Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Tradicional tensão entre governos e Folha se eleva sob Bolsonaro

Para estudiosos, ataques dele à imprensa atingem patamar jamais visto na história recente do país

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São Paulo

A relação entre a Presidência da República e a Folha tem sido historicamente marcada pela tensão. É um mal-estar que faz parte do jogo democrático.

Em consonância com o seu projeto editorial, que prevê independência e apartidarismo, a Folha mantém uma postura crítica em relação aos ocupantes do Palácio do Planalto.

Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por exemplo, se queixaram mais de uma vez de reportagens do jornal.

O presidente Jair Bolsonaro (PSL), no entanto, eleva essa tensão a um patamar alarmante, dizem especialistas. 

De acordo com eles, o mandatário dirige à Folha e à imprensa profissional de maneira geral uma carga de ataques jamais vista no período da redemocratização. Em outras palavras, o desrespeito do Planalto à liberdade de expressão é o mais elevado das últimas três décadas e meia. 

No mês passado, ele determinou o cancelamento das assinaturas da Folha no governo federal. Em tom de ameaça, o presidente também disse que os anunciantes do jornal “devem prestar atenção”.

“Determinei que todo o governo federal rescinda e cancele a assinatura da Folha de S.Paulo. A ordem que eu dei [é que] nenhum órgão do meu governo vai receber o jornal Folha de S.Paulo aqui em Brasília. Está determinado. É o que eu posso fazer, mas nada além disso”, afirmou à TV Bandeirantes.

“Espero que não me acusem de censura. Está certo? Quem quiser comprar a Folha de S.Paulo, ninguém vai ser punido, o assessor dele vai lá na banca e compra lá e se divirta. Eu não quero mais saber da Folha de S.Paulo, que envenena o meu governo a leitura da Folha de S.Paulo.”

Horas mais tarde, durante transmissão ao vivo nas redes sociais, ameaçou anunciantes do jornal. “Não vamos mais gastar dinheiro com esse tipo de jornal. E quem anuncia na Folha de S.Paulo presta atenção, está certo?”

Nesta quinta-feira (28), ao cumprir a ameaça de Bolsonaro, a Presidência excluiu a Folha da relação de veículos nacionais e internacionais exigidos em um processo de licitação para fornecimento de acesso digital ao noticiário da imprensa.

No último dia 6 de outubro, Bolsonaro afirmou que a Folha havia descido “às profundezas do esgoto” ao publicar reportagem sobre possível uso de caixa dois na campanha dele à Presidência e do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, ambos do PSL.

O presidente se comporta como fazia o candidato. Em 18 de outubro de 2018, dez dias antes do segundo turno, a Folha revelou que empresas estavam comprando pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT no WhatsApp. A prática é ilegal.

Três dias depois, o então candidato fez discurso raivoso. “Sem mentiras, sem fake news, sem Folha de S.Paulo.” 

De acordo com o jornalista Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, “o Poder Executivo e a imprensa vivem uma tensão. E é desejável que seja assim. Mas Bolsonaro tem um outro tipo de atitude. Ele age para destroçar a imprensa”.

O presidente recorre constantemente ao termo fake news “para demonstrar que a imprensa não só é desnecessária. Ela é indesejável. Bolsonaro acalenta a ideia de um país sem imprensa”, diz Bucci. 
Segundo o professor da USP,  “às vezes, a carga pesa mais contra a Folha. Às vezes, contra outros veículos”. 

No último dia 30, Bolsonaro chamou de “patifaria” a cobertura que a TV Globo faz de seu mandato. “A fúria de Bolsonaro com a Folha não é diferente da que ele demonstra ter em relação à Globo. Ele abomina uma e outra com a mesma intensidade”, afirma Bucci.

Levantamento da Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas) mostrou que o presidente critica jornalistas e o jornalismo ao menos duas vezes por semana. A pesquisa considera o período que vai de 1º de janeiro a 31 de outubro. 

Ao longo desses dez meses, foram 99 declarações vistas como ataques a jornalistas em particular ou à imprensa em geral. A Fenaj contabilizou discursos, entrevistas e postagens em mídias sociais.

É a primeira vez que a entidade divulga o número de agressões de um presidente à imprensa. Segundo a presidente da Fenaj, Maria José Braga, ataques dos ocupantes do Planalto aos jornalistas não foram compilados nos anos anteriores porque apareciam de forma muito diluída nos levantamentos.

Para o jornalista Oscar Pilagallo, autor do livro “História da Imprensa Paulista”, não há no passado recente do país “nada comparável ao que faz Bolsonaro em termos de retórica contra a imprensa”.

Ele lembra momentos de tensão do Planalto com a Folha em anos anteriores, mas os trata como pontuais. “Fernando Henrique reclamava de Clóvis Rossi [repórter especial do jornal, morto em junho]. Também houve atritos do Lula com a Folha. É natural que aconteçam esses choques. Mas não dá para comparar esses episódios com o que se vê com Bolsonaro.”

Segundo Pilagallo, a ameaça do presidente aos anunciantes da Folha não é tão grave como a intervenção do Estado Novo no jornal O Estado de S. Paulo e a censura imposta à imprensa pelo comando da ditadura militar e por outros governos autoritários. 

Mas, avalia Pilagallo, esse caso recente é também condenável. “O presidente está usando o poder para manipular a iniciativa privada com o intuito de sufocar a liberdade de imprensa”, afirma.  

Não foi o primeiro nem deve ser o último choque do jornal com o poder central. Em 1930, a Folha questionava Getúlio Vargas, e o veículo se tornou alvo dos apoiadores do gaúcho. Quando ele chegou à Presidência, os getulistas festejaram empastelando o jornal. 

