", declarou.

Desde esta segunda, os bispos se reúnem em assembleias a portas fechadas. Pela manhã, as sessões são presididas pelo papa. Os temas estão organizados em dois eixos: ação da Igreja Católica na região e questões ambientais. 

Papa Francisco junto a representantes das comunidades indígenas.
Papa Francisco cumprimenta líderes indígenas da Amazônia enquanto celebrava a missa de abertura do Sínodo da Amazônia, no Vaticano, em 6 de outubro de 2019. - REUTERS

A abertura da sessão inaugural foi precedida por uma cerimônia fechada na Basílica de São Pedro entre o papa Francisco, os bispos e representantes de povos tradicionais.

Em uma cena raramente vista na basílica, o pontífice presenciou o grupo entoar cantos vestidos com adereços indígenas e carregando símbolos como canoa, redes de pesca e instrumentos musicais.

Depois, o pontífice caminhou até a sala do sínodo cercado por índios e missionários que carregavam cartazes com o nome e o rosto desenhado de ativistas que morreram na região, com Chico Mendes, assassinado em 1988 no Acre.

Em sua fala na abertura da sessão, o papa disse que a ação pastoral da Igreja Católica deve evitar "colonizações ideológicas que destroem ou reduzem a idiossincrasia dos povos" e citou a situação da Argentina, seu país natal.

"Em nosso país, um lema 'civilização e barbárie' serviu para dividir, aniquilar e chegou ao auge, no fim dos anos 1980, de aniquilar a maioria dos povos originários, porque eram a barbárie e a civilização vinha do outro lado", discursou o pontífice.

"E isso, 'civilização e barbárie' [...], segue na minha pátria, com palavras ofensivas, como 'civilização de segundo grau', 'bolitas', 'paraguas', 'cabecinhas negras'", prosseguiu, citando ofensas dirigidas a descendentes de indígenas.

Entenda o Sínodo da Amazônia

O que é sínodo
O Sínodo dos Bispos é uma reunião episcopal de especialistas. Convocado e presidido pelo papa, discute temas gerais da Igreja Católica (como juventude, em 2018), extraordinários (considerados urgentes) e especiais (sobre uma região). Instituído em 1965, acontece neste ano pela 16ª vez.

Especial Amazônia
Anunciado em 2017 pelo papa Francisco, o Sínodo da Amazônia trata de assuntos comuns aos nove países do bioma, organizados em dois eixos: pastoral católica e ambiental. Depois de meses de escuta da população local, bispos e demais participantes se reúnem entre 6 e 27 de outubro, no Vaticano.
 
Para que serve
O sínodo é um mecanismo de consulta do papa. Os convocados têm a função de debater e de fornecer material para que ele dê diretrizes ao clero, expressas em um documento chamado exortação apostólica. As últimas duas exortações pós-sinodais foram publicadas cerca de cinco meses depois de cada assembleia.

Quem participa
O Sínodo da Amazônia reúne 185 padres sinodais (como são chamados os bispos participantes), sendo 57 brasileiros. Além dos bispos da região, há convidados de outros países e de congregações religiosas. Também participam líderes de outras comunidades cristãs, da população e especialistas —no total, há 35 mulheres. O papa costuma presidir todas as sessões.

Principais polêmicas
Este sínodo tem recebido críticas do governo brasileiro, incomodado com o viés ambiental e pressionado pela situação na Amazônia, e da ala conservadora da igreja, que vê como inapropriado o debate sobre a ordenação de homens casados como sacerdotes, a criação de ministérios oficiais para mulheres e a incorporação de costumes indígenas em rituais católicos.

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