Disputa entre instituições pode influenciar na decisão de federalizar caso Marielle

Embate deve ser determinante na hora de definir se investigação do crime sairá da alçada estadual

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Rio de Janeiro

Discutida há um ano e oito meses, desde quando Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram mortos, a possibilidade de federalizar o caso começa a ganhar ares mais concretos. E, com ela, se acirra a disputa entre instituições do estado do Rio de Janeiro e da União.

Essa rixa poderá ser determinante na hora de definir se a investigação do crime continuará nas mãos da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio ou se será passada para a alçada da polícia e do Ministério Público federais.

A conclusão é de um amplo estudo feito em 2014 com os pouquíssimos pedidos de federalização que ocorreram no país até então, encomendado pelo Ministério da Justiça e coordenado por Guilherme Assis de Almeida, advogado e professor da Faculdade de Direito da USP.

Esses pedidos são chamados formalmente de Incidentes de Deslocamento de Competência (IDC) e existem há 15 anos na Constituição Federal graças a uma grande reforma no Judiciário que ocorreu naquela época. Eles podem ser requisitados apenas pelo Procurador-Geral da República —muitas vezes procurado por um cidadão ou organização civil— em qualquer fase do inquérito ou processo.

Quem os aceita ou recusa é o STJ (Superior Tribunal de Justiça), que diz ter recebido até hoje 24 pedidos, sem informar quantos foram aceitos.

Teoricamente, a federalização deve ocorrer quando há uma grave violação aos direitos humanos e o estado responsável, por algum motivo, não é considerado capaz ou isento o suficiente para dar uma resposta ao caso, podendo levar o país a descumprir tratados internacionais.

O estudo, porém, concluiu que nem sempre são esses critérios objetivos que levam a PGR ou o STJ a optar pela federalização. “Essa decisão leva em conta outros aspectos que saltam aos olhos quando se analisam os autos e os discursos dos entrevistados”, diz o relatório, que destrinchou quatro IDCs (dois 
aceitos e dois recusados).

“A partir de grande quantidade de dados qualitativos analisados, pode-se deduzir que são as disputas entre União e estados, entre os diversos sistemas de Justiça dessas esferas e os agentes que nelas atuam, os fatores que operam decisivamente no processo de deslocamento de competência”, continua.

No caso Marielle, o ringue está montado faz tempo. Desde o dia do crime, em março de 2018, a ex-PGR Raquel Dodge já demonstrava interesse em federalizar as investigações, mas voltou atrás diante da pressão do MP estadual e do contexto de intervenção federal no Rio.

Oito meses depois, em novembro de 2018, ela pediu à Polícia Federal que abrisse uma “investigação da investigação”, para apurar denúncias de que um grupo teria dado depoimentos falsos para impedir a elucidação do caso.

Em setembro deste ano, chegou à conclusão de que isso realmente aconteceu. No dia em que deixou o cargo, ela denunciou cinco pessoas por obstrução de Justiça, além de pedir a federalização do inquérito que busca os mandantes do assassinato, suscitando mais troca de farpas com o Ministério Público estadual.

O pedido, em segredo de Justiça, agora está nas mãos da relatora Laurita Vaz, que deve levar o caso aos oito ministros da terceira seção do STJ ainda neste ano. Se ele for aceito, apenas o inquérito que investiga os mandantes do assassinato, e não os executores, passa para a esfera federal.

Isso porque a primeira fase da apuração, que apontou os acusados de atirar (o PM reformado Ronnie Lessa) e de dirigir o carro do crime (o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz), já está quase concluída na Justiça estadual.

O novo PGR, Augusto Aras, pode ter um entendimento diferente ao de sua antecessora, diz o ex-procurador-geral Cláudio Fonteles (2003-2005). “Ela ajuizou o pleito, depois tem a fase de instrução e no parecer final ele não está obrigado a recomendar a federalização se não achar apropriado”, diz.

Com a série de revelações recentes sobre o caso, porém, é improvável que isso ocorra. Segundo a coluna Painel, integrantes do MPF avaliam que o pedido de deslocamento de competência, antes enfraquecido, agora ganhou forças e tem todas as condições para ir adiante.

Um dos motivos é o conflito de versões entre a própria Polícia Civil e o Ministério Público do Rio sobre a obtenção das planilhas na portaria do condomínio de Lessa que vinculou o nome de Jair Bolsonaro aos suspeitos do assassinato.

A Folha revelou que os investigadores estão com esses documentos desde novembro de 2018, de acordo com o inquérito, contrariando o discurso da Promotoria de que só teve acesso a eles em outubro. Outras falhas da apuração estadual passaram a ser questionadas desde então. 

Mesmo tendo as planilhas há quase um ano, por exemplo, eles não haviam notado a entrada do carro 
de Élcio no condomínio.

Também fizeram uma perícia no áudio da portaria —provando que não foi Bolsonaro que liberou a entrada do suspeito— às pressas, em duas horas e 25 minutos, sem considerar a possibilidade de arquivos terem sido apagados ou renomeados. Só apreenderam o computador sete dias depois.

Advogados com quem a Folha conversou se dividem sobre a ideia de federalizar as investigações do caso.

Os que são contra, como a família de Marielle e o governador Wilson Witzel (PSC), sustentam que a investigação está andando, que o processo é longo e o deslocamento poderia atrasá-lo, que os órgãos federais não têm experiência em homicídios e que agora, com a citação a Bolsonaro, a isenção da PF fica comprometida. 

Os que são a favor da federalização argumentam que houve tentativas de obstrução na investigação fluminense e que a identificação dos mandantes está demorando demais.

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