Marcas expõem dilema ético ao presentear casal Heloísa e Eduardo Bolsonaro

Empresas dão cortesias à espera de divulgação, e especialistas apontam ressalvas por benefício a parlamentar

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Rio de Janeiro

​Quando o presidente Jair Bolsonaro, desgostoso da comida oferecida no Japão, postou uma foto com um pacote de macarrão instantâneo, sua nora fez troça. "Será que meu sogro tá fazendo #publipost na Ásia? Kkkk. Fiquei com desejooo", brincou a psicóloga Heloísa Bolsonaro em uma rede social.

Publiposts são posts patrocinados, nos quais grifes se unem a pessoas com influência virtual (os chamados influenciadores) atrás de divulgação. A prática de expor marcas e receber algo em troca, como um produto dela, não é estranha no lar de Heloísa e seu marido, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

Eduardo Bolsonaro lê os votos para Heloísa Wolf
Eduardo Bolsonaro lê os votos para Heloísa Wolf - Davi Nascimento/Divulgação

Com 153 mil seguidores no Instagram, ela costuma marcar em suas publicações o perfil de produtores ou prestadores de serviço que a presenteiam. Os mimos podem beneficiar não só ela, mas o casal
—ou até mesmo a cadelinha deles, Beretta.

No dialeto dos influenciadores, esses brindes têm um nome: recebidos. A questão é se recebê-los, no caso deles, é ético ou não.

Como o filho do presidente é parlamentar, ele está sujeito ao Código de Ética da Câmara, que cita a Constituição, cujo artigo 55 diz ser incompatível com o decoro parlamentar "a percepção de vantagens indevidas". 

Não há um valor especificado, embora o normal, segundo especialistas consultados pela Folha, é tomar como régua o Código de Conduta da Alta Administração Federal: tudo bem receber brindes "a título de cortesia, propaganda, divulgação habitual ou por ocasião de eventos ou datas comemorativas de caráter histórico ou cultural".

Mas eles não podem "ter valor superior a R$ 100", e "sua distribuição deve ser generalizada, ou seja, não se destinar exclusivamente a uma determinada autoridade". 

O casamento de Heloísa e Eduardo em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, em maio passado, foi um exemplo de cortesias retribuídas por ela com uma menção da grife na internet. Dois prestadores de serviços confirmaram à Folha que não cobraram nada deles porque viram ali uma boa oportunidade de divulgar seu trabalho. 

O fotógrafo Davi Nascimento disse ter sido contatado para orçar quanto sairia sua diária. Ofereceu fazer de graça, o que foi aceito. Ele estipula que o trabalho, para um cliente regular, sairia por R$ 15 mil.

"Tive interesse em não cobrar para ter direito de fazer uso das imagens", diz ele, que lista entre a clientela a modelo Nicole Bahls, o humorista Carlinhos Maia e a ex-dançarina do É o Tchan Sheila Mello. Seu trabalho foi citado mais de uma vez nas redes de Heloísa, a última delas nesta semana.

Outra marca exposta por Heloísa foi a Fatima Forminhas, numa foto de docinhos com a legenda: "A decoração ficou do jeitinho que eu sonhei!". 

Uma mulher que se identificou como Fatima afirmou à reportagem que normalmente cobraria em torno de R$ 1.800 por uma festa como a dos Bolsonaros. "Como são pessoas públicas e saem em todos os jornais, eu tinha interesse", disse ela. "Já fiz pro [cantor] Jorge Vercillo também."

Heloísa Bolsonaro, em conferência conservadora em São Paulo
Heloísa Bolsonaro, em conferência conservadora em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

Nem todos os envolvidos na produção da festa abriram mão dos proventos. O estilista Eduardo Guinle diz que cobrou pelo terno azul claro com gravata cinza do noivo e que um trabalho do tipo costuma sair por R$ 8.000. 

Por meio de sua assessora, que chamou de "tão deselegante esse tipo de abordagem", a designer da noiva também afirmou que sua mão de obra foi remunerada. Marie Lafayette já havia confeccionado vestidos para Michelle e Fernanda, esposas de Jair Bolsonaro e do filho senador, Flávio, respectivamente.

