Comunismo é tão precário que não significa perigo, diz filha de Olga e Prestes

Para Anita Prestes, acusação hoje serve de justificativa para perseguir pessoas, como em 1964

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Porto Alegre

Em uma prisão do regime nazista de Adolf Hitler, na Alemanha, nasceu Anita Leocádia Prestes. Sua mãe, a militante comunista Olga Benário, foi entregue grávida ao genocida pelo presidente brasileiro Getúlio Vargas, em 1936. Seu pai, o gaúcho Luiz Carlos Prestes, estava preso no Brasil pela ditadura do Estado Novo.

Anita escapou do nazismo graças a uma campanha internacional liderada por sua avó paterna, Leocádia, ao lado de sua tia, Lydia.

Após a libertação da menina, Olga foi enviada a um campo de concentração, onde morreu em uma câmara de gás.

Aos 82 anos, Anita publica o livro de memórias “Viver É Tomar Partido” (Boitempo, 2019). Para ela, o comunismo “tem sido usado como uma justificativa para perseguir as pessoas” e, “precário”, não representa “perigo nenhum”.

 
Como é crescer sabendo que esteve em posse de nazistas após o nascimento?
Nasci na prisão de mulheres. Minha mãe foi para o campo de concentração depois que eu fui devolvida. Me habituei desde pequena com a verdade porque a minha família nunca foi de dramatizar as coisas. Me ensinaram a lutar e enfrentar. Entendia, inclusive, que tinha gente em condições muito piores que a minha.

Fui salva graças à campanha internacional. Poderia ter sido levada para um orfanato nazista. Sempre fui muito cuidada, com solidariedade tanto no Brasil como no exterior. Quantas crianças, pessoas inocentes morreram vítimas do nazismo?

O presidente Jair Bolsonaro e o chanceler Ernesto Araújo já disseram que o nazismo é de esquerda. Por que esse equívoco tem sido propagado?
É o capitalismo desesperado diante da situação de sua própria crise, refletida na insatisfação popular, nas greves, nas manifestações. Precisam inventar uma história para se justificar, dizendo que o nazismo é de esquerda, que o holocausto não existiu, que o comunismo é um perigo. A realidade do comunismo é tão precária que não significa perigo nenhum.​

No seu livro, a senhora conta que ainda criança foi perseguida por ser filha de comunistas. Uma diretora tentou evitar seu ingresso na Escola Nacional de Música [hoje UFRJ]. O rótulo de comunista retornou à pauta, usado contra artistas, intelectuais e até mesmo contra políticos moderados. Por quê?
A diretora, naturalmente, era influenciada pela propaganda anticomunista da época. Meu pai era um demônio e eu, por consequência, um demoniozinho [risos], embora só tivesse 11 ou 12 anos. Essa propaganda faz a cabeça das pessoas. É isso que a gente está vendo.

No golpe de 1964, alegavam que era para evitar o comunismo e contra a corrupção. Exatamente a mesma coisa de agora. Muita gente é perseguida sem ter nada a ver com comunismo. Precisam de bodes expiatórios. Comunismo é usado como uma justificativa para perseguir as pessoas.

A senhora foi perseguida pela ditadura militar. O que pensa sobre os elogios ao período feitos por Bolsonaro e seus apoiadores?
É toda uma política para justificar repressão, para implementar medidas autoritárias, está aí o Escola Sem Partido. Eles criam essas histórias para conquistar adeptos. Através do WhatsApp, Bolsonaro conseguiu se eleger. O PT fez muita coisa errada, mas espalharam barbaridades que não tinham cabimento, coisas inventadas.

Que coisas erradas o PT fez na opinião da senhora?
No governo, o PT não fez reformas profundas como é necessário. Deu continuidade, no fundamental, às medidas liberais que vinham do FHC. Sem dúvida, houve políticas para melhorar a vida dos mais pobres. Mas não fez nada para esclarecer o povo, até para que pudessem defender as conquistas que tiveram. O que tinha melhorado já está pior.

O que explica a eleição de Bolsonaro?
O povo brasileiro estava bastante insatisfeito com a crise. A última crise do capitalismo, de 2008, demorou a chegar aqui, chegou em 2013, 2014 e cresceu. Até porque o PT não teve competência para enfrentar isso. Deram um golpe jurídico-parlamentar na Dilma [Rousseff]. Ficou o [Michel] Temer uma temporada, mas precisavam de candidato confiável para o capital, que fizesse contenção de despesa, reforma da Previdência, trabalhista, tinha que ter um governo disposto a isso.

O próprio PT não estava disposto. Derrubaram a Dilma, mas faltava candidato, o [Geraldo] Alckmin não decolou e acabaram engolindo o Bolsonaro.

No seu livro, a senhora conta que era tratada com frieza por dona Maria [mulher de Prestes após a morte de Olga]. O que acontecia?
Eu tinha que mencionar porque não tem jeito, são minhas memórias, mas isso é o menos importante. Felizmente, vivi muito bem sem ela. Não há por que ficar remoendo as coisas erradas que ela fazia.

Por que a senhora não aceitou as pensões que lhe foram oferecidas?
Foram duas. A primeira, porque era um absurdo dona Maria [madrasta] recorrer ao Exército após a morte de meu pai [ele foi capitão]. Como liderança comunista revolucionária, ele achava que não tinha que voltar [se aposentar pelo Exército]. Como filha, eu teria direito, mas rejeitei porque acho uma indignidade com a memória dele.

A segunda foi porque tive os direitos políticos cassados. Aceitei apenas que o período em que fui perseguida e não consegui emprego após me formar em 1964 [em Química Industrial] contasse para o cálculo da aposentadoria, mas doei os R$ 100 mil que recebi. Fiz uma doação para o Inca (Instituto Nacional do Câncer). Não tinha sentido ficar com o valor, afinal, era dinheiro do povo brasileiro.

Seu pai e a senhora romperam com o PCB. Por quê?
Eu até rompi primeiro porque não tinha as responsabilidades que ele tinha. Ele rompeu quando redige e divulga a “Carta aos Comunistas” [em março de 1980, quando ele cobra autocrítica do partido]. A gente fez muita força para ver se modificava a direção, se fariam autocrítica da política errada de “revolução em etapas”.

A gente chegou à conclusão que o Brasil era outro, não podia repetir aquelas teses erradas. Ele se convenceu que não tinha como mudar [os rumos do partido] e decidiu não continuar dando aval. Ele dizia que traíram a classe operária. Virou um conjunto burocratizado, o jeito foi romper. 

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