Supremo julga uso de dado sigiloso sob sombra de Flávio e pressão do Ministério Público

Decisão pode anular investigação sobre filho do presidente e afetar casos da Lava Jato; PGR pediu derrubada de liminar e defendeu troca de informações

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Brasília

​O plenário do Supremo Tribunal Federal prevê julgar nesta quarta-feira (20) um processo que discute se é constitucional que órgãos de controle —como a Receita e o antigo Coaf— repassem dados bancários e fiscais ao Ministério Público, sem autorização judicial, para fins de investigação penal.

O que está em jogo originalmente é o direito ao sigilo bancário e fiscal, contido no direito constitucional à privacidade. 

Na prática, o processo ficou atrelado ao caso de Flávio Bolsonaro, eleito pelo PSL-RJ, filho do presidente Jair Bolsonaro e alvo de uma investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro que começou com um relatório do Coaf.

A depender do resultado, o julgamento do STF, em sessões previstas de manhã e à tarde, poderá levar à anulação da investigação sobre Flávio, além de centenas de outras.

É possível que uma ala dos ministros proponha restringir o alcance da decisão a investigações futuras, poupando as que já foram realizadas. 

Para outro grupo, porém, não é possível fazer a chamada modulação temporal porque um direito constitucional precisa ser garantido a todos, tanto aos que serão investigados como aos que já foram.

Procuradores pressionam o Supremo para não limitar a atuação do Coaf, renomeado de UIF (Unidade de Inteligência Financeira) no governo Bolsonaro. 

Eventual limitação, afirmam, restringirá investigações de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, como as da Lava Jato, colocando o Brasil na contramão de outros países.

Os ministros discutirão 1) se os órgãos de fiscalização podem compartilhar dados sigilosos com o Ministério Público sem autorização prévia da Justiça; 2) e, se puderem, qual deve ser o limite do detalhamento das informações repassadas.

No passado, o plenário do Supremo já definiu que a Receita, ao exercer seu papel de fiscalização, pode obter dados globais do contribuinte —como nome do cidadão e montante movimentado, por exemplo.

O presidente do STF e relator do processo agora em análise, ministro Dias Toffoli, costuma citar essa deliberação como precedente para defender que órgãos de controle só possam compartilhar com procuradores e promotores dados globais, não detalhados.

Procuradores e outros críticos desse entendimento dizem que é preciso diferenciar os dados da Receita e da UIF, pois os órgãos têm natureza e regulamentações diferentes. Relatórios do Coaf, dizem, são detalhados por determinação legal.

Enquanto à Receita interessa saber aspectos quantitativos de uma movimentação financeira para verificar se ela condiz com a declaração de renda do contribuinte, ao Coaf interessa os aspectos qualitativos de uma operação considerada atípica —partes envolvidas, valor, forma da transação (em espécie ou transferência bancária), data.

Em julho, Toffoli atendeu um pedido de Flávio e paralisou todas as investigações do país que usaram dados detalhados de órgãos de controle sem autorização da Justiça. 

A decisão liminar (provisória) suspendeu um inquérito sobre o filho do presidente que investigava supostos desvios no antigo gabinete dele na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

As suspeitas começaram com relatório do antigo Coaf que identificou transação atípica de R$ 1,2 milhão nas contas do ex-assessor Fabrício Queiroz. 

Um dos relatórios mostrou datas de vários depósitos fracionados, feitos no caixa eletrônico em pequenos valores —prática tida como indício de lavagem.

A defesa de Flávio pegou carona em um recurso extraordinário que tramitava no Supremo desde 2017 e discutia especificamente a atuação da Receita. Alegou que o Ministério Público fluminense, ao usar os relatórios do Coaf, realizou uma verdadeira quebra de sigilo bancário, sem controle judicial.

Ao paralisar a investigação sobre o senador, Toffoli estendeu a discussão da Receita para outros órgãos de controle (Banco Central e UIF) e suspendeu ao menos outras 935 em todo o país, segundo levantamento da PGR (Procuradoria-Geral da República).

Outra decisão polêmica de Toffoli no âmbito do processo foi a que determinou, em 25 de outubro, que a Receita e a UIF lhe dessem cópias de todos os relatórios fiscais e financeiros feitos nos últimos três anos. 

O acesso a dados sigilosos de mais de 600 mil pessoas, relevado pela Folha, gerou polêmica e reação da PGR. Toffoli revogou a medida.

Nesta terça-feira (19), em memorial enviado aos ministros do STF, o procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou que ampliação do objeto do processo a todos os órgãos de controle foi indevida e sem base legal.

Aras pediu para que a corte debata somente a atuação da Receita e derrube a liminar de Toffoli que paralisou investigações —como a de Flávio— que usaram dados de outros órgãos.

O recurso extraordinário que será apreciado começou com um caso específico de um posto de gasolina no interior de São Paulo que teria sonegado impostos. 

Como o processo tem repercussão geral, esse caso —em que houve repasse de dados da Receita para o Ministério Público— servirá para que o tribunal discuta a tese, de modo genérico.

No documento entregue aos ministros, Aras sustentou que condicionar o repasse de dados detalhados a uma autorização judicial prévia vai onerar a Justiça com vários pedidos de quebra de sigilo e levará à abertura de investigações desnecessárias, prejudicando o sistema.

"Caso o MP [Ministério Público] passe a ter acesso apenas a informações genéricas, isso obrigará essa instituição, a fim de ter acesso aos dados detalhados, a requerer em juízo a quebra de sigilo de pessoas que, por vezes, não praticaram qualquer conduta suspeita", disse Aras.

"Relatórios genéricos, como o modelo proposto pelo Supremo, são inúteis à persecução de crimes relacionados à lavagem de dinheiro e à corrupção, pois inviabilizam o cruzamento de informações relevantes e o acesso a dados que de fato caracterizam crimes."

ENTENDA A DECISÃO DE TOFFOLI SOBRE O COAF

O que Toffoli decidiu em julho?
O presidente do Supremo suspendeu investigações criminais que envolvam relatórios com dados bancários detalhados sem que tenha havido autorização da Justiça --ainda que o inquérito tenha outros elementos que o embasem. A decisão atinge inquéritos de todas as instâncias baseados em informações de órgãos de controle, como o antigo Coaf (hoje UIF), Receita Federal e Banco Central. É esse o tema do julgamento desta quarta (20)

O que seriam "dados detalhados"?
Informações que vão além da identificação dos titulares das transações suspeitas e do valor movimentado

O que isso tem a ver com Flávio Bolsonaro?
A decisão de Toffoli atendeu a um pedido da defesa do senador e paralisou a investigação do MP-RJ que envolve Flávio e seu ex-assessor Fabrício Queiroz. A apuração começou com o envio à Promotoria de um relatório do Coaf apontando movimentações atípicas de R$ 1,2 milhão na conta de Queiroz

O que está sendo investigado sobre Flávio?
O MP-RJ apura se houve "rachadinha" no gabinete de Flávio quando ele era deputado estadual no RJ. Nesse esquema, servidores devolvem parte do salário aos deputados. Há suspeita de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa

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