Em 1977, a ditadura militar ficou incomodada com a publicação de uma coluna em branco para ressaltar a prisão do colunista Lourenço Diáferia. O general Hugo Abreu ligou para o então publisher Octavio Frias de Oliveira (1912-2007): “Vamos fechar o seu jornal”, disse. Àquela altura, Ernesto Geisel era o presidente.

Daí em diante, ocuparam o Planalto João Figueiredo, José Sarney e Fernando Collor.

Em 1990, a Folha denunciou a contratação de agências de publicidade pelo governo Collor sem licitação, o que levou o presidente a processar por calúnia o então diretor de Redação, Otavio Frias Filho (1957-2018), e outros três jornalistas. 

Com a queda do alagoano, dois anos depois, assumiu o vice Itamar Franco, tampouco poupado pelo jornal. Em 1993, Itamar disse que desejava que o seu sucessor encontrasse “uma imprensa mais compreensiva”.

O sucessor foi Fernando Henrique Cardoso. “Nenhum presidente, talvez só Getúlio, foi alvo de tanta agressividade de certos setores da mídia. Não esqueça que a Folha fez uma edição de várias páginas com argumentos para o impeachment, por causa do episódio da escuta telefônica”, disse à revista Veja em 2002. 

FHC referia-se à reportagem publicada pelo jornal em 1999, que expôs a íntegra dos grampos ilegais no BNDES. Em um diálogo, ele admitiu o uso do seu nome para ajudar consórcio no leilão da Telebrás.

Um dos períodos críticos do governo Lula se deu em decorrência da entrevista de Roberto Jefferson à Folha. O então deputado disse que o PT pagava um mensalão de R$ 30 mil a parlamentares em troca de apoio no Congresso.

Quando comparado a FHC, Lula questionou menos a Folha publicamente. Porém, em 2010, ele se recordou, magoado, de um almoço de oito anos antes, na sede do jornal.

“O diretor da Folha perguntou para mim: ‘Escuta aqui, candidato, o senhor fala inglês?’”, afirmou, referindo-se a Otavio Frias Filho. “Eles achavam que o [Bill] Clinton não tinha obrigação de falar português. Era eu, o subalterno, o país colonizado, que tinha que falar inglês. Peguei o elevador e fui embora.”

Otavio replicou à época que Lula “não foi interpelado sobre falar ou não inglês, mas sobre o fato de ostentar desprezo pelo estudo”. 

Em agosto de 2018, dias antes de morrer, Otavio lembrou o episódio, mantendo a discordância, e contou ter visitado o ex-presidente após a morte da mulher dele, Marisa.

Em outubro de 2017, ainda em liberdade, o já ex-presidente reclamou de pesquisa do Datafolha que questionou eleitores sobre sua prisão.

Em suas críticas à imprensa, Dilma Rousseff (PT) evitava nomear os veículos aos quais se referia. Em algumas situações, divulgou notas para “repudiar fatos inverídicos”.

Esse tom mais moderado foi mantido por Michel Temer (MDB), que assumiu após o impeachment de Dilma.

Embora seu governo tenha sido afetado por denúncias, como a que levou à queda do ministro Geddel Vieira Lima, em 2016, Temer evitou, de modo geral, ataques públicos aos veículos de comunicação.

“A Folha não faz oposição a nenhum governo, mas cobre todos de maneira crítica e independente. Este é o papel do jornalismo profissional numa democracia”, afirma Sérgio Dávila, diretor de Redação da Folha.

10 escândalos revelados pela Folha 

Jair Bolsonaro (2019)

Em fevereiro de 2019, Folha revelou existência de esquema de candidaturas laranjas do PSL, partido presidido por Gustavo Bebianno entre janeiro e outubro de 2018. A repercussão do caso resultou na queda de Bebianno, ministro da Secretaria-Geral da Presidência.

Michel Temer (2016 a 2018)

Em 2016, Marcelo Callero, ex-ministro da Cultura, acusou Geddel Vieira Lima, ministro-chefe da Secretaria de Governo da administração Temer, de tê-lo pressionado para liberar projeto imobiliário em Salvador. Furo levou à queda de Geddel.

Dilma Rousseff (2011 a 2016)

Reportagem de 2014 mostrou que governo federal tinha adiado divulgação de dados sobre educação e arrecadação de impostos para evitar danos à campanha de reeleição da petista.

Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010)

Reportagem do jornal de 2009 revelou que governo federal havia atrasado pagamento da restituição do imposto de renda de milhões de brasileiros para compensar queda na arrecadação

Em 2005, o então deputado federal Roberto Jefferson disse à Folha que o PT pagava um mensalão de R$ 30 mil a parlamentares em troca de apoio no Congresso. A revelação provocou a queda de toda a cúpula do partido e a saída de José Dirceu do comando do Ministério da Casa Civil. 

Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002)

Jornal publicou em 1999 a íntegra dos grampos ilegais do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Num diálogo, FHC havia admitido o uso de seu nome para ajudar um consórcio no leilão da Telebras.

Gravações obtidas pela Folha revelaram em 1997 que deputados federais tinham vendido seus votos por R$ 200 mil para apoiar a emenda que permitia a reeleição de FHC.

Itamar Franco (1992 a 1994)

Em 1994, Folha revelou que Planalto tinha atropelado estudos técnicos da Caixa e liberado financiamento para venda de cerca de 300 mil casas populares com fins eleitorais.

Fernando Collor de Mello (1990 a 1992)

Reportagem do jornal publicada em 1990 mostrou que governo federal havia contratado agências de publicidade sem licitação para fazer a propaganda oficial.

José Sarney (1985 a 1990)

Em 1987, reportagem da Folha revelou que concorrência da ferrovia ​Norte-Sul tinha sido fraudada. Antes do anúncio da licitação, jornal havia publicado a lista das 18 empreiteiras vencedoras

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