Prova de que autoridade agiu de propósito é obstáculo para nova lei de abuso

Para haver punição terá que ser provado que agente público quis prejudicar alguém ou se beneficiar

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São Paulo

Logo em seu primeiro artigo, a nova lei de abuso de autoridade, que entra em vigor em 3 de janeiro de 2020, impõe uma condição para a punição de agentes públicos que está sendo encarada por especialistas em direito penal como um obstáculo para que a medida seja, de fato, aplicada. 

A nova lei atinge integrantes das polícias, do Ministério Público e do Judiciário e especifica condutas que devem ser consideradas abuso de autoridade, além de prever punições.

Boa parte das ações já era proibida, mas de maneira genérica —a previsão agora é de até quatro anos de detenção.

Pelo texto do artigo 1º, porém, só haverá punição caso fique comprovado que os agentes públicos atuaram com intenção de prejudicar alguém ou se beneficiar.

“Certamente este artigo primeiro diminui bastante a força da legislação, porque os crimes todos previstos na lei de abuso de autoridade vão depender desta finalidade específica de prejudicar alguém ou de beneficiar a si mesmo ou a terceiro”, diz David Teixeira de Azevedo, professor de direito penal da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da USP (Universidade de São Paulo).

“A autoridade denunciada sempre dirá que não teve objetivo nenhum, nenhuma finalidade de prejudicar o direito de ninguém ou se beneficiar. Dirá que não agiu por mero capricho ou satisfação pessoal”, diz Azevedo.

Plenário da Câmara dos Deputados
Plenário da Câmara dos Deputados - Luis Macedo /Câmara dos Deputados

Helena Lobo da Costa, também professora de direito penal da USP, diz que é muito difícil produzir provas sobre a intenção dos agentes públicos que cometem abuso de autoridade.

“Esta é uma questão com a qual o direito penal lida há muito tempo e a gente nunca consegue entrar na cabeça da pessoa para saber exatamente o que ela queria. Então é visto a partir de questões externas. Exemplo. O juiz comentou com alguém que aquele réu precisava tomar uma lição? É difícil a gente imaginar esse tipo de situação, mas a gente está pensando numa situação de abuso de autoridade”, diz Costa.

“A lei não foi pensada para pegar aquela autoridade que de repente foi mais rigorosa. Ela é feita pela autoridade que abusa. Então no caso de abuso nem sempre a gente consegue fazer a prova do dolo.”

Aprovada pelo Congresso em setembro, a nova lei tramitou com rapidez após a divulgação pelo site The Intercept Brasil de conversas por mensagem entre integrantes da Lava Jato.

A troca de mensagens indicava, entre outras coisas, que o então juiz do caso, Sergio Moro, orientou a Procuradoria a juntar documentos e indicou provas contra réus, além de determinar a ordem das fases da investigação. Procuradores requisitaram documentos sigilosos da Receita sem ordem judicial.

Houve forte reação contra a lei por parte de associação de magistrados, membros do Ministério Público e policiais. O próprio Moro, hoje ministro da Justiça, foi contrário à nova legislação, encarando como um ataque ao combate à corrupção. O presidente Jair Bolsonaro vetou pontos da lei, mas parte dos vetos foi derrubada pelo Congresso.

A inclusão do artigo primeiro, na análise de Azevedo, foi uma concessão dos parlamentares contra as pressões dos agentes públicos que se sentiram atingidos pela lei.

“Tratou-se de uma cláusula acrescida à lei para tornar politicamente possível a sua aprovação. Devemos lembrar a grande mobilização das autoridades públicas de magistratura e Ministério Público contra a aprovação da lei e que falavam sempre da incriminação do erro de interpretação”, diz.

A possibilidade de que os alvos das denúncias, quando não comprovada a intenção, façam uma representação contra os denunciantes por denunciação caluniosa, cuja pena pode chegar a oito anos de prisão, também pode inibir esse tipo de ação.

“A nova lei de abuso de autoridade exige o dolo específico para que o crime seja caracterizado. Se as representações que forem feitas com base na lei não apontarem no que consistiu esse dolo, em tese daria ensejo que o representado impute ao representante a denunciação caluniosa”, diz Fernando Mendes, presidente da Ajufe (Associação de Juízes Federais).

O professor da USP diz, porém, que isso não quer dizer que nunca haverá punição. “Hoje é muito fácil qualquer um fazer prova com gravação do ato. Então você grava o ato da autoridade o encontro com o delegado e às vezes nem precisa gravar porque outros estão gravando, hoje as audiências estão sendo feitas de maneira audiovisual”, diz Azevedo.

O volume de denúncias contra um agente também pode favorecer a punição. “Os abusos serão punidos quando filtro colher autoridade. O juiz correto, bom, que nunca teve muito problema na corregedoria é alvo de uma denúncia de abuso de autoridade, esse negócio [denúncia] não vai colar. Mas se é figurinha carimbada e já é conhecido, já tem várias reclamações, várias representações, acho que estes acabarão por ser alcançados”, afirma.

ENTENDA A LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

O que pretende a lei?
O texto, que entra em vigor no próximo dia 3, especifica condutas que devem ser consideradas abuso de autoridade e prevê punições. Boa parte das ações já são proibidas, mas o objetivo é punir o responsável pelas violações

Que condutas são consideradas abuso?
Alguns exemplos:

  • Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado sem que antes a pessoa tenha sido intimada a comparecer em juízo
  • Invadir ou adentrar imóvel sem autorização de seu ocupante sem que haja determinação judicial e fora das condições já previstas em lei (não há crime quando o objetivo é prestar socorro, por exemplo)
  • Manter presos de ambos os sexos numa mesma cela ou deixar adolescente detido na mesma cela que adultos
  • Dar início a processo ou investigação sem justa causa e contra quem se sabe inocente
  • Grampear, promover escuta ambiental ou quebrar segredo de Justiça sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei
  • Divulgar gravação ou trecho sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado
  • Mandar prender em manifesta desconformidade com a lei ou deixar de soltar ou substituir prisão preventiva por medida cautelar quando a lei permitir
  • Violar prerrogativas do advogado asseguradas em lei
  • Continuar interrogando suspeito que tenha decidido permanecer calado ou que tenha solicitado a assistência de um advogado

O que torna as condutas criminosas?
É necessário que o ato seja praticado com a finalidade de prejudicar alguém, beneficiar a si mesmo ou a outra pessoa ou que seja motivado por satisfação pessoal ou capricho

Que tipos de punições são previstas?
Medidas administrativas (perda ou afastamento do cargo), cíveis (indenização) e penais (penas restritivas de direitos). Quase todos os delitos previstos têm pena de detenção —ou seja, o regime inicial será aberto ou semiaberto. A exceção é para o artigo 10, que prevê dois a quatro anos de reclusão para quem realizar “interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”

Quem poderá ser enquadrado?
São passíveis de sanção por abuso de autoridade membros dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, membros do Ministério Público, membros de tribunais ou conselhos de contas, servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas

Quem é responsável por denunciar o abuso?
O Ministério Público, que é o dono da ação penal. Se o órgão não acionar o Poder Judiciário, a vítima tem seis meses para ingressar com ação privada

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