Natália Silvestre, que fez o buquê do casório, limitou-se a dizer que "todas as informações foram fornecidas aos consumidores envolvidos na relação e à Receita Federal". A transação, segundo ela, "foi idêntica a qualquer outro cliente, não havendo nenhuma distinção em razão do cargo dele". 

Natália foi uma das que, após ser contatada, enviou a troca de mensagens com a reportagem para os Bolsonaros. As reproduções foram usadas por Eduardo em três posts em redes sociais para atacar a repórter, com foto e nome da profissional. 

Em outra mensagem, o deputado define o que diz ser "o objetivo da jornalista": "Me denunciar no Conselho de Ética ou dar munição p/ PT me acionar no TSE [Tribunal Superior Eleitoral] ou STF [Supremo Tribunal Federal]". 

Eduardo define a reportagem ainda em produção como "fake", sem discorrer sobre o hábito familiar de aceitar brindes. O deputado diz ainda que a intenção da reportagem seria levá-lo à cassação ou, caso fosse de fato parar no Conselho de Ética e por ele absolvido. "Meu nome já fica desgastado."

A Folha enviou um email a Heloísa e tentou contato com Eduardo, por meio de seu celular e de seu gabinete, mas não teve nenhum retorno. 

Há dois meios para que o caso seja avaliado pela Câmara: ou a Mesa Diretora da Câmara instaura um processo, atendendo a um pedido de qualquer cidadão, ou um partido encaminha uma representação contra o deputado acusado de falta de ética e decoro. Aí caberia aos membros do conselho de ética, parlamentares que nem ele, decidir se há ou não.

Vera Chemim, mestre em direito público administrativo pela FGV, vê poucas chances de uma punição prosperar no Congresso. "Acho isso, no momento atual, muito difícil."

"Se você recebe presentinho de alguém que quer agradar, não necessariamente o tempo todo, no mínimo não pega bem", diz. "Agora, se houver suspeita de que está usando do cargo para receber vantagem indevida, principalmente de empresa… A Câmara precisa estar empenhada em abrir um processo, vai depender dela." 

Há várias questões em jogo. Presentes enviados a Heloísa, que deve boa parte de sua fama digital ao sobrenome do clã presidencial, podem ser vistos como um agrado colateral a seu marido? E se o regalo for para o animal de estimação dos dois, como foi o caso de uma cama de pelúcia branca remetida pela Bicho Com Luxo à cadelinha Beretta?

Presidente da Comissão de Direito Administrativo do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros), Manuel Peixinho lembra que Heloísa, por não ser servidora pública, não pode responder por improbidade administrativa ou outra infração. 

"Porém o comportamento dela é inconveniente por ser da família presidencial. Ao receber benefícios em razão da posição do marido e do sogro, há uma flagrante quebra de decoro. O comportamento de agentes públicos exige mais do que o respeito à lei; exige, acima de tudo, o distanciamento de agentes privados."

Eduardo Bolsonaro e Heloísa Wolf em ensaio pré-casamento na praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro
Eduardo Bolsonaro e Heloísa Wolf em ensaio pré-casamento na praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro - DNFotos/Reprodução Instagram

Segundo o professor de direito da USP Gustavo Badaró, os códigos de ética costumam "se estender aos familiares, ou seria uma forma fácil de burlar a lei: em vez de presentear o deputado, você dá um carro, uma viagem de primeira classe para um parente". 

Badaró, contudo, diz que seria "forçar a barra" achar que Eduardo violou as normas éticas da Câmara. Usa como exemplo o valor não cobrado pelo fotógrafo no matrimônio do casal. 

"Não há certeza que o serviço foi exclusivamente para ele [Eduardo]. Não há nada, pelo menos que eu saiba, que indique qualquer relação comercial ou profissional desse fotógrafo com o governo ou mesmo uma perspectiva de favores em uma relação futura com o Estado."

Fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, Eduardo Tavares aloca a situação numa "zona de penumbra".

Tende a concordar com Badaró: acha difícil enquadrar Eduardo, "salvo se houver prova de que alguma dessas empresas veio a se tornar beneficiária, prestadora de serviços ou agraciada de alguma forma com a administração federal, contando a influência direta do senhor deputado".

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