Os textos foram escritos de 1964 a 1985 por 22 pessoas que enfrentaram a ditadura de diferentes formas: na legalidade, exílio e cárcere. Autores depois mortos e desaparecidos também têm sua produção resgatada.
“A soma dessas individualidades vai trazendo um panorama daquela época. A ideia é mostrar que aqueles jovens tinham um ideal. Alguns se organizaram de maneira arriscada e enfrentaram situações muito duras, violentas. Violências do estado que ainda estão impunes", disse à Folha Raul Ellwanger, 72, músico e organizador da obra.
Ele continua: "Eles pagaram por isso, mas os textos mostram que continuaram com seus sonhos e amores. Se tornaram pessoas brilhantes, bem-sucedidos e outros deixaram sua memória porque morreram ou desapareceram”
“Há um povo que sofre/Há um povo que geme/E há outros/Como eu/Que embora/Saibam desse sofrimento/E ouçam esses gemidos/Não sofrem/E não gemem”, escreveu Luiz Eurico Tejera Lisboa, conhecido como Ico, em 1968, em Santa Maria, na região central do Rio Grande do Sul.
Ico foi preso em circunstâncias desconhecidas em São Paulo, em 1972, aos 24 anos. Ele foi o primeiro desaparecido político a ter o corpo localizado no cemitério de Perus, sob um nome falso, em 1980. Ele foi enterrado em Porto Alegre somente em 1982.
A localização foi possível graças à pesquisa feita por sua mulher, Suzana Lisboa. Sob um nome falso de Nelson Bueno, ela encontrou um inquérito com uma fotografia montada que atestaria que Ico havia se suicidado. A versão do Exército foi desmentida pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) em 2013.
Além de poesias, o livro traz também trechos de cartas e até rabiscos nas paredes da cela do Dops (Departamento de Ordem Política e Segurança) de Porto Alegre, onde hoje funciona a Polícia Civil gaúcha. Os rabiscos foram relembrados por um preso.
Entre as cartas está a do sargento Manoel Raimundo Soares, que ficou preso na Ilha do Presídio. Era comum os presos serem retirados da ilha para serem torturados no Dops.
Após uma dessas saídas, em 1966, seu corpo foi encontrado por um pescador boiando no rio Jacuí com as mãos amarradas. A morte do militar que se opunha à ditadura ficou conhecida como “Caso das mãos amarradas”. Os responsáveis não foram punidos.
Antes de ser assassinado, escreveu à sua mulher: “Estou vivo. Estou calmo. Tão logo eu seja posto em liberdade, e isto ainda vai demorar, vamos ter uma nova lua de mel. Aproveito para lembrar-te que meu pensamento é só para ti. Durante todas as horas dos últimos dias, não sais do meu pensamento. O banquinho na cozinha, os beijos nos olhos, tudo aquilo que liga meu corpo à tua alma”.
Considerado um sobrevivente após nove anos de tortura que o deixaram sem os dentes e mandíbula, Antônio Pinheiro Salles, 82, também tem um poema na obra. Preso em Porto Alegre em 1970, ele foi levado mais tarde para São Paulo, sendo libertado apenas em 1979.
“Havia névoa no voo da velha aeronave/E uma nívea revolta na volta das algemas/O perfil de Porto Alegre foi fenecendo/Enquanto tu sonhavas sem saber de mim”, escreveu Pinheiro Salles.
“O critério para a escolha dos textos foi mostrar aquela pessoa naquela situação. Não temos critério de qualidade, não dá para ser estético. É um recorte histórico. As pessoas se refugiavam na poesia, se fortaleciam nela”, explica Ellwanger.
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