Filosofia que inspirou República tem seguidores 130 anos após Proclamação

Única em atividade no mundo, Capela Positivista de Porto Alegre abre todos os domingos para visitantes e frequentadores

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Porto Alegre

A filosofia que inspirou a Proclamação da República em 1889, o positivismo, tem seguidores assíduos no único templo da Religião da Humanidade ativo no mundo.

A Capela Positivista de Porto Alegre abre suas portas todos os domingos pela manhã, 130 anos após o início do regime republicano no Brasil, para receber frequentadores e curiosos.

O terreno do local foi adquirido por positivistas gaúchos em 1911, durante a chamada República Velha, e a pedra fundamental foi inaugurada no ano seguinte.

O templo foi inaugurado em 1928, seguindo o projeto elaborado pelo francês Augusto Comte (1798-1857), principal idealizador da doutrina que tem a ciência como dogma. Há outra construção do tipo, no Rio de Janeiro, que está fechada.

“Bom dia, seja bem-vinda. Estamos iniciando a visita guiada. Se quiser participar, fique à vontade”, diz o guardião do templo, Érlon Jacques, 47. “Eu quero”, responde animada uma mulher ao entrar pela primeira vez no local, na avenida João Pessoa, próximo ao Parque da Redenção.

Assim como os outros 15 visitantes que acompanharam o sermão do mestre, ela atravessou o portão de ferro com uma inscrição no alto que atrai parte dos pedestres que param para observar ou tirar fotos. Ali é possível ler: "Os vivos são sempre e cada vez mais necessariamente governados pelos mortos".

“Não tem nenhuma conotação mística. É o reconhecimento e reverência à ancestralidade. A Religião da Humanidade é o que temos de melhor nas ciências e nas artes”, explica Jacques ao grupo ainda reunido na escada que conduz à construção branca em estilo neoclássico.

Cada um dos 13 degraus está marcado com palavras que indicam a organização social na visão de Comte, que inicia com o “proletariado” e culmina na “humanidade”, passando, entre outros, por “fraternidade” e “casamento”. 

Sobre este último, Jacques afirma: “Comte diz que o casamento tem que ser livre e de espontânea vontade das partes. No passado, [os matrimônios] eram por conveniência. É preciso respeitar as escolhas”, comenta, usando as uniões homoafetivas como exemplo. “Não pode haver preconceito”. Principalmente os preconceitos raciais, continua ele: “Somente abolicionistas podiam ingressar na Igreja da Humanidade, não podiam ter escravos, precisavam ser éticos e humanistas”.

A ideia de igualdade é também o que justifica a luta dos positivistas brasileiros pelo fim da Monarquia e a instauração de uma República, segundo Jacques.

“A Monarquia subentende que o líder é referendado por um ser divino, é um sistema político baseado em uma fantasia. Não aceitamos que um ser humano pode ser considerado melhor do que outro apenas por ser de uma determinada família. Para nós, isso não existe”, diz. 

O grupo chega ao topo da escada. Antes de entrarem no templo para o “culto”, todos observam as palavras na fachada que lembram o lema da bandeira do Brasil, não por acaso elaborado por positivistas: “O amor por princípio. A ordem por base. O progresso por fim”.

Mas e por que o lema da bandeira acabou deixando de fora o “amor”? “O amor não é feito para governar. Alguém duvida do amor de Hitler pela Alemanha? Olhem a catástrofe que ocorreu”, cita Jacques. 

Quando a República foi proclamada, a primeira bandeira, provisória, era semelhante à dos Estados Unidos, com listras horizontais, mas com as cores verde e amarela.

Insatisfeitos com a “cópia”, os positivistas elaboraram uma nova bandeira, apresentada quatro dias depois. “O positivismo não é revolucionário, não tem a ideia de ruptura, de corte, mas de mudar aos poucos."

Por isso a nova bandeira conserva o molde anterior, mas substitui o brasão de armas do Império pelo céu no momento da proclamação. O astrônomo positivista Manuel Pereira Reis (1837-1922) foi o responsável por registrar o mapa estelar. 

Dentro da capela, ao assinar o livro de visitas, o grupo descobriu que o mês de Shakespeare havia acabado e corria a primeira semana do mês de Descartes do ano de 231. O positivismo tem calendário próprio, com 13 meses, e o ano que inicia a contagem é 1789 —quando ocorreu a Queda da Bastilha, durante a Revolução Francesa.

“O mês de Shakespeare é lindo, dedicado a escritores e músicos. No mês de Descartes, vamos estudar os principais filósofos da humanidade. Hobbes, Locke, Kant...”, diz Jacques. “E o Nietzsche?”, pergunta um frequentador. “Nietzsche não, porque ele é posterior a Comte”, responde o mestre. 

Em anos bissextos, o dia “extra” é em homenagem a santa Heloísa, uma erudita francesa de origem nobre. “Só no ano bissexto?”, pergunta o mesmo frequentador. “É para marcar a importância”, responde mais uma vez Jacques. 

A figura feminina é a principal dentro do templo, ao centro na sala. No lugar de um deus tem-se uma deusa, a humanidade. De cada lado desta imagem central estão os bustos das figuras ilustres que nomeiam os meses do calendário, que variam de Homero a Gutenberg.

“Trago meus alunos aqui desde a década de 1980, faço questão”, conta Jovelina Drun da Costa, 71, professora de sociologia e filosofia de uma escola pública na cidade vizinha de Viamão (RS).

Naquele domingo, ela ouviu o sermão sobre o positivista Benjamin Constant, um dos principais articuladores da República que completa 130 anos. Outros nomes importantes influenciados pela doutrina são os gaúchos Júlio de Castilhos e Getúlio Vargas.

“Benjamin Constant era um pacifista. Esse sentimento se consolidou após a Guerra do Paraguai, quando desenvolveu sérias críticas ao duque de Caxias pelos exageros cometidos, foi o genocídio de toda uma população, crianças, indígenas”, afirma Jacques. Constant foi ministro da Guerra no início do governo do marechal Deodoro da Fonseca.

O sermão termina com todos fazendo o sinal que consiste em colocar a mão esquerda no peito e a palma direita na testa (amor), na cabeça (ordem) e na nuca (progresso).

O publicitário Flávio Freire, 69, conheceu por dentro o templo pela primeira vez ao lado da doutoranda em sociologia na UFRGS, Ana Cristina Cerva, 46.

“Já tinha fotografado por fora", diz ele. "Pesquisei sobre a história do local, tem muita simbologia. Mas percebi que os ideais que propunham para a sociedade se perderam, não se vê na prática."

Entenda o positivismo

O que é Doutrina filosófica que surgiu na França no século 19 e defendia o método científico, a popularização da educação e relações éticas e igualitárias para atingir a “ordem e progresso”. O francês Augusto Comte (1798-1857) é sua principal figura. O positivismo rejeitava superstições, mas Comte entendia que a religião era uma ferramenta eficaz para provocar as mudanças que desejava

Relação com a República Os positivistas brasileiros eram republicanos e rejeitavam o princípio da Monarquia, segundo a qual o rei é escolhido por Deus. A doutrina está explícita na bandeira nacional, elaborada após a Proclamação

Personalidades Foram positivistas Benjamin Constant (1836-1891) e o marechal Cândido Rondon (1865-1958), por exemplo. Entre seus simpatizantes estavam três presidentes: marechal Deodoro (1827-1892), marechal Floriano (1839-1895) e Getúlio Vargas (1882-1954)

 
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